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Senso comum, ciência e tecnocracia: ambiguidades e contradições, artigo de Gilvander Moreira

Senso comum, ciência e tecnocracia: ambiguidades e contradições

Por Gilvander Moreira1

O que é senso comum, as relações entre senso comum e ciência, a tecnocracia, que é o governo dos técnicos, ou seja, daqueles que se entendem como cientistas. Em que medida essas questões – senso comum, ciência e tecnocracia – afetam a luta pela terra e por direitos humanos fundamentais? Quais concepções de senso comum e ciência contribuem para que a luta pela terra e por direitos sociais seja pedagogia de emancipação humana?

O senso comum, enquanto conceito filosófico, surge no século XVIII e representa o combate ideológico da burguesia emergente contra o irracionalismo do antigo regime” (SANTOS, 1995, p. 39). A burguesia emergente considerava o senso comum como algo natural, razoável, prudente e pouco a pouco foi apresentando-o como universal. O senso comum não é apolítico, mas está entranhado por relações de poder. Para ascender ao poder, a burguesia mostrou a positividade do senso comum, mas para permanecer e se reproduzir no poder, a burguesia, ao se apropriar do saber científico, começou a menosprezar e ridicularizar o senso comum. “A valorização filosófica do senso comum esteve, pois, ligada ao projeto político de ascensão ao poder da burguesia, pelo que não surpreende que, uma vez ganho o poder, o conceito filosófico de senso comum tenha sido correspondentemente desvalorizado como significando um conhecimento superficial e ilusório” (SANTOS, 21995, p. 39).

A ciência é uma especialização, um refinamento de potenciais comuns a todos” (ALVES, 1981, p. 9). Importa recordar que está no imaginário coletivo e social que “cientista tem autoridade, sabe sobre o que está falando e os outros devem ouvi-lo e obedecê-lo” (ALVES, 1981, p. 7). Nesse diapasão, apregoam os adeptos da tecnocracia, aqueles que entendem a técnica como fruto da ciência, enquanto algo superior a quem não é perito no assunto, e concebe a ciência como sendo superior a todo e qualquer senso comum e, por isso, alegam que quem não é cientista deve obedecer aos cientistas. Mas “é necessário acabar com o mito de que o cientista é uma pessoa que pensa melhor do que as outras” (ALVES, 1981, p. 8), que ciência é neutra, imparcial e absoluta, pois “cientistas são como pianistas que resolveram especializar-se numa técnica só” (ALVES, 1981, p. 8). Podem ter autoridade na técnica na qual se especializaram, mas a vida social é uma sinfonia que para ser tocada exige a interação de uma variedade de técnicas e saberes. Ciência é importante, mas muitas vezes a ciência esquarteja a realidade, que é algo dinâmico e complexo. Um princípio que rege muitos cientistas é saber cada vez mais sobre o menos. O predominante no meio científico é que “físicos não entendem os sociólogos, que não sabem traduzir as afirmações dos biólogos, que por sua vez não compreendem a linguagem da economia, e assim por diante” (ALVES, 1981, p. 8).

Não podemos aceitar o dualismo e nem o maniqueísmo que compreende o que é científico como verdadeiro e o senso comum como algo falso. Convém recordar que “a expressão ‘senso comum’ foi criada por pessoas que se julgam acima do senso comum, como uma forma de se diferenciarem das pessoas que, segundo seu critério, são intelectualmente inferiores” (ALVES, 1981, p. 9). A ciência nasceu e se construiu contra o senso comum, mas toda ciência irrompe, evolui e também caduca, pois, como algo relativo, “aquilo que outros homens, em outras épocas, consideraram como ciência, sempre parece ridículo, séculos depois” (ALVES, 1981, p. 12). Para a ciência evoluir e os cientistas serem respeitados tiveram que caracterizar o senso comum como ilusão, falsidade, conservadorismo, superficialidade, enviesamento.

É necessário também prestarmos atenção à ponderação que Rubem Alves faz ao analisar a relação entre senso comum e ciência. Diz ele: “O senso comum e a ciência são expressões da mesma necessidade básica, a necessidade de compreender o mundo, a fim de viver melhor e sobreviver. E para aqueles que teriam a tendência de achar que o senso comum é inferior à ciência, eu só gostaria de lembrar que, por dezenas de milhares de anos, os homens sobreviveram sem coisa alguma que se assemelhasse à nossa ciência. A ciência, curiosamente, depois de cerca de quatro séculos, desde que ela surgiu com seus fundadores, está colocando sérias ameaças à nossa sobrevivência” (ALVES, 1981, p. 16).

O senso comum se constrói tomando por base o que aparece à primeira vista, busca reconciliar a consciência social com o que existe, melhor dizendo, com o que é percebido e assimilado como existindo. “O senso comum é um conhecimento evidente que pensa o que existe tal como existe e cuja função é reconciliar a todo custo a consciência comum consigo própria” (SANTOS, 1995, p. 34). Diferentemente do senso comum, a ciência se rege pelo princípio do primado das relações sociais, que “estabelece que os fatos sociais se explicam por outros fatos sociais e não por fatos individuais (psicológicos) ou naturais (da natureza humana ou outra” (SANTOS, 1995, p. 34). No século XIX, as ciências sociais nasceram das ciências naturais e em oposição ao senso comum, “mas ao contrário das ciências naturais, que sempre recusaram frontalmente o senso comum sobre a natureza, as ciências sociais têm tido com ele uma relação muito complexa e ambígua” (SANTOS, 1995, p. 40). Há ciências sociais que reconhecem aspectos positivos no senso comum e outras, não. As ciências sociais reconhecem sensos comuns e não apenas senso comum. Podendo apresentar uma vocação solidarista e transclassista, o senso comum apresenta, muitas vezes, um tom conservador e preconceituoso, conforme alerta Santos: “Se o senso comum é o menor denominador comum daquilo em que um grupo ou um povo coletivamente acredita, ele tem, por isso, uma vocação solidarista e transclassista. Numa sociedade de classes, como é em geral a sociedade conformada pela ciência moderna, tal vocação não pode deixar de assumir um viés conservador e preconceituoso, que reconcilia a consciência com a injustiça, naturaliza as desigualdades e mistifica o desejo de transformação” (SANTOS, 1995, p. 40).

Referências.

ALVES, RUBEM. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras. São Paulo: Brasiliense, 1981.

SANTOS, Boaventura de Souza. Um Discurso sobre as Ciências. 7ª edição. Porto: Edições Afrontamento, 1995.

Belo Horizonte, MG, 06/11/2018.

Maria vai com as outras

1 Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

E-mail: gilvanderlm@gmail.comwww.gilvander.org.brwww.freigilvander.blogspot.com.br

www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 08/11/2018

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