Do calor de 44 graus pro temporal no Rio, artigo de Beatriz Diniz
[EcoDebate] No sábado 2/2 teve termômetro marcando 44 graus na zona Sul do Rio. Na noite de 6/2 desabou um temporal com enorme volume de água em poucas horas. A cidade entrou em estágio de crise e amanheceu mergulhada no caos depois da chuvona prevista. Ano passado, também em fevereiro, a cidade entrou em estágio de crise depois de temporal [confere aqui]. Isso quer dizer que a prefeitura teve um ano pra preparar cidade e moradores pra lidar com a realidade do clima extremo, chuva e calor mais fortes, e não preparou. Resultado: mais uma tragédia, 7 pessoas mortas [até 10/2], famílias desabrigadas, moradias destruídas [invadidas por água, lama, esgoto e lixo], quase 600 árvores caídas, alagamentos, deslizamentos, prejuízos ambientais, sociais e econômicos.
Na “nova era” de tantas ôtoridades eleitas em nome de Deus tá faltando enxergar a natureza como criação divina e operar o milagre de respeitar as leis humanas de proteção ao meio ambiente, que valorizam a vida e propiciam que as pessoas vivam melhor. Chove desde que o mundo é mundo. Só que no já cotidiano das mudanças climáticas, governantes e parlamentares precisam investir em preparar as cidades e seus moradores pra chuva e calor mais intensos. Negar Ciência, aquecimento global e mudança do clima não faz deixar de existir o que de fato já tá rolando. E sim, é nas favelas e periferias que ignorância e irresponsabilidade das ôtoridades causam os maiores prejuízos.
Prefeito negacionista
“Tragédias inesperadas”, disse o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, sobre os impactos do temporal. Inesperadas porque negacionistas não reconhecem a Ciência. Inesperadas porque negacionistas não admitem fatos cientificamente comprovados. Inesperadas porque é mais fácil falar qualquer achismo depois do que fazer o necessário antes, como investir em prevenção de enchentes e contenção de encostas.
O prefeito culpa a chuva mas é incapaz de reconhecer a incompetência da própria “gestão”, que reduziu serviços públicos, como limpeza de bueiros e até varrição de lixo. A prefeitura aplicou apenas 22% do orçamento pra ações de controle de enchentes e contenção de encostas em 2017 e 2018, deixou de gastar R$ 564 milhões dos R$ 731 milhões disponíveis [acessa aqui matéria com esse levantamento do UOL nos dados do Portal da Transparência e da Lei Orçamentária Anual].
Apesar dos dados, o prefeito nega diminuição dos gastos em prevenção de enchentes e proteção de encostas. “Nesses meus 2 anos de governo eu não sei se teve um outro setor que nos preocupasse tanto quanto as contenções de encostas, fizemos mais de 40 ontem, 40 ano passado”. Crivella não sabe mesmo. De 2013 pra 2018: queda de 77% nos gastos com prevenção de enchentes e de 58% com proteção de encostas [olha aqui na reportagem do RJTV].
Crivella fala em nome de Deus, é pastor, mistura suas opiniões pessoais com a função de prefeito. Chuva é um fenômeno natural, pra religiosos então seria uma criação divina. Como pode transferir pra chuva a culpa pelo caos na cidade? Só que o fenômeno natural é agravado pela interferência humana registrada pela Ciência. Chega a ser pecado negar mudança do clima.
Prefeito negacionista tem o mesmo efeito que corrupto, rouba da gente políticas públicas que salvam vidas, que preparam cidades e moradores pra cuidar do ambiente e diminuir riscos de mortes e prejuízos ambientais, sociais e econômicos.
Rio tinha estratégia de resiliência
A cidade maravilhosa tinha uma estratégia de resiliência, foi lançada em maio de 2016 pelo ex-prefeito Eduardo Paes. Uma estratégia pioneira [Rio Resiliente] pra enfrentar efeitos das mudanças climáticas e desafios urbanos. Foi a primeira cidade no Hemisfério Sul a lançar um programa específico pra resiliência. A prefeitura tava investindo na resiliência do Rio desde 2009. Paes foi líder do C40 [grupo de prefeitos de megacidades dedicados a preparar cidades e pessoas pro maior desafio que a humanidade precisa enfrentar: mudanças climáticas] e proveu a cidade com legislação, estudos e programas. Agora dá pra notar que faltou dialogar com a sociedade.
O prefeito Crivella passou a gestão do Rio Resiliente pra Subsecretaria de Planejamento e Gestão Governamental em 2017, antes sob responsabilidade do Centro de Operações. No entanto, no site da prefeitura nem com a busca se consegue achar alguma menção à estratégia de resiliência da cidade. O site Rio Resiliente não existe mais. No Facebook tem a página Rio Sustentável e Resiliente, do escritório de planejamento da Prefeitura do Rio, com publicação mais recente de 4/2, sem nenhuma informação de serviço ou educação e sem link de referência governamental.
A cidade do Rio ainda integra o C40. A sociedade ainda não tem nem como imaginar o que isso representa. Uma busca por C40 no site da prefeitura dá zero ocorrência. Apesar de ter assinado compromisso de desenvolver planos ambiciosos de ação climática até 2020, é pra “inglês ver”, pra constar, pra prefeitura não passar o vexame internacional de pedir pra sair. Prova disso é o segundo temporal caótico na “gestão” Crivella sem qualquer avanço em conservação, prevenção e educação ambiental, só a mesma reação que sobrecarrega Comlurb, Defesa Civil, CET-Rio e Bombeiros.
Tempo, clima e resiliência
O janeiro de 2019 na cidade do Rio foi 4.9 graus mais quente que a média normal no período. Foi o janeiro mais quente em 97 anos. Não é difícil notar que algo mudou, já que não é um pequeno aumento da temperatura.
O que mudou foi o clima. E a mudança no clima causa mudanças no tempo. É bom a gente entender a diferença entre clima e tempo pra não ficar repetindo ignorâncias que negacionistas costumam falar [ainn tá tão frio hoje, explica ae o aquecimento global agora].
Tempo é o estado da atmosfera em local e momento determinados. Clima é a condição média da atmosfera observada por longo período. De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia [INMET]: Tempo é o estado físico das condições atmosférica em um determinado momento e local [a influência do estado físico da atmosfera sobre a vida e as atividades do homem]; Clima é o estudo médio do tempo para o determinado período ou mês em uma certa localidade [características da atmosfera observadas continuamente durante um certo período].
Por isso, tem dia de tempo quente em mês de clima frio e dia de tempo frio em mês de clima frio. E como o clima no mundo mudou, com o aquecimento do planeta comprovado cientificamente, é imprescindível que na gestão das cidades sejam considerados os riscos das mudanças climáticas [chuva e calor mais intensos] e incorporados conceito e construção da resiliência.
No estudo Rio Resiliente Diagnóstico e Áreas de Foco [parte da Estratégia de Resiliência] tão indicadas as principais ameaças pra cidade relacionadas às mudanças climáticas: Chuvas intensas, ondas e ilhas de calor, ventos fortes, elevação do nível do mar, secas, dengue e outras epidemias. Alguns dos principais desafios pro Rio se tornar uma cidade resiliente são relativos ao clima. A definição de resiliência tá logo no sumário desse documento público elaborado pela prefeitura do Rio [na última gestão do Eduardo Paes]: “Resiliência é a capacidade de indivíduos, comunidades, instituições, empresas e sistemas se adaptarem e crescerem para sobreviver, não importando que tipo de estresses e choques venham a experimentar. A resiliência permite que as pessoas se recuperem mais fortes, depois de tempos difíceis, e vivam melhor nos bons tempos.”
Outro desafio apontado no diagnóstico é a atuação de grupos criminosos. A “gestão” do Crivella, além de ignorar uma estratégia crucial pra cidade, é permissiva, omissa, e faz de conta que as milícias não tão expandindo construções irregulares na cidade.
A vida das pessoas, as perdas das pessoas
A explicação do tempo pro temporal é da previsão meteorológica: ventos trazendo umidade do mar pro continente, fortes correntes de vento, rajadas de mais de 100kms por hora, formação de nuvens de tempestade, linha de estabilidade grande e lenta, riscos de alagamentos e deslizamentos. Tudo previsto pro momento e pro local determinados.
A explicação do clima pro temporal é o alerta ignorado da realidade dos extremos: o planeta tá mais quente, o aquecimento mudou o clima, a mudança climática faz chuva e calor serem mais intensos. Tudo comprovado em registros de séculos e em estudos científicos constantes e atuais.
Portanto, não basta reagir às previsões do tempo, é preciso agir pelo clima. E agindo pelo clima também se prepara as cidades pro que a previsão do tempo anuncia e se melhora a reação. No entanto, pro prefeito do Rio é o bastante limpar bueiro em alguns meses e reclamar de que tem sempre muito lixo: “tamo fazendo operação de limpa bueiro há 3 meses, mas, é sempre muito lixo” [confere aqui a declaração do Crivella na reportagem do RJTV].
Se “é sempre muito lixo” na cidade, é óbvio que 3 meses de limpada de bueiro não resolve. Muito lixo vira menos lixo com coleta seletiva, reciclagem, compostagem, reposição de lixeiras públicas e educação ambiental, além da varrição. Na Rocinha, que foi em parte evacuada no temporal, a prefeitura destruiu a sede do projeto Olho no lixo, que fazia o manejo correto de recicláveis e aumentava a retirada de materiais do ambiente [o terreno do projeto, cedido pelo governo estadual, foi desapropriado pela prefeitura sem autorização e sem pedido de cessão]. A prioridade do prefeito na Rocinha foi melhorar a aparência da fachada dos imóveis de frente pra via porque tava “muito feinha”.
Preparar as cidades pro clima extremo, chuva e calor mais intensos, não é trabalho de um dia, é constante, é todo dia. E é com a participação cidadã dos moradores informados e motivados pra cuidar do lugar em que mora, a casa comum a toda gente. Quando moradores percebem a atuação da prefeitura, atendendo a interesses coletivos, fica mais fácil motivar o envolvimento no cuidar dos ambientes em que a gente mora, transita, trabalha.
É sempre no segmento mais pobre das populações que cai o peso das perdas em vidas e em bens materiais comprados com muito esforço em trabalho e financiamento. É injusto e doído. Dias depois dos estragos, a prefeitura sequer atendeu a todas as localidades atingidas. A prefeitura só enviou equipes pro Vidigal depois que a atriz Roberta Rodrigues postou vídeo nas redes sociais mostrando a situação dramática e a falta dos serviços públicos necessários da Comlurb, da Defesa Civil.
A combinação de urbanização e mudanças climáticas exige políticos preparados pra prover as cidades com resiliência e adaptação. A combinação de urbanização e mudanças climáticas requer que a imprensa amplie e qualifique a cobertura da pauta ambiental, sobre meio ambiente, clima e sustentabilidade. E no contexto da “nova era” de ôtoridades negacionistas, que deturpam fatos e inventam conspirações contra a soberania nacional sem a menor vergonha da falta de honestidade, ambientalistas e produtores de conteúdo especializado em meio ambiente e sustentabilidade precisam ampliar seu alcance e chegar, nos cidadãos, em especial nos moradores de favelas e periferias. Por isso, aliás, meu primeiro artigo pro Voz das Comunidades foi sobre as iniciativas extraordinárias em meio ambiente e sustentabilidade empreendidas nas favelas cariocas [acessa aqui pra ler].
Beatriz Diniz é Jornalista especializada em Gestão Ambiental, Sustentabilidade nas Cidades, Desenvolvimento Sustentável e Responsabilidade Socioambiental Empresarial, especialista em Marketing de Conteúdo e Comunicação de Propósito.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 12/02/2019
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O diagnóstico é correto e bastante completo, so gostaria acrescentar que a medida mais importante para mitigar as enchentes urbanas é de manter o maior volume de chuva possível em cada propriedade, deixando-a infiltrar, reter temporariamente ou ainda estocando-a para usos não-potáveis conforme norma ABNT 15.527, que está nos estágios finais de atualização. Piscinões podem ser importantes para amenizar os problemas antigos, mas é importantíssimo que novas construções incorporem sistemas de retenção e armazenamento desde o projeto.
Beatriz, muitíssimo obrigada por seu artigo. Resume a situação perfeitamente.