Numa sociedade drogada pelo petróleo, só se enxergam os números do PIB
Numa sociedade drogada pelo petróleo, só se enxergam os números do PIB. Entrevista especial com Tomas Togni Tarquinio
Por João Vitor Santos, IHU
“O planeta consome aproximadamente 90 milhões de barris [de petróleo] por dia. Se empilhados um barril sobre o outro (0,80 cm de altura por 0,50 cm de diâmetro), teríamos uma coluna da ordem de 75 mil quilômetros”. Tomás Togni Tarquinio usa o exemplo para tentar clarear ainda mais o quanto a sociedade de nosso tempo é dependente das energias geradas a partir de fontes fósseis, do petróleo. Se por um lado já percebemos alguns lampejos sobre a importância de racionar o consumo de água, quando o assunto é petróleo vivemos ainda na escuridão. “Consumimos diariamente mais petróleo do que água potável”, compara. Para ele, ainda vivemos como cegos, correndo atrás de melhores performances do Produto Interno Bruto – PIB. “É muito fácil propor o crescimento do PIB, é uma solução reconfortante para a população. O difícil é manter um discurso revelando os limites que a crise ecológica nos impõe. As propostas políticas não supõem que vivemos em um planeta finito”, dispara, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
E essa ainda não é uma questão só de políticos e do poder público. A sociedade de hoje é ávida pela geração de mais e mais tecnologia, só que não se dá conta de que, além de a automatização minar postos de trabalho, para fabricar e manter essas máquinas em funcionamento é preciso sempre mais e mais energia. “A continuidade desse processo nos levará ao colapso de nosso modo de vida e cujas consequências serão dramáticas. O que nos resta a fazer é procurar soluções que permitam que a humanidade se adapte a estas novas condições e desde agora”, aponta. Assim, observa que não adianta aumentar o PIB se isso acelerar ainda mais a degradação do planeta. Para romper com isso é preciso se dar conta de que vivemos entorpecidos pelas energias fósseis. Ou, como Tarquinioformula: “a sociedade está drogada pelo petróleo”.
Também é preciso vigilância, porque, como aponta o pesquisador, não basta apenas converter o uso de energias fósseis para as chamadas energias limpas, como o carro elétrico, por exemplo, por ser apenas uma solução parcial ao drama. “O importante é saber como será feita a eletricidade, com carvão, gás natural, petróleo? É verdade que o veículo elétrico reduz a poluição atmosférica nas cidades, mas não elimina as emissões de CO2 se a eletricidade for produzida com carvão. Estas emissões estarão sendo produzidas e concentradas em pontos fixos, nas grandes usinas termoelétricas, hidroelétricas ou nucleares, e não mais em pontos móveis como ocorre com os veículos com motor térmico”, adverte.
Tomás Togni Tarquinio iniciou estudos de Economia na Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP e na Universidade de Chile. Licenciou-se em Etnologia/Antropologia na Universidade Paris VII. Ainda realizou doutorado em Economia Industrial, em Paris I, e pós-graduação em Prospectiva de Energia/Recursos Naturais, pela EHESS Paris. Trabalhou na interface ecologia/desenvolvimento em várias instituições francesas (GERPA, Groupe EDEN, Holos), europeias e internacionais (UE, OCDE, IPEE, Uruguai, Bolívia, Peru, Portugal, Espanha, Equador) e Brasil (Paraná, Amapá). Foi secretário de Governo do Amapá, gerente no Ministério do Meio Ambiente e assessor no Senado Federal.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Recentemente, em artigo publicado, o senhor afirma que “o crescimento do PIB não resolve o problema do emprego, da distribuição da renda e tampouco o da crise ecológica” . Gostaria que retomasse essa reflexão e analisasse por que o crescimento do Produto Interno Bruto – PIB a qualquer custo parece ser a única grande meta dos governos?
Tomás Togni Tarquinio – Crescimento de PIB indica que houve crescimento da extração de recursos naturais do país ou do planeta para produzir bens e serviços. Crescer significa aumentar a produção econômica, ou seja, transformar recursos naturais em outras coisas. E estas transformações são possíveis graças ao emprego de máquinas movidas a energia. E a energia substitui o trabalho humano com muito mais eficiência. Há aumento de produtividade. E redução do emprego. E produzir significa mais veículos, mais petróleo, mais minério. E mais gases de efeito estufa.
Se pautar pelo crescimento do PIB é ficar reduzido a uma visão de curto prazo e à qual se adequam bem os políticos que nunca levam em consideração a questão da finitude de nosso planeta terra. Os políticos anseiam por respostas imediatas aos problemas, inclusive ambientais e ecológicos.
Infelizmente, o tempo político é diferente dos tempos da natureza. É muito fácil propor o crescimento do PIB, é uma solução reconfortante para a população. O difícil é manter um discurso revelando os limites que a crise ecológica nos impõe. As propostas políticas não supõem que vivemos em um planeta finito, fato que os conduz a pensar que o crescimento exponencial dos recursos naturais vai durar indefinidamente. Acreditam que a tecnologia vai resolver as questões do esgotamento dos recursos, da perda de biodiversidade, das poluições e das mudanças climáticas.
Limites do planeta
Na verdade, ainda não assimilaram que não podemos continuar indefinidamente a extrair recursos do planeta, que estes se esgotarão, que a terra tem apenas 12,7 mil quilômetros de diâmetro e 40 mil de circunferência. E que ela já era deste tamanho milhões de anos antes da revolução industrial.
Os governantes não se preocupam com os signos de esgotamento dos recursos naturais – Tomás Tarquinio
Os governantes não se preocupam com os signos de esgotamento dos recursos naturais: por exemplo, atualmente é preciso cada vez mais investimento para extrair da mina uma mesma quantidade de minério, seja cobre, petróleo ou outro. É preciso cada vez mais capital para se obter uma mesma quantidade de matérias-primas. Mas chegará um momento em que haverá queda da produção por falta de matérias-primas em quantidades suficientes.
IHU On-Line – Como o investimento em inteligência artificial pode contribuir não só para o crescimento do PIB, mas para a geração de emprego, o combate às desigualdades e a redução dos impactos da crise ambiental?
Tomás Togni Tarquinio – A inteligência artificial não é diferente de outros processos de aumento da produtividade que levaram à redução da participação do trabalho humano na produção de bens e serviços. O trabalho humano foi substituído por máquinas, aumentando a produtividade e o emprego de energias, particularmente fósseis. Aumenta-se a produtividade e com isto o PIB.
Este processo deveria ser bem avaliado na medida em que é implementado nas sociedades. Ele continua o processo de substituição do trabalho humano por máquinas e robôs que não pagam impostos que são cobrados do trabalho humano, contribuindo para o aumento de déficit público e para a concentração de renda. Quando um trabalhador é substituído por uma máquina que tem uma eficiência 40 vezes maior, esta máquina não recebe salário, não recolhe INSS, nem imposto de renda. E a máquina depende de energia para funcionar e contribui para o aquecimento global, pois ainda 85% das energias empregadas no planeta são fósseis, emissoras de gases de efeito estufa.
IHU On-Line – No que diz respeito à inteligência artificial, há inúmeros projetos na área de transportes que propõem alternativas aos veículos movidos a combustíveis fósseis. Como avalia essas iniciativas? Em que medida levam a uma outra cilada, livrando a necessidade de uso de combustíveis?
Tomás Togni Tarquinio – O setor de transporte mundial é tributário do petróleo em 95% do total de energia consumida por este setor. Tudo que foi movido ou está em movimento foi feito graças ao petróleo.
É verdade que o veículo elétrico reduz a poluição atmosférica nas cidades, mas não elimina as emissões de CO2 se a eletricidade for produzida com carvão – Tomás Tarquinio
A questão da substituição de veículos alternativos elétricos por veículos com motor térmico depende de com qual energia primária ele vai funcionar. O importante é saber como será feita a eletricidade, com carvão, gás natural, petróleo? É verdade que o veículo elétrico reduz a poluição atmosférica nas cidades, mas não elimina as emissões de CO2 se a eletricidade for produzida com carvão. Estas emissões estarão sendo produzidas e concentradas em pontos fixos, nas grandes usinas termoelétricas, hidroelétricas ou nucleares, e não mais em pontos móveis como ocorre com os veículos com motor térmico.
Há um outro problema. O rendimento do veículo elétrico é muito baixo, pois ele transforma em energia mecânica na roda do veículo algo em torno de 15% da energia total destinada ao veículo. Outra questão, ainda, é que não sabemos fazer baterias eficientes. As melhores são feitas de lítio e trata-se de um recurso não renovável e existente em poucos países. Será impossível manter um parque de veículos mundial da ordem de 1,5 bilhão funcionando com baterias de lítio. Sem falar como fazer para transportar sobre um veículo elétrico uma carga de 30 toneladas.
IHU On-Line – Segundo suas reflexões, projetos de crescimento econômico tendem a se tornar insustentáveis porque se apoiam no desenvolvimento de tecnologias que, além de reduzirem postos de trabalho, dependem cada vez mais de energias, especialmente fósseis. Pode nos dar exemplos de projetos de desenvolvimento que estão sendo feitos desse modo? Que alternativas a esse cenário podemos conceber?
Tomás Togni Tarquinio – O melhor exemplo de insustentabilidade é o nosso modo de produção e consumo dominante, que são processos de desenvolvimento clássicos cujo indicador de performance principal é o PIB. Os diversos indicadores que dispomos nos confirmam que atualmente não há nenhuma inflexão nas emissões de CO2 no processo de produção e consumo mundial. Os defensores do crescimento continuam acreditando que vão alcançar um desenvolvimento verde, reduzindo as emissões de CO2 com o emprego de energias renováveis, mantendo níveis elevados de produção e consumo, solucionando a perda de biodiversidade, o esgotamento dos recursos naturais e combatendo as poluições em um planeta que contará com uma população superior a 9 bilhões de habitantes.
O melhor exemplo de insustentabilidade é o nosso modo de produção e consumo dominante – Tomás Tarquinio
Mas, até hoje, não há uma inflexão das degradações ambientais. Ao contrário, elas aumentam. Os indicadores confirmam. As emissões mundiais de CO2 crescem anualmente a uma taxa de 3% superior ao que seria necessário para estabilizar a temperatura média do planeta em 2ºC, no final do século XXI. Para reduzir as emissões de CO2 atuais seria necessário que o crescimento do PIB mundial fosse inferior em 1,5% ao ano. O que não ocorre. Desde o ano 2000, até hoje, as emissões de CO2 praticamente dobraram em quantidade. O crescimento do consumo de energia foi de 40% no mesmo período. Apenas no Brasil, desde 2000, o número de veículos aumentou de 30 milhões para 98 milhões em 2017.
Rumo ao colapso
A continuidade desse processo nos levará ao colapso de nosso modo de vida e cujas consequências serão dramáticas. O que nos resta a fazer é procurar soluções que permitam que a humanidade se adapte a estas novas condições e desde agora.
Em 2017, o consumo mundial total de energia primária foi da ordem de 14 bilhões de Tep [tonelada equivalente de petróleo]; deste total, as energias fósseis respondem por 12,0 bilhões de Tep. Ou seja, 85% do total do consumo mundial de energias no planeta hoje são fósseis. E são essas energias que mais crescem ainda hoje em termos absolutos. O aumento da produção mundial de carvão é maior do que a produção de energia solar e eólica.
Aproximadamente, 70% da eletricidade é produzida por energias fósseis e o carvão responde por 40% da produção de eletricidade mundial. E as energias fotovoltaica e eólica representam 1% do consumo mundial de energia primária atualmente.
IHU On-Line – Como o senhor avalia as contestações que estão sendo feitas à tese de que não há aquecimento global e de que há uma ideologização da questão ecológica?
Tomás Togni Tarquinio – O desprezo pelas fontes científicas é um dos aspectos. O IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas] mobiliza mais de 3 mil cientistas do planeta e emite pareceres bastante fundamentados. Os contestadores nem sequer se dão conta da quantidade de petróleo que consumimos a cada dia. Esta quantidade permite dar uma ideia do que é emitido de CO2 diariamente pela combustão desta fonte de energia.
O planeta consome cerca de 90 milhões de barris por dia. Se fosse um oleoduto, ele daria duas voltas em torno da terra pela linha do Equador. Ou seja, consumimos diariamente mais petróleo do que água potável. A sociedade está drogada pelo petróleo – Tomás Tarquinio
O planeta consome aproximadamente 90 milhões de barris por dia. Se empilhados um barril sobre o outro (0,80 cm de altura por 0,50 cm de diâmetro), teríamos uma coluna da ordem de 75 mil quilômetros. Se fosse um oleoduto, ele daria duas voltas em torno da terra pela linha do Equador. Per capita, cada cidadão do Planeta teria direito a dois litros diários de petróleo. Ou seja, consumimos diariamente mais petróleo do que água potável. A sociedade está drogada pelo petróleo.
IHU On-Line – Como o senhor tem acompanhado as primeiras ações do governo de Jair Bolsonaro no que diz respeito a questões ambientais e de desenvolvimento econômico?
Tomás Togni Tarquinio – Um governo negacionista, infelizmente. E está tomando atitudes com vistas a dar continuidade ao processo de devastação dos recursos naturais brasileiros. Entregá-los à exploração agrícola, mineira, florestal industrial. Um retrocesso sem tamanho.
IHU On-Line – O senhor destacaria alguma ação no mundo a qual considera um exemplo em termos de redução da dependência de combustíveis fósseis?
Tomás Togni Tarquinio – Muito poucas experiências e em geral no setor primário. São epifenômenos. Nada de substantivo está sendo feito para se evitar o aquecimento global. Seriam necessárias decisões radicais: dividir o consumo de energias fósseis por pelo menos um fator 3 para alcançarmos uma temperatura média de 2ºC no final do século. Mas, pelo que está ocorrendo, poderemos chegar aos 2º Celsius ainda em meados deste século.
Se antes pensávamos em reduzir ao mínimo os impactos das mudanças climáticas sobre o planeta e a sociedade, hoje não será mais possível. O que importa hoje é tratar da adaptação a esse mundo diferente – Tomás Tarquinio
Para restarmos no objetivo de 2º Celsius no final do século XXI, é preciso reduzir as emissões de CO2 para menos de 1,5% por ano. Mas o que ocorre é exatamente o contrário. As emissões mundiais de CO2 são da ordem de 1,5% ao ano, ou seja, em defasagem de 3% acima dos objetivos definidos na COP 21. Com esses indicadores, a trajetória que seguimos é para um aumento da temperatura de 3,7ºC a 4,0ºC no final do século. Assim, a escalada de aumento de emissões de CO2 é da ordem de 3% por ano. Sem nenhum progresso tecnológico e ações visando descarbonizar a sociedade, será necessário reduzir o crescimento do PIB mundial atual de 1,5% ao ano para alcançarmos o objetivo de 2,0ºC por ano.
Como alternativa urgente no plano mundial, há que dividir as atuais emissões de CO2 por um fator 3, particularmente as de origem fóssil. Mas nada disso foi feito, nem está sendo feito para os próximos anos. A matriz energética mundial continuará tributária de energias fósseis nos próximos 15 anos.
Por essa razão e desde já, é necessário nos acostumarmos com a ideia de que não será possível fazer tudo que é necessário fazer. Se antes pensávamos em reduzir ao mínimo os impactos das mudanças climáticas sobre o planeta e a sociedade, hoje não será mais possível. O que importa hoje é tratar da adaptação a esse mundo diferente. Se antes pensávamos em melhorar a eficiência no uso de matérias-primas e energia, hoje esse fluxo de consumo cresce mais rapidamente que o PIB mundial. Se tínhamos veleidades quanto à preservação da biodiversidade, esse objetivo não é mais alcançável. Assistimos a um desabamento completo das populações vegetais e animaisno planeta, da ordem de 40% no caso de animais (58% dos vertebrados, por exemplo). E outro fator importante, como manter a paz social durante o período agudo.
Assistimos a uma contrarrevolução conservadora, justamente quando o 1% mais rico do planeta detém 82% da riqueza mundial – Tomás Tarquinio
IHU On-Line – Já tendo passado pela dura experiência da repressão, inclusive como preso político, como tem acompanhado o avanço de posições totalitárias em todo o mundo? E, nesse quesito, como observa a atual conjuntura brasileira?
Tomás Togni Tarquinio – Um retrocesso sob todos os pontos de vista. Economicamente neoliberais, conservadores e autoritários. No tocante às questões ecológicas e ambientais, defendem ideias que não têm mais curso no planeta. Mesmo que os países façam muito pouco para melhorar as condições ecológicas e ambientais, não renegam todo o conhecimento que as instituições internacionais e nacionais têm da questão. Assistimos a uma contrarrevolução conservadora, justamente quando o 1% mais rico do planeta detém 82% da riqueza mundial, segundo a Oxfam.
(EcoDebate, 17/01/2019) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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