A questão ambiental entre a ciência e a ideologia, Parte 4/7, artigo de Roberto Naime
A questão ambiental entre a ciência e a ideologia, Parte 4/7, artigo de Roberto Naime
[EcoDebate] SILVA et al (1997) assinalam que a constatação da crise generalizada, identificada na ciência e refletida na sociedade, pode ser percebida como risco ou como oportunidade de se lançarem novas bases para mudanças.
A própria ciência hoje é colocada em questão, e segundo Acot, “na sua essência, a ciência é atravessada pelas ideologias e marcada pelas mentalidades, governada por instituições que intervém em suas criações e transformações, como inspiradora das demandas sociais” (ACOT, 1990: 189), ou seja, ela dependeria de um novo “quadro epistêmico” (PIAGET & GARCIA, 1987). Ou do que se tem denominado de nova autopoiese civilizatória.
A ciência e, sobretudo, seu uso técnico-industrial pode tanto estar a serviço da melhoria das condições ambientais e sociais, como ser utilizada para fins não tão nobres.
Assim sendo, Hottois nos diz que “a ideologia do progresso valoriza o cientista e o técnico sem os responsabilizar, quer dizer, sem considerar a questão ética a propósito de suas atividades. A atividade científica é julgada sempre boa. O risco de um mau uso da técnica, de uma má aplicação da ciência, está relacionado aos decisores políticos e sociais.
Responsabilizar a ciência é colocar em dúvida sua neutralidade é exigir dos técnicos mais do que a simples competência” (HOTTOIS, 1994:72).
Atrás desta suposta e inexistente neutralidade, é desnecessário enumerar todos os crimes já exercidos contra a humanidade.
Bornheim assinala que a técnica pode salvar, mas esconde o perigo da destruição. De certo modo, a ciência passou a dominar e decidir, revelando uma margem de irracionalidade que a aproxima do incontrolável.
É neste cenário que a ciência é apropriada pelas ideologias e matrizes de crescimento eterno, incompatíveis com os recursos naturais.
A ambiguidade presente na tecnologia e na política terminam por se entrecruzar, não significando necessariamente uma solução, mas a abertura para o processo de responsabilidade do empenho político (BORNHEIM, 1989).
Identifica-se que o período de transição atual necessitaria de uma ampla operação de reconceituação onde o conhecimento deveria ser reestruturado através de instrumentos inovadores e transdisciplinares, segundo SILVA et al (1997).
De certa maneira, a ciência ecológica, além de opor-se ao modelo mecanicista e reducionista nas ciências, busca a integração de diversas disciplinas e propõe a problemática visão holística, aqui entendida como a impossibilidade de reduzir os fenômenos em suas partes constituintes.
A este respeito Coutinho afirma que “inevitavelmente se impõe de novo a questão tão controversa de ser ou não, a Ecologia, uma disciplina que tenha transcendido as fronteiras da ciência moderna, sob o ponto de vista da sua racionalidade” (COUTINHO, 1992:128).
Odum considera que o aumento da atenção pública às questões ambientais afetou profundamente a ecologia acadêmica. Antes dos anos 70, a ecologia era vista, em grande parte, como uma subdivisão da biologia e, embora permaneça radicada na biologia, ela teria ganho a maioridade como uma disciplina integradora essencialmente nova, que une os processos físicos e biológicos e serve de ponte de ligação com as ciências sociais (ODUM, 1986).
Cramer & Daele afirmam que a Ecologia de Ecossistemas concebe a Natureza como um tipo de máquina, ainda que muito mais sofisticada do que o universo mecânico da física clássica (CRAMER & DAELE, 1985).
Deste modo, a ecologia é vista como uma perspectiva que sugere uma atitude tecnológica sistêmica e portadora de valores em relação à natureza. Assim, a moralização do ecossistema ou de suas propriedades e sua valorização como bens éticos, seria algo acrescentado e não implicado pelo conhecimento ecológico.
A causa ecológica busca, então, ultrapassar as incertezas e ambiguidades existentes, sendo entendida como um movimento mais profundo que coloca em questão o conjunto de valores da modernidade. Dupuy identifica que “as respostas que a ecologia não traz, é em outros lugares que devem ser procuradas, ou seja, na renovação da filosofia política, na emergência de uma nova filosofia da natureza, na eclosão de um novo paradigma científico” (DUPUY, 1980:89). E mais amplamente falando, de uma nova autopoiese civilizatória.
Diante da problemática ambiental vivenciada pelas sociedades pós-industriais modernas, surge a politização das questões incorporadas a partir dos conceitos e representações da ecologia conforme destacam SILVA et al (1997).
Desta forma, o “ecologismo”, visto como movimento político, surgiu, como sugerem Lago & Pádua, “da percepção que a atual crise ecológica não se deve a “defeitos” setoriais e ocasionais no sistema dominante mas é consequência direta de um modelo de civilização insustentável do ponto de vista ecológico e socialmente injusto” (LAGO & PÁDUA, 1985:36).
A crise única na civilização exige a invenção de um novo caminho. O que aqui tem se denominado novo arranjo de equilíbrio civilizatório.
Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.
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Nota da Redação: Sugerimos que leia, também, as partes anteriores desta série de artigos:
A questão ambiental entre a ciência e a ideologia, Parte 1/7
A questão ambiental entre a ciência e a ideologia, Parte 2/7
A questão ambiental entre a ciência e a ideologia, Parte 3/7
Referências:
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 31/07/2018
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