Mais do mesmo ou Brumadinho nunca mais? artigo de José Ricardo Armentano
[EcoDebate] Se perguntassem ao celebre Garcia Marquez — cuja grandiosa obra literária lhe rendeu em 1992, com méritos, o expressivo prêmio Nobel de Literatura —, ele diria, muito provavelmente, que os recentes fatos ocorridos em Brumadinho, MG, são uma verdadeira crônica de uma morte, digo, de uma tragédia anunciada!
Pois é! Além de previsível, nada — ou quase nada — mudou desde o trágico e semelhante evento de Mariana nos idos de 2015. E não é para menos, afinal, se levarmos em conta que a protagonista da tragédia de Brumadinho, a companhia Vale S.A., desde o mencionado desastre ambiental de Mariana, reduziu em 44% os respectivos gastos com segurança, é sintomático e até mesmo razoável concluir que os fatos ocorridos, para todos os envolvidos, isto é, para os dirigentes da Vale, para os respectivos encarregados pela manutenção, prevenção e segurança das respectivas operações dessa companhia, bem como para as autoridades e para os responsáveis pelo licenciamento e fiscalização desse tipo de empreendimento, eram previsíveis… exceto para as pobres vítimas que perderam revoltantemente as suas vidas nessa tragédia.
Mas, afinal, a Vale é mesmo responsável por esse triste evento? Tem ela o dever de reparar os danos ambientais e a indenizar as respectivas vítimas? E a resposta para todas essas indagações é muito simples: claro que sim!
Por mais que o renomado advogado contratado pela Vale, Sérgio Bermudes, diga que a companhia não se vê como responsável pelos tristes acontecimentos ocorridos em Brumadinho, e que tudo não passou de um capricho da natureza, a responsabilidade dela é inequívoca, já que decorre do risco inerente à própria a atividade empresarial por ela explorada. Ainda que tudo tivesse sido causado pelas forças da natureza — hipótese esta, aliás, já descartada pelas autoridades públicas —, mesmo que a Vale tenha todas as licenças expedidas pelos órgãos públicos pertinentes à respectiva atividade, e mesmo que ela tenha tomado todas as cautelas possíveis e imaginárias para prevenir esse tipo de evento, ainda assim haverá o dever de reparar, já que isso decorre do risco inerente à própria atividade por ela explorada. Pouco importa se não houve dolo, isto é, se não houve a intenção de violar a lei propositadamente. De igual modo, tanto faz se não houve culpa, ou seja, negligência, imprudência ou imperícia, já que o dever de indenizar, em casos dessa natureza, sempre prevalecerá. Basta a conexão entre atividade da Vale e a ocorrência do dano para nascer o dever de reparação (responsabilidade objetiva).
É importante ressaltar que rompimento da barragem de Brumadinho, em virtude da respectiva gravidade, não enseja apenas consequências na esfera ambiental (sanções por danos causados ao meio ambiente e respectiva reparação) e no âmbito da reparação civil (indenização por danos causados), mas enseja, também, reflexos nos âmbitos administrativo (licenciamento, operação e fiscalização de atividades de risco), trabalhista (indenização por danos morais coletivos) e penal (responsabilização pela morte de pessoas).
A esse respeito, impõe-se ressaltar, também, que até o presente momento já foram concedidas Pelo Poder Judiciário liminares em procedimentos de tutela antecipada formulados pelo Ministério Público pelo Estado de Minas Gerais, destinadas a tornar indisponível e a bloquear montante equivalente a onze bilhões de reais (R$ 11.000.000.000), para assegurar o ressarcimento dos danos por ela causados, para garantir a reparação individual das vítimas e para a restauração do meio ambiente. Foi também determinada a adoção imediata de medidas necessárias para garantir a estabilidade do complexo minerário de Brumadinho, bem como foi determinada a responsabilização pelo acolhimento e integral assistência às vítimas, dentre outras obrigações. Além disso, na esfera trabalhista, foi determinado pelo Poder Judiciário o bloqueio de mais de um bilhão e seiscentos milhões de Reais (R$ 1.600.000.000) da Vale, para assegurar a indenização de familiares e a reparação de danos morais coletivos decorrentes desse episódio.
No âmbito administrativo já foram impostas sanções pelo IBAMA, no valor de duzentos e cinquenta milhões de reais (R$ 250.000.000), e pelo Estado de MG, no montante aproximado de noventa e nove milhões de reais (R$ 99.000.000).
Já no âmbito penal a questão tem contornos mais delicados, vez que a responsabilização dos culpados está necessariamente condicionada à existência de culpa ou dolo. Mais especificamente, para que haja uma condenação é necessária a prova cabal da existência de culpa, qualquer que seja a respectiva modalidade (negligência, imprudência ou imperícia), ou da existência de dolo (caracterizado pela intenção de violar a lei), ainda que ele seja eventual. No dolo eventual, apesar do infrator ter consciência dos riscos envolvidos e da potencialidade lesiva dos respectivos atos pretendidos, ele, ainda assim, resolve agir, na ilusória e efêmera esperança de que nada ocorrerá. Nessa toada, o Poder Judiciário, a pedido do Ministério Público, determinou a prisão dos especialistas que atestaram a estabilidade das barragens da Vale e a conformidade das respectivas estruturas com as normas de segurança pertinentes; bem como as prisões do gerente de meio ambiente, saúde e segurança do complexo minerário, e do gerente executivo operacional, ambos empregados da Vale, responsáveis pelo licenciamento, funcionamento e monitoramento da barragem rompida; em virtude de vislumbrar a existência de fortes indícios de autoria ou participação dessas pessoas nos crimes ambientais, de falsidade ideológica e nos homicídios relacionados ao caso. Segundo o magistrado que proferiu tal decisão, a prisão dessas pessoas é imprescindível para a investigação policial do caso.
A respeito desse assunto, remanesce ainda uma dúvida cruel: estamos diante de uma nova Mariana, onde, passados mais de três anos desse terrível acontecimento, famílias ainda permanecem desemparadas e sem a devida reparação pelos danos e prejuízos que sofreram; o meio ambiente continua miseravelmente degradado, sem que nada de efetivo tenha sido feito para a respectiva restauração, tampouco para a identificação e para a punição exemplar dos respectivos responsáveis?
Ao que tudo indica não, já que são fortes os indícios de que as coisas serão diferentes, ao menos dessa vez.
A exposição, por meio das redes sociais, dos políticos que obstaculizaram o endurecimento da legislação pertinente à atividade minerária, e a repercussão negativa do caso perante a opinião pública, com reflexos extremamente prejudiciais à imagem da companhia em relação ao mercado e ao valor das respectivas ações na bolsa de valores, foram fundamentais para as medidas voluntariamente adotadas pela Vale com o intuito de minimizar a gravidade dos fatos ocorridos, tais como: o auxílio e a doação de valores às vítimas; disponibilização de assistência psicológica; colaboração com as autoridades públicas; divulgação de planos emergenciais e disponibilização de canais de comunicação. Aliás, a própria conduta da Vale, ao “repudiar” a manifestação do mencionado advogado por ela contratado, de que a companhia não se via responsável pelo “acidente”, nem por dolo, tampouco por culpa, reforça a esperança de que o descaso havido no episódio de Mariana não se repetirá novamente.
Contudo, como bem diz a sabedoria popular, não há almoço de graça. E isso porque a conduta dessa companhia, ao que tudo indica, está muito mais focada na preservação da respectiva reputação perante o mercado e a opinião pública, do que propriamente no campo das boas práticas. Há a nítida a intenção de minimizar ao máximo não apenas o peso da respectiva participação nesse doloroso evento, mas, também, o valor das indenizações que necessariamente terá de se sujeitar.
É importante ressaltar que as posturas firmes do Poder Judiciário, ao suspender, recentemente em caráter preventivo, a operação das barragens da Mina Brucutu, também situada em Minas Gerais, cuja tecnologia é antiga e suscetível de rompimento; ao rechaçar as tentativas da Vale em liberar as quantias bloqueadas a título de garantia pela reparação dos danos a terceiros e ao meio ambiente; bem como ao determinar exemplarmente, com o devido e necessário rigor, a prisão de técnicos, prestadores de serviços e gestores direta ou indiretamente ligados ao licenciamento, ao funcionamento, à operação e à segurança do complexo minerário envolvido; são fortes e esperançosos indícios de que não haverá, em relação ao triste episódio de Brumadinho, tolerância, tampouco a sensação de impunidade que permeia o senso comum da população em casos dessa natureza.
Enfim, o mínimo que se pode esperar disso tudo pode ser resumido em uma única frase: Brumadinho nunca mais! E isso somente será possível mediante o comprometimento e os incansáveis esforços por parte dos poderes públicos para que as vítimas e seus familiares sejam devidamente amparados e indenizados, para que o meio ambiente seja integralmente recuperado, para que a legislação e os procedimentos de licenciamento e fiscalização de atividades de risco sejam endurecidos e rigorosamente cumpridos, e, principalmente, para que todos os responsáveis, direta ou indiretamente, por esse triste acontecimento, sejam rigorosa e exemplarmente punidos!
Por José Ricardo Armentano, advogado da Morad Advocacia.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 15/02/2019
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José Ricardo, parabéns pelo artigo.
A Vale deve indenizar as famílias das vítimas e aqueles que perderam seus bens.
Deve também providenciar a recuperação do meio ambiente. Mas como?
Penso que os órgãos ambientais devem indicar as medidas necessárias, com a conta remetida para a Vale.