Pesquisador faz uma análise sobre o ciclo de preços das commodities e o risco de desastres como o de Mariana e Brumadinho
‘Brumadinho é uma tragédia estrutural, um ponto previsível numa curva de grandes desastres que ainda pode aumentar’
Entrevista Rodrigo Salles Perreira dos Santos : Professor e pesquisador do grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), faz uma análise sobre o ciclo de preços das commodities e o risco de desastres como o de Mariana e Brumadinho
A Barragem I, da Mina Córrego do Feijão, da mineradora Vale, se rompeu na última sexta-feira (25 janeiro) em Brumadinho, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Em pouco tempo, o mar de lama atingiu casas, uma pousada, escritórios e um refeitório da empresa, deixando até o fechamento desta entrevista, quase cem mortos e 259 desaparecidos. O desastre ocorreu pouco mais de três anos depois do crime ambiental em Mariana, também em Minas Gerais – que, em novembro de 2015, liberou cerca de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração na região e deixou 19 mortos após rompimento de barragem de Fundão, da mineradora Samarco, que era operada pela anglo-australiana BHP Billiton e também pela Vale.
Rodrigo Salles Pereira dos Santos, professor e pesquisador do grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), faz uma análise sobre a relação entre o ciclo de preços das commodities e o risco de desastres como o de Mariana e Brumadinho. Além disso, ele aponta para a necessidade de o poder público agir rapidamente para evitar novas tragédias. “Vários pesquisadores já apontavam isso e, a partir, do desastre de Mariana, a concentração de estudos nesse setor produziu quase um consenso de que o desastre cometido pela Samarco não tinha sido um episódio esporádico e sim uma representação do modo como a indústria extrativa brasileira operava”, alerta.
Por Julia Neves – EPSJV/Fiocruz |
Três anos depois de Mariana, outra barragem se rompe. Quais as semelhanças nos desastres de Mariana e Brumadinho?
No PoEMAs, costumamos fazer uma divisão entre dois momentos importantes na indústria extrativa mineral – o de boom quando os preços estão subindo muito,entre 2002 e 2011, e o de pós-boom, quando há uma queda drástica nos preços. Então, é importante entender estes dois grandes desastres dentro desta perspectiva. São desastres que ocorrem nos momentos em que os preços estão caindo. Então, você tem uma primeira dimensão que aproxima os desastres que é econômica. Este é o momento em que os preços estão muito baixos, e isso produz ou produziu um efeito em que rendimentos relacionados à mineração estavam muito baixos. Isto significa que os acionistas das mineradoras pressionam muito por resultados e as empresas passaram a ser reestruturar para reduzir sua própria dívida e os custos operacionais, o que tem muito a ver com a segurança das barragens e das operações de modo geral. Então, este é um cenário em que a segurança das barragens foi, provavelmente, muito comprometida exatamente por conta da pressão sobre os custos.
Nesse cenário econômico negativo, você tem outra dimensão política institucional que é mais geral. No caso da regulação ambiental no Brasil, a gente costuma dizer que vivemos dentro de um modelo de regulação fraca em que você tem uma legislação que é ou era muito avançada, mas que os processos de monitoramento e fiscalização relacionados a ela são muito frágeis. Da mesma forma, o monitoramento e a fiscalização de barragens no Brasil sempre foram insuficientes. A Agência Nacional de Águas tem um cadastro de barragens de água no Brasil e uma parte substancial delas a gente não tem nem atestação da segurança comprovada. Além disso, a Agência Nacional de Mineração melhorou muito recentemente as informações sobre barragens, mas ainda depende das informações fornecidas pelas próprias empresas.
E por fim, ainda falando deste modelo de regulação fraca, a gente vive uma espécie de prisão mental em torno das barragens. Existem muitas outras tecnologias de disposição de rejeito de mineração que não utilizam ou usam água. Vale ressaltar que a presença de água nos rejeitos de mineração é um elemento importante e que explica o volume de perdas humanas que ocorreu agora, mas em geral quando a gente observa esses impactos, tanto depois de Mariana, quanto agora, as pessoas só conseguem falar de aumento de segurança das barragens. Mas na verdade, devíamos estar falando de moratória, do fim de determinados tipos de barragens pelo menos ou de uma moratória completa em que a gente deveria estar investindo em tecnologia de não barragem. Além disso, a partir de Mariana a gente introduz o princípio de outro modelo que é de privatização da regulação, que fica muito explícito no caso da Fundação Renova. As empresas que são responsáveis pelo desastre criam uma fundação e esta será responsável por lidar com os impactos do desastre.
Você fez uma ligação entre a flutuação do preço das commodities e acidentes como esses. O que acontece quando o preço sobe, como no período do boom? E o que acontece quando o preço baixa, como mais recentemente?
Começou a circular uma interpretação de que é nesse momento do pós-boom, a partir de 2012, que esses desastres ocorrem. Mas a gente precisa ver isso de forma combinada. A relação dos desastres é com o ciclo de preços. A mineração é um setor, como os setores de commodities de um modo geral, muito caracterizado pela oscilação de preços. Historicamente é assim. O boom começa em 2002 e vai até 2011. Em 2008, tem-se uma queda de preços relacionada à crise mundial, mas rapidamente isso se recupera.
O boom de preços acontece porque há uma demanda chinesa que é absolutamente inédita – a indústria siderúrgica e as obras de infraestrutura na China puxam muito o preço dos minérios e, em particular, do minério de ferro, e, além disso, você tem um processo de especulação de preços futuros de metais. O minério de ferro não estava incluído inicialmente, mas posteriormente começa a ser objeto de especulação. Quando esse processo começa a ser puxado pela China e pelos mercados financeiros, o que se observa é uma aceleração do investimento em bens de capital, ou seja, o número de projetos de infraestrutura vai se ampliar rapidamente e a escala também aumenta. Esses projetos podem ser tanto das minas e barragens quanto de ferrovias e minerodutos.
Em 2012, o número de investimentos para esse tipo de infraestrutura chegou a 220 bilhões de dólares no mundo. Além disso, as empresas ampliaram e diversificaram os investimentos delas. Isso, no período do boom, significava uma elevação muito grande das receitas. A Vale, em 2010, chega a ter um lucro líquido de mais de 30 bilhões de dólares. A partir de 2012, com o pós-boom, tem-se uma queda drástica dos preços. O final de 2015 é o ponto mais baixo, um mês depois do desastre de Mariana, a gente tem o menor preço internacional do minério de ferro, por cerca de 40 dólares. Isso faz com que os investimentos em expansão de infraestrutura parem e, imediatamente, os investimentos das mineradoras caem. A partir desse momento, os dividendos que as mineradoras pagavam para os seus acionistas se tornaram negativos. Então, esses investidores começavam a pressionar as empresas para que elas se reestruturassem. Com isso, as empresas focam em reduzir a dívida que tinham acumulado antes e reduzir os custos para responder esses investidores.
Na Vale isso ficou muito claro. Ela começa a vender vários dos seus ativos e se preocupar com os negócios que para ela são centrais, como o minério de ferro, focando no aumento da produtividade. Ou seja, vai intensificar a produção. É nesse momento que a Vale inaugura a maior mina de ferro do mundo, em Carajás, no Pará. Esse cenário vai gerar processos de aceleração de licenciamento, utilização de tecnologias defasadas por serem mais baratas e projetos com muitos problemas. O que a gente observa é a combinação do crescimento das infraestruturas de disposição de rejeitos no boom e uma necessidade de reduzir os custos no pós-boom. Quando se junta redução de custos com a escala dos projetos, os impactos serão muito maiores em termos de volume e gravidade. Não é a toa que os dois maiores desastres de mineração do mundo ocorreram no Brasil exatamente em 2015 e agora em 2019.
A lógica de operação da indústria extrativa mineral é da redução de custos e do aumento expressivo do nível de pagamento de dividendos. Isso faz com que o risco aumente exponencialmente.
Como funciona um complexo minerário como o da Mina do Córrego do Feijão?
O complexo minerador Paraobepa, em particular, é bastante grande e importante, tem 13 infraestruturas de disposição de rejeitos e água, ou seja, 13 barragens. Em Minas Gerais são mais de 300 barragens só da Vale. Esse complexo extraiu 26 milhões de toneladas em 2017 e respondeu por 7% do volume total extraído da Vale. A Mina Córrego do Feijão, ligada à barragem que rompeu, utiliza uma técnica de barragem que é considerada antiga, o alteamento de montante. Ela tinha capacidade de 12,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos, e já tinha atingido sua capacidade máxima e não recebia rejeitos desde 2015, segundo a Vale.
O complexo de Paraoapeba está conectado a mercadores internacionais. Ele é ligado pela Estrada de Ferro Vitória-Minas até os portos do Sudeste, em particular, aos portos no Rio de Janeiro e Espírito Santo, estando voltado para a exportação desse mineral. Quando a gente fala do funcionamento dessas estruturas, precisamos observar a relação entre minas e barragens, ferrovias, minerodutos e portos. De modo geral, os impactos desse tipo de estrutura são em rede, impactos ambientais múltiplos. E na maior parte do tempo, o licenciamento ambiental e a fiscalização observam esses impactos de forma fragmentada.
Temos impactos de desmonte de rocha, problemas de ruptura de barragem… Exatamente porque esse minério tem baixa qualidade, necessita-se de barragens com escala cada vez maior. Então boa parte das barragens da Vale implica algum risco, desde risco baixo a muito alto, às comunidades próximas. Isso dentro do complexo. Mas quando se vê o circuito inteiro, pode-se ter vazamento de polpa de minério de ferro nos minerodutos ou acidentes ferroviários, por exemplo.
Existe mineração “segura”?
A mineração é uma operação industrial e não existe operação industrial segura. O que está em jogo por trás é uma lógica que reduz a segurança e aumenta o risco exatamente porque as empresas mineradoras são financiadas por acionistas em mercados financeiros e esses acionistas, por sua vez, pressionam as mineradoras para receberem os maiores dividendos possíveis. E elas então precisam reduzir custos. A lógica de operação da indústria extrativa mineral é da redução de custos e do aumento expressivo do nível de pagamento de dividendos. Isso faz com que o risco aumente exponencialmente. Não é possível fazer mineração segura, é possível fazer ‘mais segura’.
Tragédias desse tipo já estavam anunciadas há bastante tempo.
A Vale pediu para aumentar a capacidade de exploração da mina do Feijão em 88%; e, além disso, a barragem que rompeu seria também explorada, o rejeito de minério que estava ali seria, de alguma forma, aproveitado pela empresa. Você pode explicar o contexto desta tentativa de ampliação e exploração, assim como os problemas envolvidos?
Esta expansão é uma ampliação da extração de duas minas, Jangada e Córrego do Feijão, de 88%. Se não me engano isto foi mencionado em uma reunião ou em uma audiência pública por uma ativista, a Maria Teresa Corujo. No geral, até o momento em que o boom se manifesta em 2002, as mineradoras tendiam a perder muito minério nos seus rejeitos. Por exemplo, as barragens de rejeitos mais antigas da Vale têm o conteúdo de ferro de mais ou menos 25%, ou seja, é possível minerar o rejeito que está dentro da barragem. Por que isto começa a ocorrer? Porque, em geral, as maiores minas do mundo, em termos de qualidade e quantidade, elas já estão dominadas por grandes empresas mineradoras. À medida que o minério vai sendo explorado, essa qualidade vai diminuindo e o estado de Minas Gerais e Quadrilátero Ferrífero já são muito marcados por essa redução de qualidade e quantidade. Várias minas foram esgotadas e as empresas precisam lidar com as necessidades de substituir as suas reservas. Ou seja, de um lado você tem redução de qualidade e quantidade das reservas disponíveis, isso é muito importante para entender o caso do Quadrilátero Ferrífero e, de outro lado, os preços começam a subir e a demanda chinesa a crescer. O minério está se tornando mais difícil, então é fundamental utilizar todas as reservas disponíveis, inclusive as contidas em barragens. Isto vai produzir algumas consequências. Em primeiro lugar empresas como a Vale começam a aproveitar reservas de baixo teor e começam a criar, adotar e difundir tecnologia de recuperação de rejeitos finos e ultrafinos. Aquilo que era lixo antes, com nível de preços mais elevados e perda de qualidade e quantidade das reservas se torna economicamente viável. Então a Vale, por exemplo, cria um projeto em 2009, que se chama Projeto Barragem Zero. Ele está assentado em uma tecnologia de filtragem com objetivo de retirar a umidade da lama, recuperar os rejeitos de minérios e aglomerá-los, ou seja, aquilo que era lixo passa a se tornar produto economicamente viável. À época, a Vale também começa a adotar outras tecnologias, o processo de separação do minério do rejeito vai se tornando cada vez melhor, aquele teor de 25% chega a atingir 12%. Além disso, ela começa a adotar concentração magnética de rejeitos úmidos. Várias tecnologias que são combinadas para reduzir o risco de geração de grandes volumes de rejeitos para não ter que dispô-los em grandes barragens. Com a redução dos preços, a empresa deixa de investir em tecnologia e deixa de apostar na diversificação dessa matriz. Ao invés de tentar outros mecanismos de disposição de rejeitos, como empilhamento a seco que não produz esse risco de perdas humanas, a Vale abandona esses tipos de soluções e se concentra em fazer o que já fazia, utilizar essas tecnologias mais arriscadas. Além disso, o Estado não faz absolutamente nada para incentivar e induzir a adoção dessa tecnologia como, por exemplo, a limitação de tamanho de barragens de rejeitos de grands porte.
Eu não descartaria novos desastres ainda maiores se alguma coisa não for feita rapidamente.
Segundo o Intercept Brasil, a Vale omitiu informações sobre falhas nos procedimentos de controle e manutenção da barragem. Em seu Relatório de Impacto Ambiental, apresentado em 2017, a empresa cortou uma tabela importante que alertava para os riscos, produzida no Estudo de Impacto Ambiental de 2015. Brumadinho já era uma tragédia anunciada?
Esse tipo de omissão de informação, a não entrega de projetos executivos de barragens, como aconteceu com a Samarco, em Mariana, são altamente disseminados nos grandes projetos de mineração no Brasil. As mineradoras vão ser muito apoiadas pela necessidade de acelerar os processos de licenciamentos por parte dos governos estaduais e federal. Outras barragens podem estar na mesma situação. O que parece certo é que tragédias desse tipo já estavam anunciadas há bastante tempo . Vários pesquisadores já apontavam isso e, a partir, do desastre de Mariana, a concentração de estudos nesse setor produziu quase um consenso de que o desastre cometido pela Samarco não tinha sido um episódio esporádico e sim uma representação do modo como a indústria extrativa brasileira operava. Naquele momento, a gente já dizia, através de estudos, que mesmo uma barragem menor como a de Brumadinho, a tragédia podia ser muito maior por conta do conteúdo líquido. Brumadinho é uma tragédia estrutural, um ponto previsível numa curva de grandes desastres que ainda pode aumentar. Eu não descartaria novos desastres ainda maiores se alguma coisa não for feita rapidamente.
Na prática, a regulação no Brasil atende primeiro ao critério de desenvolvimento e de expansão da indústria extrativa, que essencialmente é arriscada.
Esses estudos foram feitos por uma empresa de consultoria privada e não foram questionados pelos órgãos ambientais. O que essa situação desvela dos problemas mais gerais de licenciamento e fiscalização da mineração no país?
A gente tinha uma boa legislação, mas agora está mudando para pior. O modo como a regulação que estava prevista nessa legislação é feita é no mínimo insuficiente. Isso está vinculado a uma baixa capacidade institucional dos órgãos ambientais e de fiscalização. Até pouco tempo, a Agência Nacional de Mineração (ANM) era o Departamento Nacional de Produção Mineral. O modelo de agência reguladora visa favorecer a aceleração da implantação de projetos privados. A ANM é uma estrutura que está no setor público, mas que visa reduzir os elementos mais duros de regulação. A gente está observando que esse modelo fraco de regulação está andando para um movimento de privatização ou de autorregulação. A Fundação Renova é a maior expressão disso. Junto ao maior desastre de mineração do mundo, o de Mariana, o que é feito para lidar com esses problemas é privatizar o controle da mitigação dos impactos. Isso tudo está muito ligado a uma ideia de que o ambiente deve estar a serviço do desenvolvimento econômico. Na prática, a regulação no Brasil atende primeiro ao critério de desenvolvimento e de expansão da indústria extrativa, que essencialmente é arriscada . Processos de licenciamento e as formas de monitoramento precisam ser necessariamente lentos e, muitas vezes, são incompatíveis com as demandas das empresas mineradoras que estão olhando a todo momento a curva de preços. Ou seja, se os preços estão altos vale a pena implementar um projeto. Se estão baixos, fica na espera.
Pensando na mineração, quais os riscos de facilitar ainda mais o processo de licenciamento?
Dá para pensar em pelo menos três ordens de risco. O primeiro é a ampliação dos impactos ambientais em todas as etapas dessa rede de produção. Quanto mais fácil for a implementação de projetos, menor é o cuidado e a qualidade técnica dos projetos e obras. Por exemplo, nas minas, é possível que a gente observe de modo cada vez mais grave a proximidade de áreas urbanas com áreas de mineração, o que amplia muito a poluição atmosférica. Nas barragens a gente está vendo o efeito… E novos desastres desse tipo com maior volume de rejeitos sendo jogados na natureza e perdas muito expressivas de vidas humanas podem ser vistas no futuro. Além de acidentes com mortes envolvendo os sistemas de transporte, dos minerodutos até ferrovias.
Um segundo tipo são os acidentes de trabalho, nos quais a indústria extrativa mineral é uma das campeãs no Brasil e no mundo, inclusive com vítimas fatais. É muito comum que acidentes graves ocorram em áreas de mineração como, por exemplo, caminhões fora de estrada passem por cima de carros de passeio. Empresas como a Vale mantém uma média de acidentes fatais relativamente alta.
Por fim, a gente percebe algo que se tornou muito importante a partir do desastre provocado pela Samarco, mas que é uma característica essencial de todos esses projetos: em geral, eles afetam várias populações, urbanas ou rurais, tradicionais ou não, de modo indireto ou direto. E à medida que a gente tem a ampliação desses impactos com novos projetos com licenciamentos piores, essas populações tradicionais, como ribeirinhas e quilombolas, não têm como viver em seus territórios. Com isso, provavelmente, terão que migrar para áreas urbanas gerando uma urbanização deficiente, pressionando os serviços públicos e gerando favelização. No limite, isso pode impactar no aumento da violência urbana e na necessidade dessas pessoas obterem trabalho, que não está disponível amplamente para uma população que é pouco qualificada do ponto de vista do mercado formal. Então, na verdade, o que acontece é uma transformação completa das condições de vida dessas populações.
Como você avalia a atuação do Estado na concessão das licenças de exploração de minérios? O que precisa mudar no país?
Do ponto de vista do Estado brasileiro, a gente vem fazendo uma opção que muitos chamam de neodesenvolvimentista, mas que, pelas consequências efetivas, é muito mais neoextrativista. O modelo de desenvolvimento econômico que a gente passa a implementar a partir do início dos anos 2000 aposta muito nas indústrias intensivas em bens naturais e, em particular, na mineração e no ferro. Durante o período do boom, observou-se claramente a expansão da indústria extrativa mineral no Produto Interno Bruto brasileiro. Então, a participação dessa indústria no Valor Adicionado gerado pela economia brasileira passou de 1,6% no início da década para 4,1%. Basicamente triplicou o tamanho da indústria extrativa mineral na economia brasileira ao longo dos anos. Isso provocou uma ampliação e difusão dos impactos ambientais no território, muitas localidades que não tinham nenhum contato com mineração passaram a ter. Por exemplo, ferro passou a ser minerado no Piauí e no interior da Bahia. Então, os conflitos ambientais se ampliaram muito, e, com isso, houve o estabelecimento de redes de atingidos, se criou um Comitê Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração… A partir de 2016, com a mudança de governo, essa opção neoextrativista muda de tonalidade. Tanto nas declarações do ex-presidente Temer quanto nas falas do presidente Bolsonaro, a gente observa que essa opção neoextrativa se associa a uma dimensão conservadora. O que vemos percebendo, ainda de maneira tímida, é que a legislação mineral não se alterou completamente, mas que a atitude prática do governo federal tem sido de aprofundar a tendência neoextrativa, mas agora com a visão de atração do capital externo. E de maneira preocupante com um tratamento autoritário e militarizado do conflito ambiental, com críticas diretas ao ativismo ambiental. É muito difícil mudar essa situação, porque essa opção neoextrativa está vinculada à ideia de desenvolvimento econômico como se esse desenvolvimento fosse algo exclusivamente positivo. De um ponto de vista sociológico, o desenvolvimento precisa ser avaliado a partir dos impactos que ele produz para grupos sociais específicos. Para alguns deles o desenvolvimento pode ser uma tragédia . Para populações indígenas e quilombolas, por exemplo, a modificação das suas condições de reprodução social é vista como uma tragédia. Mesmo que a mineração gere empregos e receitas, esse tipo de beneficio é contabilizado exclusivamente pelo Estado e pelas pessoas que recebem esses benefícios. Essa concepção moralizada de desenvolvimento precisa ser mudada. Ele pode ser um bem e um mal, mas precisa ser avaliado concretamente a partir dos efeitos que produz para grupos sociais.
Quais foram os problemas em relação à responsabilização das empresas em Mariana? De acordo com os primeiros sinais, isso deve mudar em relação à Brumadinho?
Em Mariana, as empresas de início estabeleceram uma estratégia bastante clara: elas não assumiram culpa nenhuma. As declarações iniciais dos diretores das empresas envolvidas nunca incorporavam desculpas pelos impactos do desastre. Progressivamente, a Vale em particular buscou se desresponsabilizar se separando da Samarco, estabelecendo uma visão de que a Samarco era uma empresa absolutamente independente e que geria suas barragens sem conexão com as operações da Vale. Só depois se descobriu que a Vale depositava rejeitos das suas minas na barragem de Fundão. Então essa tentativa de desresponsabilização, do ponto de vista discursivo, funcionou em alguma medida, mas do ponto de vista factual não faz nenhum sentido. As três empresas eram responsáveis. Quando os processos judiciais começaram a ser estabelecidos, as empresas e a Vale, em particular, buscaram utilizar o recurso do Termo de Ajustamento de Conduta, o TAC, que é visto pelos promotores como um mecanismo que garante os direitos da população de maneira rápida, porque processos judiciais como esses podem durar muito tempo. Mas as empresas usam o TAC de outra maneira. Em geral, elas estão preocupadas em reduzir os custos com os processos judiciais, que podem ser imprevisíveis. Um segundo elemento é que o TAC permite que as empresas voltem a operar. No caso da Samarco, em particular, isso não foi verdade pela magnitude do desastre.
Esses são elementos fundamentais que devem ser modificados agora com Brumadinho. A Vale certamente vai se articular para proposição de TACs. Isso num primeiro momento ainda não é falado, mas é importante prestar atenção nesse tipo de movimentação. É muito provável que operadores jurídicos e o governo federal se mostrem favoráveis a esse tipo de mecanismo, quando na verdade as empresas precisam ser responsabilizadas judicialmente por desastres desse tipo. O exemplo da Samarco em Mariana acabou não provocando modificações expressivas no modo como a indústria extrativa mineral opera no Brasil.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 04/02/2019
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