A questão ambiental entre a ciência e a ideologia, Parte 3/7, artigo de Roberto Naime
A questão ambiental entre a ciência e a ideologia, Parte 3/7, artigo de Roberto Naime
[EcoDebate] SILVA et al (1997) indicam que antes de possuir caráter científico “stricto sensu”, a ideia de equilíbrio da natureza teve uma base teológica.
Assim, a crença na perfeição do desígnio divino precedeu e sustentou o conceito de cadeia ecológica, com forte conotação conservacionista. No século XVIII, a maior parte dos cientistas e teólogos defendia que todas as espécies da criação tinham um papel necessário a desempenhar na economia da natureza (THOMAS, 1989).
A visão mística de natureza não abandonou totalmente as representações sociais e, ainda é adotada por alguns grupos do movimento ambientalista.
Pode-se admitir que a origem da ciência ecológica está associada ao estudo de história natural na Inglaterra do século XVI e, conforme McCormick, “o crescimento do interesse pela história natural revelou as consequências da relação de exploração do homem com a natureza. Isto levou inicialmente a um movimento pela proteção da vida selvagem e a primeira influência sobre o movimento ambientalista britânico surgiu do estudo da história natural” (MCCORMICK, 1992:22).
Os fundamentos da botânica e da zoologia modernas, além dos de outras ciências biológicas, foram estabelecidos pelos trabalhos de naturalistas amadores nos séculos XVI, XVII e XVIII. McCormick comenta ainda que as descobertas do naturalista John Ray e do botânico Carl von Linné (Linnaeus), cujo trabalho em taxonomia botânica foi a infância da ecologia, e estimularam as pesquisas em ciências naturais, culminando nas teorias de Darwin e Wallace.
SILVA et al (1997) assevera que a ecologia como disciplina científica tem seus primeiros fundamentos definidos no século XIX e Acot diz que o termo ecologia (Oekologie) foi citado em 1866, por Ernest Haeckel (1834-1919).
Numa nota de rodapé de página de seu livro “Generelle Morphologie der Organismen”, a palavra biologia é substituída por ecologia, sendo esta definida por Haeckel como a “ciência da economia, do modo de vida, das relações externas do organismo” (Haeckel apud ACOT, 1990:27).
Contudo, somente na segunda metade do século XX é que a síntese completa da ecologia foi constituída coerentemente. No presente, define-se a ecologia como “o estudo das relações dos organismos vivos ao seu ambiente, ou a ciência das inter-relações que ligam os organismos vivos ao seu ambiente” (ODUM, 1986:4).
O pensamento sistêmico tentava explicar a vida numa perspectiva holística, não reducionista e fragmentária, travando-se uma disputa entre as concepções vitalistas e organicistas, num sinal precursor do reconhecimento da complexidade (FERNANDEZ, 1995).
O biólogo Ludwig von Bertalanffy, nos anos 40, propôs a construção de uma espécie de “metadisciplina”, a Teoria Geral dos Sistemas. Segundo ele, “somos forçados a tratar como complexos, com “totalidades”, os “sistemas” em todos os campos do conhecimento. Isto implica uma fundamental reorientação do pensamento científico” (BERTALANFFY, 1977:19-20).
Assim, a visão sistêmica influenciou o surgimento de novas áreas do conhecimento, dentre elas, a ciência ecológica. ODUM (1986) assinala que o termo ecossistema teria sido proposto pelo ecologista inglês A. G. Tansley, em 1935.
Posteriormente, o mecanismo ecossistêmico pôde ser compreendido através da associação entre as bases termodinâmicas do ser vivo lançadas em 1945 pelo físico Schrödinger e o modelo cibernético desenvolvido por Norbert Wiener.
A formulação integrada da ecologia ocorreu no decorrer dos anos 50 e 60 com os irmãos Odum. Através da publicação Fundamentals of Ecology (ODUM, 1971), utilizaram a linguagem da termodinâmica a fim de descrever o funcionamento dos sistemas ecológicos.
Desta forma, afirmam que tanto os organismos vivos e os ecossistemas, bem como toda a biosfera teriam a característica termodinâmica essencial de serem capazes de criar e manter um estado de ordem interna ou de baixa entropia.
SILVA et al (1997) assinalam que no fim dos anos 60, as pesquisas estatísticas das dinâmicas das populações conduziram à elaboração de modelos matemáticos de evolução dos ecossistemas, estes vistos como sistemas complexos, onde o conjunto de equilibração ou “homeostase” pôde ser descrito por mecanismos de retroação ou “feedback”, conceito central da cibernética proposta por Nobert Wiener, na década de 40.
Assim estavam dadas as bases para melhor explicar a inter-relação dos sistemas vivos com o ambiente. A partir destes modelos ecossistêmicos foi possível compreender melhor os impactos da poluição sobre os sistemas ecológicos, os quais, ao serem associados aos graves acidentes ambientais, tais como a contaminação da Baía de Minamata e Nagata no Japão, o vazamento de gases tóxicos em Seveso e Bhopal, os acidentes de usinas nucleares em “Three Miles Island” ou “Tchernobyl”.
E segundo SILVA et al (1997), as mudanças climáticas, a destruição de florestas com a perda da biodiversidade, a poluição generalizada dos rios, mares, solos e atmosfera, e ao serem agravados pelos níveis de pobreza e miséria da maior parte da população mundial, proporcionaram importantes argumentos para questionar o poder e os rumos no uso da tecnociência, impulsionando os diversos movimentos contestatórios em todo o mundo.
Com base nos novos modelos científicos, tem-se uma visão integrada dos diversos ecossistemas terrestres, e a questão ambiental passa a ser tratada em nível global. Por questão ambiental pode-se entender a contradição fundamental que se estabeleceu entre os modelos de desenvolvimento adotados pelo homem e a sustentação deste desenvolvimento pela natureza.
A partir da Revolução Industrial, a velocidade de produção de resíduos pela sociedade, o avanço do mundo urbanizado e a força poluidora das atividades bélicas e industriais superaram em muito a capacidade regenerativa dos ecossistemas e a reciclagem dos recursos naturais renováveis, colocando em níveis de exaustão os demais recursos naturais não renováveis (TOYNBEE, 1982).
Essa problemática ambiental apontaria para a “crise da relação” ou crise da moradia na qual a vida se faz. E crise da racionalidade das relações que os seres estabelecem entre si, com outros seres vivos e com a própria moradia (oikos) e “crise de valores”.
SILVA et al (1997) assinalam que frente a situação de integração mundial de nosso tempo, a cooperação é imprescindível, mas é necessário o estabelecimento de novos valores para o enfrentamento de tão rápida transformação. A questão ecológica se refere a uma crise de conceito e uma crise de projeto (SCHRAMM, 1992) da civilização.
A abordagem sociológica e antropológica alicerça movimentos da sociedade que propugnam alterações ideológicas como apanágios para a solução de problemas ambientais.
Não ocorre encaminhamento de soluções, pois tanto vertentes socialistas quanto da livre iniciativa adotam a cartilha de crescimento permanente como forma de incrementar círculos econômicos virtuosos.
Por isso se sabe que leis e normas não vão resolver os problemas, embora sejam relevantes. A civilização humana determinará nova autopoiese sistêmica, na acepção de Niklas Luhmann e Ulrich Beck, que contemple a solução dos maiores problemas e contradições exibidas pelo atual arranjo de equilíbrio.
O “sistema” vai acabar impondo uma nova metamorfose efetiva.
Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.
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SILVA, Elmo Rodrigues, SCHRAMM, Fermin Roland, A questão ecológica: entre a ciência e a ideologia/utopia de uma época, Cad. Saúde Pública vol. 13 n. 3 Rio de Janeiro Jul./Sep. 1997, http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X1997000300002
Nota da Redação: Sugerimos que leia, também, as partes anteriores desta série de artigos:
A questão ambiental entre a ciência e a ideologia, Parte 1/7
A questão ambiental entre a ciência e a ideologia, Parte 2/7
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 26/07/2018
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