‘Estamos sofrendo os primeiros efeitos das mudanças climáticas, mas ainda há quem as negue’
”Estamos sofrendo os primeiros efeitos das mudanças climáticas, mas ainda há quem as negue.” Entrevista com Luca Mercalli
IHU
“Eu esperava que uma voz tão diferente e original, como a do Papa Francisco na encíclica Laudato si’, levaria o debate sobre o clima para um degrau mais alto, mas, ao contrário, ignoramos o problema até que vivamos a emergência. Porém, trata-se do mundo que vamos entregar aos nossos filhos.”
A reportagem é da revista Famiglia Cristiana, 30-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Luca Mercalli é um dos meteorologistas mais conhecidos, faz o melhor de si para difundir informações científicas sobre questões climáticas para o público em geral. E, em dias difíceis, quando a Itália sofre com as chuvas e o vento, assim como nos dias do calor do verão, ele é questionado muitas vezes para explicar. Mesmo que preferisse que o clima, problema global e mundial, não parasse de gerar notícia até a próxima tempestade.
Eis a entrevista.
O que está acontecendo?
É o dia 31 de outubro, é normal que o outono esteja em andamento [no hemisfério Norte]. O problema, no mínimo, é que ele está chegando tarde. Temos que lembrar aquilo que passamos em julho, com um calor [no verão europeu] acima da média. Não esqueçamos que, no dia 24 de outubro, fazia 30 graus no Vale do Pó: na quarta semana de outubro, isso não tem equivalente em 250 anos de registros meteorológicos.
O fato de os 30 graus do dia 24 de outubro serem seguidos por temporais violentos significa alguma coisa?
Não é esse o problema sobre o qual devemos nos concentrar. Não faz tanto sentido comentar a questão da evolução climática global baseando-se em episódios individuais: até mesmo os 30 graus do dia 24 de outubro, se fossem um fato isolado, não significariam muito por si sós, mas, ao contrário, dizem muito, porque estão unidos com muitas outras anomalias semelhantes que confirmam a tendência de aumento da temperatura terrestre.
O que realmente importa, com o qual devemos nos preocupar, além da nossa percepção, é isto: os dados nos dizem que a Terra está mais quente em um grau em comparação com 100 anos atrás e vai ficar ainda mais quente em relação às atividades humanas.
Quanto mais queimarmos combustíveis fósseis, mais a temperatura vai aumentar. Se formos muito bons para tratar essa doença, poderemos conter o aumento e chegaremos a +2ºC no fim do século, como diz o Acordo de Paris. Se não formos bons, chegaremos a +5ºC, e, neste momento, não estamos sendo bons, já que ninguém está se ocupando seriamente desse problema, que, aliás, é o tema da encíclica Laudato si’ de 2015.
Além da percepção empírica, quais são os sinais com os quais devemos nos preocupar?
Já temos um pouco de danos provocados: os fenômenos meteorológicos que vemos agora são um espião desses danos, são influenciados pelas mudanças climáticas, embora seja difícil dizer, no caso do vento dos últimos dias, o quanto depende do comportamento humano e o quanto de fenômenos naturais. Por isso, eu digo que não devemos nos focar nos episódios individuais, mas sim na substância: os dados de longo prazo e sobre todo o planeta nos falam de uma Terra que está seguindo as previsões que já são de 100 anos atrás: todas estão se comprovando, e, se não corrermos para nos proteger, entregaremos aos nossos filhos um mundo mais complicado para se viver.
Quais são os sinais da mudança em andamento?
Os sinais estão, acima de tudo, nos dados fornecidos pelos instrumentos científicos, mais confiáveis do que as nossas sensações. Depois, há também coisas que todos nós começamos a perceber: na Itália, nos últimos anos, nunca se tinha chegado a temperaturas de verão acima dos 40 graus no Vale do Pó, e começamos a sofrer, porque, há 20 anos, as condições eram diferentes. O verão de 2017 marcou em Forlì um valor jamais visto no Vale do Pó: 43 graus. São valores da Índia. A resposta chegou prontamente com os insetos: o mosquito-tigre, por exemplo. Com a consequência de doenças tropicais e parasitas que prejudicam a agricultura. As geleiras que derretem elevam o nível dos mares, que está aumentando três milímetros por ano: quem pensa em Veneza? Nesse ritmo, Bangladesh ficará debaixo d’água, e haverá milhões de refugiados com migrações epocais. Atóis de coral já estão submersos agora.
Por isso, você escreveu Uffa che caldo! [Ufa, que calor!], pela editora Electa, um livro que explica problemas climáticos para as crianças?
As crianças serão o alvo das mudanças climáticas das próximas décadas, elas verão um crescendo, mas informar é necessário: se você não entende, não pode agir. O nosso objetivo é transferir conceitos complexos para as crianças, com palavras simples e desenhos. Mas a verdadeira aposta é que se veja nas famílias a cena da última página, em que crianças e pais, juntos à mesa, tentam, entender o que está acontecendo e correr para corrigir. Devemos ir ao encontro dos pais, porque não podemos delegar às novas gerações: será tarde demais.
Estamos vivendo tempos sombrios: há uma grande desconfiança em relação a todas as competências. Você também sente isso no seu campo?
Muito. Ainda há gente que diz que não é verdade que existem mudanças climáticas em andamento. Até mesmo o presidente dos Estados Unidos diz isso.
Como se combate essa desconfiança?
Fazendo todo o possível para ir ao encontro das pessoas, pela divulgação da TV aos livros infantis. Mas, quando vejo que um documento fundamental como a encíclica Laudato si’, do Papa Francisco, saiu dos radares da informação em poucos dias, eu não posso ser otimista. Eu esperava que uma voz tão diferente e original, que podia reforçar o ponto de vista dos cientistas, levaria o debate para um degrau mais alto, mas, ao contrário, ela foi logo ignorada. Eu trabalho para a TV italiana e para a TV suíça. Na TV italiana, fala-se dessas questões complexas por um minuto à meia-noite. Na TV suíça, por uma hora e meia às 20h30. É preciso ter a coragem de buscar audiência fazendo cultura.
Em compensação, o clima vai para a primeira página quando nos deparamos com a emergência…
É isso. Quando vem a inundação ou a água alta em Veneza, isso vira manchete nos telejornais, mas a emergência é o momento das emoções, do bode expiatório. Em um dia, eu dei 10 entrevistas sobre o clima para dizer as mesmas coisas que eu digo todas as vezes que há uma inundação, uma tempestade. Mas, além disso, falta aprofundamento. Hoje, é o dia das avaliações, dos mortos, das emoções. No próximo mês, deveria ser o tempo do aprofundamento, mas provavelmente não se falará mais disso até a próxima emergência.
O que se deveria fazer no próximo mês?
Aquilo que eu digo no livro: gastar tempo para entender e depois agir, assumindo comportamentos virtuosos: isolamento térmico, painéis solares, alimentação com baixo consumo de carne, usar meios de transporte público.
Você vê ao seu redor um pouco de conscientização? Algo está melhorando na consciência ou você está totalmente pessimista?
Vejo contradições: há um nicho crescente de pessoas, que se comprometem, melhoram cada vez mais. Infelizmente, faltam as multidões, e isso leva ao pessimismo. Esses problemas não podem ser resolvidos ou melhorados se apenas uma minoria se mexer. Deveria ser uma prioridade global, mundial, mas vejo poucos que querem se comprometer cada vez mais, e uma grande parte da população distraída, que não assiste TV, que não lê os jornais. Na internet, há de tudo e o contrário de tudo, e o risco é assumir como boa a informação que simplifica, a que nós queremos ouvir. Mas assim não nos salvamos.
(EcoDebate, 05/11/2018) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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