70 anos de casos de abusos sexuais na Igreja e 50 anos da Humanae Vitae, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
“A humanidade precisa se libertar do conceito de Deus e Diabo
e admitir que ela mesma faz o bem e o mal”
George Orwell
[EcoDebate] A Igreja Católica tem um problema sexual para resolver. São inúmeros os casos de padres e bispos envolvidos em escândalos sexuais e atos de pedofilia. A doutrina da Igreja diz que o sexo (não reprodutivo) é pecado para todos os fiéis. Os religiosos e religiosas que fizeram voto de castidade também pecam quando praticam sexo. Mas, na realidade, abundam os casos de religiosos pecadores. Até as autoridades máximas do Vaticano estão envoltas num turbilhão de denúncias e de conspiração.
Um relatório divulgado pelo procurador-geral da Pensilvânia, Josh Shapiro, revelou que padres do estado norte-americano abusaram de milhares de crianças ao longo dos últimos 70 anos. A investigação da Pensilvânia, que relata os abusos sexuais a mais de 1.000 menores de idade por mais de 300 religiosos durante sete décadas, revela que, pelo menos, desde 1963 o Vaticano conhecia alguns desses casos e se mostrou tolerante.
Como informa o jornal El País, a palavra Vaticano aparece 45 vezes no impressionante relatório do grande júri da Pensilvânia, que revela uma máquina de silêncio e encobrimento diante dos “pecados” dos religiosos. A Congregação para a Doutrina da Fé, o órgão encarregado de defender a correta doutrina da Igreja católica, é mencionada 14 vezes e a Santa Sé, 11. A partir da leitura do documento de 1.356 páginas se infere que Roma foi informada diversas vezes tanto dos abusos sexuais como do fato de que a Igreja norte-americana estava encobrindo padres pedófilos.
Os casos de abuso sexual e pedofilia revelados pela investigação da Pensilvânia não são ocorrências isoladas. O filme Spotlight mostra a investigação dos casos de abuso sexual e pedofilia por membros da arquidiocese católica de Boston, realizada por uma equipe do jornal The Boston Globe. Documento de 700 páginas, elaborado por uma comissão presidida pela juíza Yvonne Murphy, relata que a Igreja Católica da Irlanda encobriu abusos sexuais de padres contra crianças da região da capital, Dublin, durante 40 anos. Há casos de abuso sexual e pedofilia em diversos lugares do mundo e no Brasil envolvendo padres, bispos e autoridades da Igreja Católica.
No Chile os escândalos sexuais abalaram os alicerces da Igreja. O bispo Barros que é questionado há anos no Chile por seus vínculos com Karadima, estaria envolvido com os crimes cometidos desde os anos 1980 e 1990. Em abril de 2018, o papa reconheceu ter cometido “graves equívocos em sua avaliação” do caso de bispo Barros. Em uma visita ao Chile em janeiro, Francisco defendeu a inocência do bispo, mas depois pediu desculpas e ordenou uma investigação. Em uma carta enviada à Conferência Episcopal do Chile, o pontífice pediu perdão a todos que possa ter ofendido e disse sentir “dor e vergonha”. Depois de muito desgaste, os 34 bispos do Chile renunciaram e entregaram os seus cargos ao papa Francisco.
Na Irlanda, a dimensão dos abusos é tão grande no país que houve quem os descrevesse como “o holocausto da Irlanda” – estimativas independentes apontam para mais de dez mil crianças violentadas ao longo de 70 anos. As primeiras denúncias surgiram na década de 1990, mas foi preciso esperar pelo estalar do escândalo nos EUA e por várias investigações jornalísticas para que a Irlanda – país que tem o catolicismo inscrito na sua Constituição – finalmente acordasse para o terror vivido durante décadas por milhares de crianças.
O terror de violações cometidas por padres que a sociedade via como guardiões da moral, mas também da violência a que foram sujeitas as crianças entregues pelo Estado à guarda de instituições católicas. Em 2009, um relatório encomendado pelo Governo concluiu que os menores eram tratados “mais como prisioneiros e escravos” do que seres humanos, a quem eram impostos castigos rotineiros que podiam passar por espancamentos, abusos sexuais e outras formas de humilhação. Um outro inquérito revelou que durante quatro décadas a Diocese de Dublin ignorou todas as denúncias de pedofilia no seio do clero, protegeu os padres mudando-os de paróquia e impôs o silêncio às vítimas, segundo o jornal Público.
A viagem do Papa Francisco à Dublin, nos dias 25 e 26 de agosto de 2018, para o Encontro Mundial das Famílias, já estava marcada por grandes dificuldades. Mas o dossiê elaborado pelo ex-núncio vaticano Carlo Maria Viganò caiu como uma bomba no pontificado do Papa Francisco e em toda a Igreja Católica. Embora marcado por imprecisões e alegações duvidosas de que o Papa Francisco sabia sobre o abuso de seminaristas e crianças por parte do ex-cardeal Theodore McCarrick anos atrás, a denúncia aumentou a repercussão das denúncias de abusos sexuais na Igreja e colocou na ordem do dia a questão da impunidade e do envolvimento das altas autoridades do Clero.
Evidentemente, muitas denúncias podem simplesmente representar divergências internas da Igreja e luta pelo poder sobre os rumos do dogma católico. Mas como disse o editorial da National Catholic Reporter: “O papado de Francisco, tão promissor em relação a uma reforma necessária, está num ponto de inflexão. Ou ele lida com essa crise com ações efetivas, abrangentes e concretas, ou seu mandato será um fracasso decepcionante”.
Como mostrou Menozzi (IHU, 01/09/2018), o catolicismo, ao contrário do que acontecia na sociedade oficialmente cristã dos séculos anteriores, encontrou-se diante do problema levantado pelo advento do mundo moderno. Até o Concílio Vaticano II (1962-1965), a Igreja considerou que podia responder a esse problema, contrapondo um modelo ideal de sociedade cristã às aspirações do ser humano moderno. Assim, proclamou que somente o retorno a um regime de cristandade, isto é, a uma sociedade obediente às diretrizes eclesiásticas, poderia resolver todo problema da convivência civil. Mas isto acabou afastando cada vez mais as pessoas da prática católica. Por essa razão, a maioria dos Padres convocados ao Vaticano II para discutir as dificuldades encontradas pela Igreja no mundo contemporâneo decidiu mudar de rumo. Para poder comunicar a mensagem evangélica às pessoas modernas, a Igreja deveria abrir com elas um diálogo baseado no reconhecimento dos aspectos positivos da modernidade e avançar com uma agenda social. De fato, a Igreja abriu um diálogo com o marxismo via Teologia da Libertação.
O Papa Francisco tem buscado atuar na área da migração, dos direitos ambientais e nos direitos sociais (Teto, Terra e Trabalho). Na questão climática a encíclica Laudato Si’ se apoiou na visão da ciência para combater o aquecimento global e foi um instrumento importante para viabilizar o Acordo de Paris.
Todavia, a Igreja Católica continuou com ideias medievais e anti-modernas no que diz respeito à sexualidade humana. A doutrina expressa na encíclica Humanae Vitae, que completou 50 anos em julho de 2018, está totalmente defasada da realidade do mundo moderno. A encíclica do Papa Paulo VI, publicada em 1968 (ano que marcou a insatisfação da juventude com as estruturas arcaicas), considera a prática do sexo como um pecado, que só é tolerado quando há finalidade reprodutiva. Assim, a Igreja prescreve a abstinência sexual para os jovens que não são casados, abstinência para as mulheres que já chegaram à menopausa, além de condenar toda prática homossexual.
Mas, como diz a música dos Titãs, a população mundial não quer apenas “Teto, Terra e Trabalho” e alimentação:
“A gente não quer só comer
A gente quer comer e quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer pra aliviar a dor”
A liberdade sexual é um componente fundamental da modernidade, especialmente depois da Revolução Sexual dos anos de 1960. Desta forma, o sexo é praticado no mundo inteiro por pessoas das diferentes faixas etárias (especialmente a partir do final da adolescência) e de diferentes orientações sexuais. Nem os padres e os bispos conseguem conviver com a condenação e negação do sexo e com uma vida sem acesso às fontes de prazer e carinho.
Por conta disto, a Igreja Católica precisa reavaliar suas concepções sobre sexualidade e reprodução, pois o clero não consegue viver em um estado permanente de mortificação. Os padres e bispos estão perdendo a legitimidade e a autoridade que tinham no passado. As recentes denúncias de abusos sexuais envolveram, inclusive, os nomes dos Papas João Paulo II e Bento XVI.
O Papa Francisco está em uma encruzilhada. As críticas surgem principalmente dos setores conservadores da Igreja (numa espécie de guerra civil), mas também já críticas vindas dos setores de esquerda da sociedade. Na Argentina, há um movimento pela apostasia em massa, pois a coalizão que defende o Estado Laico e que ganhou destaque em manifestações a favor da legalização do aborto, rejeitada recentemente pelo Senado, criticam a posição do Papa Francisco, e encorajam a população a abandonar a Igreja Católica. Segundo o grupo, milhares já entregaram seus formulários de renúncia formal à Igreja. Mulheres cada vez mais autônomas e empoderadas não aceitam mais uma situação de inferioridade diante de uma Igreja patriarcal.
Por conta do ataque conservador e dos limites das reformas, a popularidade do Papa Francisco está em queda, conforme mostram diversas pesquisas, mesmo antes dos últimos escândalos e divergências. O gráfico acima, do Instituto PEW, mostra que, mesmo antes de revelações recentes, os católicos dos EUA deram ao Papa índices piores do que em 2015. Pesquisa divulgada pelo Instituto Latinobarômetro, em 12 de janeiro de 2018, pouco antes da visita do Papa ao Chile, mostrou que a avaliação do Pontífice, na pontuação de 0 a 10, caiu no continente de 7,2 pontos em 2013, para 6,8 pontos em 2017. No Chile, o Papa Francisco teve a pior avaliação, somente 5,3 pontos.
A questão sexual da Igreja vai muito além da guerra civil que colocou em pauta a renúncia do Papa Jorge Mario Bergoglio e requer uma avaliação de toda a doutrina construída ainda na Era Medieval. Talvez a Igreja precise abrir um diálogo com Sigmund Freud e fazer uma terapia, além de discutir o celibato. O aumento da secularização e o declínio do patriarcalismo enfraquece o poder clerical e cria uma disjunção entre a hierarquia católica e os fiéis, que são cada vez mais infiéis em relação aos dogmas tradicionais.
Ou a Igreja Católica se adapta ao século XXI e à maior liberdade do comportamento individual, ou vai perder progressivamente sua influência sobre as multidões universais.
Referências:
ALVES, JED. O Papa Francisco sob fogo cruzado e com baixa popularidade no Chile, Ecodebate, 19/01/2018 https://www.ecodebate.com.br/2018/01/19/o-papa-francisco-sob-fogo-cruzado-e-com-baixa-popularidade-no-chile-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
MICHAEL LIPKA. Even before recent revelations, U.S. Catholics gave Pope Francis declining ratings on sex abuse scandal, PEW, AUGUST 2, 2018
http://www.pewresearch.org/fact-tank/2018/08/02/even-before-recent-revelations-u-s-catholics-gave-pope-francis-declining-ratings-on-sex-abuse-scandal/
Editorial de National Catholic Reporter. É hora de escolher o doloroso caminho da purificação. 31/08/2018 http://www.ihu.unisinos.br/582341-e-hora-de-escolher-o-doloroso-caminho-da-purificacao-editorial-ncr
A Igreja, Francisco e as resistências. Entrevista com Daniele Menozzi, IHU, 01/09/2018
http://www.ihu.unisinos.br/582381-a-igreja-francisco-e-as-resistencias-entrevista-com-daniele-menozzi
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 10/09/2018
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