Desastre de Mariana: Cientistas analisam os impactos ambientais, entre os quais os resultantes da devastação de ecossistemas
Desastre de Mariana: Cientistas analisam os impactos ambientais, entre os quais os resultantes da devastação de ecossistemas
Por Tássia Biazon, Jornal da UNICAMP
Impactos ambientais
Dia 5 de novembro de 2015. Brasil. Minas Gerais. Mariana. Bento Rodrigues. Barragem de Fundão. Samarco. Às 15h ocorre um tsunami de lama. Cerca de 32 milhões de m³ rejeitos são lançados ao meio ambiente.
O primeiro local atingido foi o córrego de Santarém. Em seguida, o tsunami chegou ao Rio Gualaxo do Norte, percorrendo 55 quilômetros até seu afluente, o Rio do Carmo. Depois, mais 22 quilômetros e a lama encontra o Rio Doce. Pelo curso da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, os rejeitos foram carreados até sua foz, no município de Linhares, Espírito Santo, atingindo o Oceano Atlântico.
Ao impactar um total de 663,2 quilômetros de recursos hídricos de dois estados – Minas Gerais e Espírito Santo, passando por 40 municípios -, a lama foi deixando um rastro de destruição. Além da morte de 19 pessoas, centenas de hectares de matas nativas, toneladas de peixes e diversos outros organismos aquáticos deixaram de existir, modificando radicalmente os ecossistemas da região. A liberação dos rejeitos no meio ambiente causou danos imensuráveis para o país. Vidas, histórias, casas, fauna e flora foram destruídas.
O Complexo Minerário de Germano é integrado por três barragens: Santarém, Germano e Fundão. A barragem de Fundão foi ativada em 2008. Apenas três anos depois, sua segurança já era questionada.
Na ocasião do seu rompimento, a barragem possuía 50 milhões de m³ de rejeitos de mineração de ferro (resíduo classificado como não perigoso e não inerte para ferro e manganês, conforme a norma brasileira de Resíduos Sólidos – Classificação – ABNT NBR 10004).
Mais da metade desse rejeito, 32 milhões de m³, foram derramados no meio ambiente. Mais de um ano depois, os 18 milhões restantes continuavam sendo carreados, aos poucos, em direção ao litoral do estado do Espírito Santo.
O trajeto da lama, segundo o laudo técnico preliminar do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de novembro de 2015, provocou:
- mortes de trabalhadores da empresa e moradores das comunidades afetadas;
- desalojamento de populações;
- devastação de localidades e a consequente desagregação dos vínculos sociais das comunidades;
- destruição de estruturas públicas e privadas (edificações, pontes, ruas etc);
- destruição de áreas agrícolas e pastos, com perdas de receitas econômicas;
- interrupção da geração de energia elétrica pelas hidrelétricas atingidas (Candonga, Aimorés e Mascarenhas);
- destruição de áreas de preservação permanente e vegetação nativa de Mata Atlântica;
- mortandade de biodiversidade aquática e fauna terrestre;
- assoreamento de cursos d´água;
- interrupção do abastecimento de água;
- interrupção da pesca por tempo indeterminado;
- interrupção do turismo;
- perda e fragmentação de habitats;
- restrição ou enfraquecimento dos serviços ambientais dos ecossistemas;
- alteração dos padrões de qualidade da água doce, salobra e salgada;
- sensação de perigo e desamparo na população.
O superintendente do Ibama em Minas Gerais, Marcelo Belisário Campos, em entrevista concedida no dia 23 de junho de 2016, afirma que o despejo da lama chegou a uma densidade de quatro toneladas por m³.
Campos informa que, depois de 18 horas, a lama atingiu a barragem da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, também conhecida como Candonga – situada na Bacia Hidrográfica do Rio Doce –, entre os municípios de Rio Doce e Santa Cruz do Escalvado no estado de Minas Gerais.
Quando a onda de lama bateu contra a usina, amortecendo a força da lama, milhões de m³ ficaram contidos em sua estrutura. Mudaram completamente a morfologia do rio, alcançando sua calha e margens.
O Superintendente considera que a tragédia não é quantificável em sua totalidade, pois há aspectos passíveis de recuperação, e outros que não são mitigáveis, devendo ser elaboradas medidas compensatórias.
Para a compreensão dos impactos ambientais da tragédia é necessário o conhecimento do conteúdo da lama proveniente de Fundão. A Samarco, em entrevista realizada no dia 13 de junho de 2016, garante que a lama é composta de rejeitos de minério de ferro e manganês, misturados basicamente com água e areia, e afirma que o material é inerte, não causando danos ao ambiente ou à saúde.
No entanto, o levantamento ambiental da Marinha do Brasilconstatou a presença de metais pesados na foz do Rio Doce(arsênio, manganês, chumbo e selênio), com prejuízos potenciais ao meio ambiente. Portanto, mesmo considerando que a lama não tenha metais pesados, ela está longe de ser inofensiva.
Conforme o laudo técnico preliminar do Ibama, as alterações físico-químicas provocadas pela lama impactaram a cadeia trófica como um todo, envolvendo comunidade planctônica (pequenos organismos), invertebrados aquáticos, peixes, anfíbios, répteis e mamíferos que se beneficiam dos recursos do Rio Doce. Essas mudanças podem aumentar a possibilidade de extinção das espécies ameaçadas, bem como colocar outras em risco.
Os impactos descritos pelo laudo não esgotam todas as possibilidades de danos causados à fauna na região. As equipes em campo do Ibama observaram animais domésticos ou silvestres que não conseguiram acessar o curso d´água, devido à grande quantidade de rejeitos depositadas nas margens.
O professor André Cordeiro Alves dos Santos do Departamento de Biologia do Centro de Ciências Humanas e Biológicas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em entrevista concedida no dia 24 de junho de 2016, destaca as alterações dos impactos, conforme o curso da lama.
Próximo ao vazamento, o incidente foi destrutivo, arrasando cidades e o ambiente de forma quase irreversível. No trecho médio e baixo do rio, o impacto além de ambiental é social, e muitas vezes indireto, com a dificuldade de captação de água, afetando a pesca, a agricultura, a extração de areia do leito do Rio Doce e até mesmo o turismo no litoral do Espírito Santo. A resposta da sociedade, dos governos e da academia só demonstra como estamos despreparados para incidentes desta natureza, apesar de serem previsíveis.
O professor Sérvio Pontes Ribeiro do Departamento de Biodiversidade, Evolução e Meio Ambiente da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em entrevista no dia 31 de julho do mesmo ano, afirma que ocorreram modificações nos ecossistemas locais, provocando perdas à biodiversidade e que provavelmente não serão totalmente recuperados.
Sem dúvida, a Bacia Hidrográfica do Rio Doce estará para sempre empobrecida, comparada ao que era antes. Por outro lado, esta pode ser a porta para se tentar uma política nunca antes realizada, de se criar unidades de conservação da bacia inteira, e impor um uso mais consciente do que serão estes ambientes.
A partir da polêmica dos rejeitos carreados serem ou não tóxicos, foi criado um coletivo científico-cidadão chamado Grupo Independente de Avaliação do Impacto Ambiental (GIAIA). A proposta é analisar colaborativamente, incluindo pesquisadores de diversas instituições, os impactos ambientais do desastre.
Publicado em maio de 2016, o Relatório Técnico do GIAIA aponta que, por mais que a qualidade da água estivesse melhor, considerando os metais avaliados, outros impactos secundários deveriam ser observados, tais como: “contaminação de lençóis freáticos (águas subterrâneas), promoção de resistência bacteriana, extermínio de espécies aquáticas endêmicas, tanto da biota quanto da microbiota”. Aponta, também, a “destruição de mata ciliar e consequente assoreamento do Rio Doce e afluentes”.
O Relatório também diz que “não se deve subestimar o potencial de elementos químicos que não são classificados como metais pesados (por exemplo, ferro e manganês), no que tange suas capacidades de desencadear efeitos indesejados no ambiente ou na população humana. Por mais que estes metais desempenhem atividades benéficas no organismo quando em níveis adequados, em excesso, podem causar diversos efeitos tóxicos, principalmente em exposições crônicas”. Cabe ressaltar que contaminantes orgânicos podem ter sido utilizados durante a extração dos minerais, impactando fortemente na qualidade da água.
Considerando que a lama em si não é tóxica, a existência de metais pesados nos cursos d’água percorridos pela lama, como arsênio e manganês, trouxe à tona outro problema: as atividades de mineração estariam agindo em desacordo com a lei, ou estes metais são encontrados naturalmente nessas regiões? Sobre isso, o professor André Santos faz uma avaliação.
Mesmo a lama não sendo considerada tóxica – o que não tenho certeza em função da sua altíssima concentração de ferro, o derrame varreu o fundo do rio em uma grande extensão. Assim, materiais que poderiam estar no sedimento e indisponíveis para a comunidade, foram disponibilizados e carreados. Então, apesar de alguns destes metais não comporem o rejeito, eles podem ter sido disponibilizados no ambiente pelo desastre, que resulta no mesmo efeito nos ambientes se a lama fosse tóxica.
Santos reconhece que estas regiões de mineração já são voltadas para a atividade em função da sua disponibilidade de minério. Portanto, é comum que tenham concentrações mais elevadas de metais tóxicos, se comparadas com regiões de geologia diferente. Porém, afirma que isso não exclui a possibilidade de atuação em desacordo com a lei.
No Brasil, apesar de leis avançadas, falta muita fiscalização, pois os órgãos de controle estão sucateados, sem pessoal, condições materiais e políticas de fazer o trabalho. O Estado controlado pelo capital sempre vai evitar a fiscalização, ainda mais em atividades sabidamente impactantes (mineração), que muitas vezes geram lucros exorbitantes e o aumento da segurança pode reduzir o lucro final.
No laudo técnico preliminar do Ibama consta que, além da presença de garimpos de ouro, outras atividades degradadoras do meio ambiente são desencadeadas na região, como a pecuária, a agricultura de subsistência e a dragagem no rio.
Mesmo que a presença de metais não esteja vinculada diretamente à lama da barragem de Fundão, a força do rejeito lançado, provavelmente, revirou e colocou em suspensão os sedimentos de fundo dos cursos d’água afetados, que naturalmente contêm metais pesados devido às características geológicas da região.
A atividade extrativista de mineração retira estes metais de seus depósitos naturais e inertes. Conforme o relatório do GIAIA, o simples fato de extraí-los gera grande impacto ambiental. Por mais controlado que seja o processo de mineração, quantidades destes metais se distribuirão no ambiente, podendo causar, no futuro, efeitos tóxicos na fauna e flora, e mesmo no homem.
O mesmo relatório apontou que o arsênio foi quantificado em concentração acima do limite em afluentes muito próximos ao canal principal do Rio Doce, mas em nenhum momento tiveram contato com a lama da Samarco. O documento diz que a alta concentração do arsênio possa ser resultado de uma característica geológica própria do local, ou até mesmo da atividade mineradora histórica da região.
Desta forma, independentemente do desastre de Mariana, o próprio processo extrativista é uma atividade poluidora. Sabe-se que o estado de Minas Gerais há séculos vem sendo impactado. O docente Ricardo Perobelli Borba, do Departamento de Geologia e Recursos Naturais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em entrevista no dia 17 de junho de 2016, afirma:
Toda e qualquer atividade humana causa impacto ambiental. A mineração só existe em função das demandas de matérias- primas da nossa sociedade e seu modo de vida. As transformações ambientais promovidas pela mineração estão relacionadas aos grandes volumes de rochas, solos e água que precisam ser mobilizados em suas operações. Nas minerações superficiais, frequentemente há a alteração da paisagem, a construção de barragens e a disposição de rejeitos. Ao transformar o seu entorno, a mineração também acaba afetando a biota local, os rios e a atmosfera em diferentes graus, a depender do tipo de minério que está sendo lavrado.
A mineração é fundamental para a economia do estado de Minas Gerais, bem como para o Brasil. Sem dúvida, há um custo-benefício a ser contrabalanceado. Só em Minas Gerais há mais de 700 barragens, muitas delas sem a fiscalização adequada. O rompimento da barragem de Fundão expõe diversas irregularidades que necessitam ser corrigidas para que outras barragens, em situações piores, não se rompam.
A negligência ao meio ambiente
As primeiras impressões sobre o rompimento da barragem de Fundão indicavam a ocorrência de um grave desastre, mas sua real proporção ainda não era conhecida. Inicialmente, houve a preocupação quanto aos feridos, desabrigados e mortos. Entretanto, o cenário revelou-se um desastre ambiental sem precedentes no país, cujos impactos na fauna e flora são imensuráveis.
O professor Fábio Augusto Rodrigues e Silva do Departamento de Biodiversidade, Evolução e Meio Ambiente da UFOP, em entrevista no dia 27 de junho de 2016, identifica um discurso de neutralidade na mídia.
Temos mais uma situação em que o acesso às informações é controlado para atender interesses dos poderes econômicos. Atualmente, com as investigações policiais revelando as negligências, omissões e violações de direitos humanos por parte das empresas responsáveis por este crime, percebe-se um tom mais crítico. Outra impressão é que não ouvimos as vozes dos atingidos.
Em entrevista no dia 29 de junho do mesmo ano, o docente do Departamento de Botânica do Instituto de Biologia da Unicamp, Carlos Alfredo Joly, salienta que, pelo tamanho do desastre, a abordagem na mídia foi superficial.
A maior parte dos veículos, por exemplo, os grandes jornais de São Paulo, há muito tempo não têm um profissional dedicado à área de ciência. A gente tem bons jornalistas, mas eles não estão de forma integral nesta temática. A superficialidade se associa a uma falta de conhecimento de quais são os impactos do ponto de vista biológico – da amplitude e das consequências do desastre na biodiversidade, no funcionamento dos ecossistemas.
O superintendente do Ibama, Marcelo Campos, chama a atenção para as questões ambientais, que na sua opinião são de grande complexidade, com suas transversalidades.
Quando se fala em questões ambientais, as pessoas perguntam: ‘Quantas toneladas de peixes morreram?’ Temos números dos peixes que foram retirados e quantificados. Mas esses números são totalmente subdimensionados. Há muitos outros que foram retirados, por exemplo, sem o conhecimento do Ibama ou de qualquer outro órgão ambiental, além de outros tantos que ficaram soterrados pela lama. A maioria da fauna aquática da Bacia Hidrográfica do Rio Doce é constituída por espécies de pequeno porte – uma grande diversidade que não chama atenção da população. Já na região estuarina, as pessoas sentiram mais porque lá têm recursos pesqueiros – uma visão de uso econômico.
Considerando que diversos estudos ainda precisam ser elaborados para dimensionar o que poderá ser recuperado ao longo do tempo, Sérvio Ribeiro, pesquisador da UFOP, avalia como foi o envolvimento da universidade com o desastre. “Nós, ecólogos, estamos nos forçando ao debate a fim de contribuir, seja por meio de publicações de opiniões e análises prévias em revistas científicas, seja por buscar diálogo com os atores do desastre”.
O docente enfatiza a necessidade de ser estabelecido um plano de longa duração, não apenas de medidas emergenciais, a fim de desenvolver nas universidades e instituições de pesquisa um trabalho para entender a dinâmica do desastre. O professor Fábio Silva, da UFOP, acredita que este e outros rompimentos de barragem no Brasil evidenciam que esta forma de exploração minerária é insustentável e tem causado muitos prejuízos. “Não estamos falando apenas de um desastre, estamos falando, vivenciando e refletindo sobre um crime socioambiental. Um crime que tem responsáveis, no caso os principais são Samarco/VALE/BHP Billiton e a cúpula que a dirige”.
Silva ressalta que a região dos Inconfidentes construiu sua história em uma relação muito intrínseca com os processos minerários, com “empregos”, “renda” e outras “benesses”, na visão dos moradores. Informa que escolas fazem excursões às minas, pessoas são empregadas pelas mineradoras e terceirizadas – vistas como trabalhadoras que venceram na vida e se orgulham de fazer parte dessas empresas. Desconhecer estes fatores é se distanciar da realidade em que a população está inserida.
Aponta também, que em mesas redondas promovidas pela Escola de Minas sobre o desastre da Samarco, com especialistas da área de mineração, não houve questionamentos dos modelos de produção e dos usos dos saberes científicos e tecnológicos na exploração do ambiente e das comunidades atingidas. Em sua visão, o discurso da neutralidade permeou as falas dos especialistas, naturalizando a tragédia, e eximindo a Samarco das responsabilidades. O docente acredita que há necessidade de se repensar as práticas de formação de profissionais.
Sempre me questiono quando alguns cursos voltados para o desenvolvimento científico e tecnológico irão incorporar em suas práticas de formação pelo menos um olhar sobre os contextos culturais, ambientais e sociais. Quando os seres humanos, animais, plantas e nascentes deixarão de ser apenas números, dados de gráficos e serão considerados como sujeitos afetados por essas práticas e tecnologias.
Ecossistemas devastados
Além de diversos estudos estarem em andamento, o desastre ainda está em curso, o que impossibilita uma aferição completa do que aconteceu nos diferentes ecossistemas. Há impactos indiretos a curto, médio e longo prazo.
Carlos Joly, da Unicamp, levanta algumas percepções das influências da lama no ambiente terrestre, alertando que não há nenhuma referência anterior para saber quais foram suas consequências ou como mitigá-las.
Já tivemos outros desastres no Brasil, embora nenhum com o porte de Mariana, mas aparentemente não aprendemos as lições com os anteriores. Este desastre foi de uma magnitude que a região afetada nunca vai se recuperar totalmente. Vamos ter cicatrizes permanentes, e em todos os ambientes: terrestre, água doce e marinho. Em áreas com deposição de lama no ambiente terrestre, houve alteração da estrutura física do solo. A lama se depositou nos interstícios dos grãos de areia. Consequentemente, a vegetação que ocupava a região dificilmente terá condições de voltar, pois a alteração do solo é praticamente irreversível. Ou então levará centenas de anos para haver condições semelhantes ao passado, até que eventualmente ocorram novas deposições de areia, formando um novo solo sobre o solo atual.
Assim como Joly, Sérvio Ribeiro, da UFOP, acredita que os locais afetados não se recuperarão totalmente. Isso se deve tanto pela perda das características geomorfológicas do solo e de certas funções ecológicas quanto pela compactação da lama e posterior desertificação das áreas afetadas.
A lama, quando não soterra, impregna a maioria dos micro-habitats onde pequenas criaturas vivem. Estas são responsáveis pela fotossíntese que oxigena a água. Ainda, os microrganismos são a base da cadeia alimentar que chega até os peixes. Embora muito deva ter se perdido de forma irrecuperável, estudos ainda precisam ser realizados para entender a extensão dos impactos em toda a cadeia trófica.
A vegetação próxima aos rios é extremamente adaptada aos períodos de inundações sazonais. Quando o solo está encharcado, não há oxigênio para a respiração das raízes das plantas, que para sobreviverem, utilizam recursos de adaptação que ajudam na difusão do oxigênio para o sistema radicular – os pneumatóforos, por exemplo –, ou modificações metabólicas que permitam manter seu metabolismo sem necessitar de oxigênio.
Ao comparar a diversidade das áreas sujeitas a alagamentos às áreas anexas sem alagamento, Joly enfatiza que estas últimas têm um número de espécies muito maior do que as alagadas, nas quais as espécies vivem sob forte estresse, fazendo com que poucas sobrevivam às condições impostas.
A diversidade de espécies que havia nas margens do Rio Doce deixou de existir. A onda de lama extravasou para além da área alagada, encharcando áreas não alagáveis. Após a alteração da estrutura física do solo, dificilmente essas espécies terão condições de sobrevivência.
O professor da Unicamp indica ainda que é muito difícil prever o que acontecerá, pois as margens do Rio Doce sofreram, além do desmatamento, alterações físico-químicas do solo. Mesmo que ocorram plantios de mudas, poucas espécies sobreviverão. Somado a isto, os impactos à flora refletirão na fauna, por exemplo, com a falta de alimentos e abrigos para os animais. Outra vez, há uma incógnita sobre o que acontecerá.
A Bacia Hidrográfica do Rio Doce é uma região pouco estudada, mas sabe-se que é muito rica em espécies, composta de 98% do bioma Mata Atlântica, e o restante pertencente ao bioma Cerrado. Carlos Joly destaca que a vegetação do local é estruturada por uma enorme quantidade de insetos polinizadores, bichos dispersores e predadores potenciais. Enfim, uma complexa cadeia trófica com rios que abrigam uma diversidade de vida, e não apenas os peixes, comestíveis e comercializáveis.
Na visão de André Santos, da UFSCar, é impossível ter certeza de que o Rio Doce voltará a ser como antes. Numa situação como esta, é muito difícil fazer afirmações categóricas.
Temos a esperança de que se o sistema for acompanhado e monitorado adequadamente teremos menos incertezas quando um desastre destas proporções ocorrer novamente. E devido ao nosso modo de produção atual, outra tragédia desta natureza é provável, até esperada. O que sei é que problemas ambientais são complexos, e em função de sua natureza não comportam soluções simples. Num evento destas dimensões há impactos ambientais, sociais, econômicos e inclusive culturais, que temos dificuldade de perceber e compreender. Alguns efeitos só serão visíveis depois de anos e outros talvez nem consigamos quantificar. Por exemplo, a perda da biodiversidade aquática nunca será entendida, até porque não havia muita informação desta biodiversidade anteriormente à tragédia. Portanto, será impossível avaliar a perda totalmente.
No curso do Rio Doce, muitas cidades tiveram a qualidade da água afetada pela lama, como a cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais.
Ao percorrer centenas de quilômetros, o problema chegou ao Oceano Atlântico. O caos se propagou: praias foram interditadas e a pesca proibida no entorno de Regência, vila pertencente ao município de Linhares, litoral do Espírito Santo.
A arquiteta Bárbara Poliana Campos Sousa, nasceu em Governador Valadares, em 1983. Há 33 anos, ela mora no município banhado pelo Rio Doce, atingido pela lama da Samarco.
O Rio Doce sempre foi diversão na infância. Lembro-me de irmos pescar e contemplar sua paisagem frente ao Pico da Ibituruna, rodeados pelos paraglaiders e assistindo os canoístas treinarem no rio, como nosso campeão de coração, Sebastián Cuattrin. Não havia nada melhor do que correr às margens do rio, fazer exercícios em volta da orla da IIha dos Araújos, uma prática comum da população. Além de sermos privilegiados com um vasto rio, fonte de vida para a região.
A valadarense lembra que, antes da tragédia, o Rio Doce passava por um período de seca muito preocupante e a população já racionava água. Com o anúncio do desastre, o cenário foi de medo e correria.
Todos precisavam estocar água. A ajuda mútua foi importante. Carros com baldes, canos, tonéis e latas de todos os tamanhos. Filas enormes em armazéns e lugares que vendiam recipientes. Caixas d’água se esgotavam em depósitos. Pessoas fazendo poços artesianos, alugando caminhões-pipa para prédios e condomínios. As escolas e hospitais tiveram ajuda do município. Quando a situação agravou e pararam a captação de água do rio, caminhões de água mineral eram enviados para abastecer o comércio. Passou a ser perigoso, motivo de roubo, sair com galão de água mineral em carros de carroceria abertos ou caminhões.
As primeiras semanas foram de muita tensão. Com o passar dos dias, caminhões da Samarco doavam água para a população. Com filas quilométricas, milhares de pessoas ficavam horas para conseguir água.
Vejo esta tragédia como um retrato da corrupção e falta de fiscalização das grandes mineradoras. Tudo poderia ser evitado. Até hoje nada foi feito, a população continua sem água de qualidade, colocando sua saúde em risco por causa dos metais pesados encontrados na água. Os laudos apresentam índices acima do ideal para o consumo, apesar da Prefeitura falar o contrário. Depois da tragédia, o mercado imobiliário caiu muito. As pessoas estão receosas em investir na cidade. Acabaram os peixes. A água ficou imprópria para o consumo. Vivemos com água mineral para fazer tudo. As empresas precisam ser punidas. As nascentes precisam ser protegidas. A paisagem mudou. Tristeza em ver o rio de lama. E a dúvida e o medo por não saber até quando viveremos tudo isso. Fomos diretamente atingidos.
Essas regiões sofreram alterações socioambientais, além da perda de subsistência pela pesca, de acordo com o professor Alexander Turra do Instituto Oceanográfico (IO) da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista no dia 11 de agosto de 2016. Turra desconhece a proporção dos impactos, mas sabe que será visível durante décadas.
A lama trouxe turbidez para a água do mar, que passou a receber menos luz. Com baixa luminosidade, os organismos não realizam fotossíntese, processo de produção de energia, diminuindo a quantidade de alimentos no ecossistema. Isto acarretou a queda de sua produção primária, e indiretamente, afetou outros organismos da cadeia alimentar.
Os impactos não cessaram
As feridas abertas pela onda de rejeitos de milhões de m³ e mais de 15 metros de altura ainda estão longe de serem fechadas. As vidas perdidas foram muitas, entre elas, Daniel, pai da Sandra; animais de estimação e criação; plantações para subsistência; flora e fauna das margens dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce; áreas protegidas – como as dos índios Krenak, reservas biológicas – como a de Comboios; incontáveis espécimes aquáticas; perda da biodiversidade, fertilidade do solo e qualidade da água; contaminação do lençol freático, modificação da zona estuarina do litoral do Espírito Santo – como locais de desovas de tartarugas marinhas em risco de extinção. Há tanta destruição que com o tempo poderá haver alguma melhora, mas dificilmente, por onde a lama passou, será como era antigamente.
Como se não bastasse enfrentar uma catástrofe equivalente ao volume de 20 mil piscinas olímpicas de lama – devastando uma diversidade de ecossistemas, o desastre ainda continua em curso. A fonte de lama não secou e, embora sem a força, densidade e volume iniciais, permaneceu vazando.
Então, como falar em recuperação se o dano foi imensurável? Por que eventos como esse acontecem? E o que deveria ser feito para serem evitados? Joly, da Unicamp, faz uma análise sobre o retrocesso do Brasil na questão ambiental, lembrando que a legislação ambiental brasileira é moderna, mas vem sofrendo interferências destrutivas.
Hoje há projetos para serem aprovados pelo Estado querendo acabar com os estudos de impacto ambiental, porque alegam que isso é um desperdício de dinheiro. A gente está indo na contramão. É um contra-senso. A visão que países têm sobre as atitudes tomadas pelo Brasil em fóruns internacionais é de que somos uma potência em questões ambientais. Nós, brasileiros, sabemos o quanto a gente vive um retrocesso, porque tudo é visto como ganho imediato e não a médio e longo prazo. A gente comete os mesmos erros já cometidos por países do Velho Mundo, mas piorados. Nós temos problemas de fiscalização muito acentuados, por exemplo, não se usa o material adequado, não se realiza o que estava descrito. O que gera situações problemáticas como na barragem em Fundão.
Joly observa que a Samarco tinha incertezas quanto ao volume e as rachaduras da estrutura da barragem. Ou seja, era um desastre previsível, uma questão de tempo. Não sabiam quando iria acontecer, mas que poderia acontecer. Ressalta que, além da própria mineração, o país vive esse tipo de situação em muitas outras áreas, como na extração de petróleo.
Em relação às palavras de Joly, Ribeiro, do Departamento de Biodiversidade da UFOP, afirma que os políticos brasileiros não priorizam investimentos em meio ambiente nem sequer cobram a aplicação de leis. Cita o despreparo de funcionários dos órgãos fiscalizadores, que não efetuam multas nem impõem medidas de análise e prevenção de desastres.
Portanto, o Estado deveria cumprir papel fundamental para que esses tipos de desastre, frequentes e de magnitudes assustadoras, não ocorram no país. Em todos os níveis – municipal, estadual e federal, não há fiscalização nem prevenção efetivas dos problemas ambientais. Joly analisa:
A palavra inoperante talvez seja forte demais, mas o Estado beira ao inoperante. Em todas as etapas –
e não é apenas no aspecto ambiental –, há uma generalização de problemas como o caso da ciclovia do Rio de Janeiro que ocorreu por erros de cálculos. Mas, a área ambiental é uma das mais carentes, porque o Estado não dá o devido valor ao meio ambiente. O Estado ainda não entendeu que a área ambiental é fundamental.
Depois de fatos como o de Mariana, o que se observa é um “empurra-empurra” para saber de quem é a culpa. Na realidade, todos são culpados. Empresas e Estado deveriam estar cumprindo seus papeis. Atualmente, a legislação prevê a cobrança de multas. Seria esta a solução para o problema?
Há multas sendo aplicadas pelo governo enquanto as empresas contestam. Mas, praticamente nenhuma dessas multas às grandes empresas, jamais foram pagas. Nunca esse dinheiro chegou, ou porque recorreram, ou porque o Estado é lento, até que aconteça seu esquecimento. Vira manchete e todo mundo acha que puniram. Mas nada aconteceu.
Na visão dos pesquisadores, o Brasil necessita valorizar o meio ambiente, criar projetos mais rígidos e eficazes, fortalecer os órgãos de responsabilidade ambiental, garantir o monitoramento de informações, fiscalizar rigorosamente, ampliar as equipes com profissionais capacitados e realizar estudos completos antes, durante e pós-aplicação de determinadas intervenções no meio ambiente.
Santos, da UFSCar, acredita que as pessoas precisam discutir mais sobre o modelo de sociedade que se deseja, já que atividades tão impactantes e ao mesmo tempo estrategicamente importantes como a extração de minério ou petróleo, não podem ficar a mercê dos mercados internacionais e do lucro.
Precisamos pensar se para proteger o lucro de alguns vamos continuar a distribuir os prejuízos para todos. Devemos discutir o papel do Estado como protetor dos interesses da população e dos interesses difusos e não defensor dos interesses do Capital. A crise ambiental é uma crise do sistema de produção capitalista e tenho a convicção que um ambiente de qualidade para todos é incompatível com o acúmulo de riqueza e recursos para poucos. Precisamos repensar o conceito de desenvolvimento sustentável e nos perguntar ‘desenvolvimento para quem?’, ‘sustentável para o que?’.
Diariamente o homem interfere na natureza para sua subsistência – embora nela interfira para muito além de seu sustento. Como encontrar o equilíbrio entre o econômico e o ambiental? Ribeiro afirma que uma resposta seria o uso saudável dos ecossistemas.
Uma floresta em pé, um rio limpo, uma encosta com solos férteis são serviços que os ecossistemas nos prestam. Práticas destrutivas enriquecem poucos e deixam um enorme prejuízo econômico coletivo que todos pagam. Esta é a base do hoje chamado “racismo ambiental”. Racismo no sentido de que os mais pobres e desfavorecidos pagam mais que os ricos os custos dos danos. Porém, se pensar em finanças de uma Nação, quanto custa o atendimento médico de pessoas contaminadas por agrotóxico, peixes com metais pesados, ar poluído? Quanto custa estas pessoas não estarem aptas e capazes de trabalharem? Quanto custará para sempre o tratamento da água do Rio Doce para uso humano? Só pode haver desenvolvimento econômico de longo prazo, rentável para a coletividade, com o uso devido, plenamente manejado e rigorosamente controlado dos recursos naturais.
Mariana foi o maior desastre e crime ambiental da história do Brasil. O maior desastre de mineração do mundo. Continua abrindo feridas, expõe outras que há muito tempo já estavam abertas e que até hoje não se curaram, e faz cicatrizes que não mais sairão do mapa deste país.
Referências
FREITAS, R. Os animais no desastre de Mariana. El País, Nov. 2015. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/10/album/1447191040_817628.html#1447191040_817628_1447191279>. Acesso em: 06 ago. 2016.
GRUPO INDEPENDENTE DE AVALIAÇÃO DO IMPACTO AMBIENTAL (GAIA). Disponível em: <http://giaia.eco.br/>. Acesso em: 16 jun. 2016.
GRUPO INDEPENDENTE DE AVALIAÇÃO DO IMPACTO AMBIENTAL (GAIA). Relatório Técnico. Determinação de Metais na Bacia do Rio Doce (Período: Dezembro-2015 a Abril-2016). Mai. 2016. Disponível em: <http://giaia.eco.br/wp-content/uploads/2016/06/
Relatorio-GIAIA_Metais_Vivian_revisto5.pdf>. Acesso em: 16 jun. 2016.
MATHIAS, M; JÚNIA, R. Cenário de fim do mundo no rastro da lama. EPSJV/Fiocruz, Rio de Janeiro, Jan. 2016. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/cenario-de-fim-do-mundo-no-rastro-da-lama>. Acesso em: 06 ago. 2016.
Tássia Oliveira Biazon: é graduada em Ciências Biológicas (bacharelado e licenciatura) pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) – Campus Botucatu, com dupla diplomação pela Universidade de Coimbra (UC) – Portugal e pós-graduada em jornalismo científico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é professora, jornalista científica e desenvolve projetos na área da Biologia da Conservação. Email: tassiabiazon@gmail.com
Do Jornal da UNICAMP, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 13/09/2018
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