Ambientalização de conflitos sociais, Parte 3/5, artigo de Roberto Naime
[EcoDebate] LOPES (2006) destaca a criação de uma série de instituições voltadas para novas atividades, inicialmente desencadeada pela conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre meio ambiente de Estocolmo, em 1972.
Embora o governo brasileiro tenha se pronunciado contra a preocupação e os controles ambientais da conferência, com receio de um cerceamento internacional do processo de industrialização levado a efeito no país desde os anos 1930 e 1940, e continuado pelo regime militar, que na ocasião vinha apostando tudo no efêmero milagre econômico brasileiro de então, embora em país de industrialização tardia.
No entanto, não deixou de criar logo no ano seguinte uma secretaria do meio ambiente, subordinada ao Ministério do Interior. Institucionalizada em 1973, a SEMA refletia a demanda de controles ambientais por parte de uma minoria advertida de técnicos governamentais e por outro lado a oportunidade da chancela institucional para a captação de financiamentos internacionais para os quais as garantias ambientais eram necessárias.
Ainda refletindo os efeitos desencadeados pela reunião de Estocolmo e dando vazão aos anseios profissionais de engenheiros e técnicos conexos de ampliarem sua área de atuação através de novas concepções teóricas e administrativas que significavam uma certa reconversão de suas atividades, ocorre a criação de novas instituições de controle ambiental em São Paulo e no Rio de Janeiro, a CETESB, em 1974, e a FEEMA, em 1975.
Cria-se a figura do “licenciamento ambiental” para atividades industriais, obras de construção civil, serviços, que possam causar “impactos” sobre a natureza, o patrimônio urbano ou a saúde pública.
Neste sentido elabora-se nesses anos na FEEMA, o SLAP (Sistema de Licenciamento de Atividades Poluidoras), catálogo de prescrições técnicas de atividades produtivas nos limites toleráveis para o licenciamento, com base na experiência da EPA (Environmental Protection Agency), agência federal de controle ambiental norte-americana, conforme LOPES (2006).
O SLAP é instituído por decreto do governo estadual em 1977, e em 1979 é publicado o “Manual do Meio Ambiente” (FEEMA, 1979), onde são consolidados os procedimentos, as normas e a legislação pertinentes.
Mas infelizmente até hoje, os licenciamentos não conseguiram se tornar participativos, dinâmicos e permanentes, e não transcenderam a normatizações burocráticas, com raras exceções para confirmar a regra.
LOPES (2006) assevera que parece haver uma reconversão de engenheiros sanitaristas (e de engenheiros químicos e industriais), para uma concepção mais ampla da profissão, junto com a criação progressiva de novas especialidades de profissões anteriores, tais como os economistas e os juristas ambientais (sem falar nos biólogos e geógrafos, e depois nos profissionais da saúde pública).
Mas se complementa que até hoje, o corporativismo endêmico de organizações e autarquias de exercício profissional criam conflitos por atribuições, como se não tivesse ocorrido revolução francesa há mais de dois séculos, e isto ainda atravanca a harmonia da multidisciplinaridade no país.
“A partir dos anos 1960 a ecologia deixou as faculdades de biologia das universidades e migrou para a consciência das pessoas. O termo científico transformou-se numa percepção do mundo”. (SACHS, W., 2000, p. 124).
Todo esse trabalho de normatização, utilizando-se da listagem e da classificação de substâncias nocivas e procedimentos perigosos, feito no nível de alguns estados como Rio de Janeiro e São Paulo, será depois transformado em normas federais, em resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) em 1996 e 1997.
Todo o trabalho de construção institucional em torno do meio ambiente está permeado por conflitos sociais (entre diferentes grupos sociais desiguais e entre diferentes grupos militantes ou técnico-administrativos).
Em 1981, ainda no regime militar, é sancionada lei passada no Congresso, que “dispõe sobre a Política Nacional de Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências”, promulgando um arcabouço institucional federal, com secretaria de meio ambiente ligada à presidência da república (a SEMA) e com um conselho nacional de meio ambiente (órgão consultivo e deliberativo).
Constitui-se no nível federal aquilo que vinha se estabelecendo no nível dos estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e outros, e são criados mecanismos de articulação federal em um sistema nacional de meio ambiente. As demandas institucionais de ambientalistas e técnicos envolvidos na administração ambiental ganham força, segundo LOPES (2006).
Em 1985, ano da redemocratização, e refletindo os embates ambientais no nível de governos estaduais e municipais eleitos pelo sufrágio universal (eleições diretas para governador em 1982), é criada a lei de ação civil pública, que “disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valores artísticos, estéticos, históricos, turísticos, paisagísticos”.
Em 1986, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), institui uma política nacional de avaliação de impactos ambientais, exigindo estudos e audiências públicas para o licenciamento de atividades potencialmente poluidoras.
Os EIA-RIMAs são introduzidos na mecânica do licenciamento, com toda a classificação de atividades ou empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental (como extração mineral, indústrias, obras, serviços, transporte, atividades agropecuárias, uso de recursos naturais e outras).
Podia se observar que infelizmente estes mecanismos da maior relevância se tornaram burocratizados e incapazes de se apropriar das verdadeiras realidades. Mas melhor com estes instrumentos do que na situação anterior. Para não haver alongamento e perda do foco da dissertação.
Em 1988, há a promulgação da nova Constituição Federal, com um importante capítulo sobre o meio ambiente, reforçando as leis de 1981 e de 1985 (sistema nacional do meio ambiente e ação civil pública) e como que coroando esse processo de construção de uma institucionalidade ambiental, e articulando-o com outros domínios conexos que alimentaram reivindicações de movimentos sociais nos anos 1980.
Em 1992 realiza-se a conferência sobre Meio Ambiente da ONU, no Rio de Janeiro, 20 anos após a de Estocolmo, referida como Rio-92 ou Eco-92. No seu processo de preparação, grande atenção é dada à questão ambiental por ONGs não especializadas, movimentos sociais, associações de moradores, federações empresariais e instituições governamentais.
Em 1998 uma lei dispõe sobre os crimes ambientais e prevê fortes penalidades, aumentando o cerco às atividades devastadoras e poluidoras. Essa produção de leis e normas e essa construção institucional continuam ao longo do tempo.
Referências:
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LOPES, José Sérgio Leite, Sobre processos de “ambientalização” dos conflitos e sobre dilemas da participação, Horiz. antropol. vol.12 no.25 Porto Alegre Jan./June 2006, http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832006000100003
Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.
Sugestão de leitura: Civilização Instantânea ou Felicidade Efervescente numa Gôndola ou na Tela de um Tablet [EBook Kindle], por Roberto Naime, na Amazon.
Nota da Redação: Sugerimos que leia, também, a parte anterior desta série de artigos:
Ambientalização de conflitos sociais, Parte 1/5
Ambientalização de conflitos sociais, Parte 2/5
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/09/2018
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De um lado Conferências, Leis, etc., de outro a realidade. Não direi que está certa, nem quem não passa de um faz-de-conta. Não pretendo desagradar ninguém.
Concordo que a realidade as vezes, é farsa…
Grande abs….
RNaime