50 anos da encíclica Humanae Vitae: sexo e reprodução no século XXI, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
[EcoDebate] O Planejamento Familiar foi reconhecido como um direito humano básico na Conferência de Direitos Humanos, ocorrida em Teerã, no dia 13 de maio de 1968, realizada para avançar e comemorar os 20 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, da ONU.
A década de 1960 foi marcada pela Revolução Sexual e a luta contra o autoritarismo político e a moral conservadora, responsáveis por uma infinidade de interditos, tabus e repressões referentes à sexualidade, ao prazer, à masturbação, etc. O ano de 1968 também foi repleto de manifestações da juventude em todo o mundo defendendo a liberdade sexual como um direito ao prazer e a aceitação do sexo fora do casamento e das relações heterossexuais, procriativas e monogâmicas tradicionais.
Mas foi também em 1968 que a igreja Católica marcou um gol contra e se afastou das reivindicações e das aspirações desejadas pela juventude global ao publicar uma encíclica controversa defendendo uma concepção medieval da sexualidade e que repudia o uso de métodos contraceptivos modernos como um direito humano básico das pessoas e dos casais. A encíclica Humanae Vitae, do Papa Paulo VI, foi lançada no dia 25 de julho de 1968 e é uma das responsáveis pela apostasia da juventude e pela perda de fiéis católicos ao longo das décadas seguintes.
A encíclica Humanae Vitae não tem nada a dizer à maioria dos jovens modernos, pois defende uma visão agostiniana da repressão ao desejo carnal, entendendo o sexo como um vício e uma prática má – responsável pelo Pecado Original e a perda do Paraíso – que só deveria ser aceito quando acompanhado de uma finalidade procriativa. Ela reforça a cultura cristã tradicional contra os prazeres da carne e a culpa individual diante da atração física. Em vez de lidar com a liberdade que progredia e avançava em uma sociedade moderna com diversidade de oportunidades, a encíclica reforçou a culpa diante dos impulsos sensoriais e dos prazeres do sexo. Reforçou a negação e não a afirmação das personalidades. Exigiu a repressão ao invés da libertação. Defendeu a padronização e o comportamento de rebanho reprimido ao invés da diversidade e da liberdade de escolha e da satisfação pessoal, ainda que com o compromisso da responsabilidade social.
Num momento em que a população mundial crescia a 2,1% ao ano (máximo de todos os tempos) e os problemas ambientais se agravavam, a encíclica Humanae Vitae foi lançada com uma mensagem pronatalista, totalmente antropocêntrica e que não se preocupou com as consequências da superpopulação e nem com a vida demais espécies da Terra. Portanto, é uma encíclica antiecológica e contrasta com a mensagem da encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco. Nos 50 anos da Humanae Vitae, a população mundial passou de 3,5 bilhões de habitantes para 7,5 bilhões de habitantes, um acréscimo de 4 bilhões de pessoas. Este alto volume de crescimento, evidentemente, contribuiu para o aumento da Pegada Ecológica e a redução da Biocapacidade do Planeta. Em 1968, existia superávit ambiental, mas ao longo dos anos de 1970 a humanidade superou a capacidade de carga da Terra e o déficit ambiental se ampliou. Toda a civilização está ameaça diante da possibilidade de um colapso ambiental.
Em 1968, o mundo já estava avançado na primeira fase da transição demográfica, isto é, havia uma grande redução das taxas de mortalidade, especialmente, a mortalidade infantil. Aumentou o número de filhos sobreviventes nas famílias. De tal forma, os casais atingiam o tamanho ideal de filhos com antecedência. Assim, as famílias passaram a demandar métodos contraceptivos para espaçar o tempo de nascimento entre os filhos e para evitar um número excessivo de crianças que inviabilizariam o investimento na qualidade de todos os membros do arranjo familiar. Com a queda das taxas de mortalidade, as famílias puderam investir mais na qualidade dos filhos e menos na quantidade.
Porém, a Humanae Vitae veio, na prática, reduzir a liberdade de escolha sobre o tamanho da família por parte dos católicos. Aliás, a encíclica foi fruto de uma “manobra conservadora”. O jornalista Robert McClory, no livro “Turning Point: The Inside Story of the Papal Birth Control Commission, and how Humanae Vitae Changed the Life of Patty Crowley and the Future of the Church” (1995), mostra que a “Comissão Papal do controle da natalidade” (com cerca de 70 membros), criada por iniciativa do Concílio Vaticano II, após longo debate, concluiu que a contracepção artificial deveria ser considerada moralmente aceitável para os casais. No final dos trabalhos, após uma votação por 52 votos a 4, encaminhou um relatório com a posição da maioria para o Papa Paulo VI recomendando a aceitação dos métodos contraceptivos artificiais.
Porém, o pequeno número de membros da Comissão que se opunha a essa mudança, em conjunto com funcionários conservadores do Vaticano, construiu um relatório minoritário contra as mudanças no dogma da Igreja sobre contracepção. Este relatório minoritário constituiu a base da encíclica Humanae Vitae.
Artigo de Massimo Faggioli (HU, 13/07/2018), relatando o recém lançado livro “O nascimento de uma encíclica. Humanae vitae à luz dos Arquivos Vaticanos” do monsenhor italiano Gilfredo Marengo, diz: “Foi no rastro dessa divisão que Paulo VI finalmente decidiu desconsiderar o conselho da maioria dos bispos que lhe haviam enviado suas sugestões após o Sínodo. Marengo observa que as pessoas que Paulo VI escolheu para redigir a encíclica fizeram poucos esforços para escutar e responder às preocupações da maioria da comissão”.
Isto mostra que a encíclica Humanae Vitae não levou em consideração as visões menos dogmáticas em relação ao sexo e a reprodução. Querer difundir a ideia da procriação via proibição de uso de métodos contraceptivos é algo parecido com o uso da palmatória que os professores e os pais usavam para castigar os alunos e os filhos. A pedagogia já mostrou que o ensino é mais eficiente quando se usa medidas de incentivo e não o estabelecimento de castigos e proibições.
Alguns defensores da encíclica dizem que ela é necessária neste momento que alguns países passam pela “implosão demográfica”, pois possuem taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição, que é de 2,1 filhos por mulher. Contudo, não será proibindo o uso de contraceptivos que se obterá aumento da prole. Por outro lado, existem países com taxas elevadas. Uma taxa de fecundidade de 3 filhos faz a população crescer rapidamente no longo prazo. Se a maioria dos católicos tiverem 3 ou 4 filhos isto já provocaria um grande crescimento demográfico. Mesmo assim, as mulheres e os casais precisariam do uso de contraceptivos para espaçar o intervalo de nascimentos dos filhos e para evitar nascimentos após se atingir o número ideal de filhos quer seja 3, 4 ou 5 filhos. Defender a abstinência sexual dentro do casamento não parece uma solução justa para se recomendar a um casal que se ama genuinamente e já tenha atingido o número de filhos desejados.
Alguns defensores da Humanae Vitae dizem que o maior perigo do mundo é o “colapso demográfico” defendido pelos “profetas gnósticos”. Porém, a taxa de fecundidade total (TFT), no mundo, está em 2,5 filhos por mulher e se cair para 2 filhos por mulher a população mundial vai chegar a 11,2 bilhões de habitantes em 2100. Se a TFT se mantiver em 2,5 filhos, a população mundial chegará a 17 bilhões de habitantes em 2100, segundo as projeções da Divisão de População da ONU. Portanto, bastam 2,1 filhos em média para manter a população estável.
Existem diversas vozes dentro da própria igreja católica que consideram que a recusa em aceitar o fato de os fiéis usarem métodos contraceptivos e praticarem o sexo fora da finalidade procriativa provocou um grande êxodo da Igreja Católica, em especial, entre os jovens. A encíclica contribuiu também para o descrédito do ensino hierárquico oficial, pois todos sabem que a maioria dos católicos usam métodos contraceptivos e praticam sexo não procriativo, mesmo com todas as proibições e interdições da Humanae Vitae. Teria sido melhor se a Igreja tivesse seguido o ensinamento da feminista brasileira Maria Lacerda de Moura (1887-1945), que dizia: “Amem-se mais uns aos outros e não se multipliquem tanto”.
Os 50 anos da Humanae Vitae é um bom momento para se fazer uma autocrítica e para reorientar o ensino religioso sobre o sexo e a reprodução, evitando os dogmas obscurantistas e repressores. É incorreto imiscuir na liberdade do amor entre as pessoas adultas e conscientes. Como diz a música de Milton Nascimento e Caetano Veloso: “Qualquer maneira de amor vale amar, qualquer maneira de amor vale a pena”.
Pesquisa do Instituto Datafolha de 2013, mostra que entre os católicos brasileiros, o percentual de pessoas favoráveis ao uso da camisinha é de 84%, ao uso da pílula anticoncepcional 77%, ao uso da pílula do dia seguinte 61%, ao divórcio 60%, que mulheres possam celebrar missas 58% e que os padres possam casar e constituir família 48% (ante 41% que são contrários).
Como disse a revista católica Conscience (29/04/2018): “Depois de cinquenta anos, o dano que a Humanae Vitae causou às vidas de católicos e não católicos em todo o mundo, bem como à própria Igreja Católica, é evidente. Os católicos continuam a usar e aprovar contraceptivos em número crescente, aumentando a divisão entre retórica e realidade na igreja. Somente confrontando os erros mais fundamentais da hierarquia, a igreja católica pode avançar e a sombra da Humane Vitae ser finalmente apagada”.
Joseph Selling, professor emérito de ética teológica, a Humanae Vitae não representa o pensamento tradicional da Igreja e que a tradição não deve ser usada para o atraso e sim para o progresso: “A verdadeira doutrina tradicional tinha sido substituída. Os acontecimentos dos últimos 50 anos colocam em xeque o êxito dessa tentativa. Neste ponto, é importante perceber que se a doutrina de Humanae Vitae é deixada de lado, nenhum dano é causado à verdadeira doutrina tradicional. Se o atual ocupante do escritório papal der esse passo, terá confirmado que o objetivo da própria tradição é ir para frente, não para trás” (14/07/2018).
Como mostrou Lisa Mcclain (09/07/2018), “Muita coisa mudou na Igreja Católica desde 1968. Hoje, os padres priorizam pastoralmente o prazer sexual entre os cônjuges. Enquanto as proibições ao controle de natalidade continuam, muitos pastores discutem as razões pelas quais um casal pode querer usar contraceptivos artificiais, desde proteger um parceiro contra uma doença sexualmente transmissível até limitar o tamanho da família para o bem da família ou do planeta. Conduto, apesar das mudanças nas atitudes da igreja sobre o sexo, as proibições da Humanae Vitae permanecem. Milhões de católicos em todo o mundo, no entanto, simplesmente optaram por ignorá-los”.
A insistência em manter os dogmas da encíclica Humanae Vitae só afasta grande parte da população, em especial, o movimento de mulheres que deseja ampliar a autonomia feminina, o movimento pelo casamento de pessoas do mesmo sexo e a juventude que deseja gozar os prazeres da vida de maneira livre e ética, mas sem as interdições da culpa e do pecado. Mais de 40% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, sendo que a maioria delas não aceita o patriarcalismo do ensino tradicional.
A Igreja Católica já errou no passado e já reconheceu o erro e fez autocrítica. No dia 22 de junho de 1633, o cientista italiano Galileu Galilei, cujos conceitos científicos mudaram a Física, Matemática e Astronomia, foi condenado pela Igreja Católica. Galileu reiterava e defendia a teoria do heliocentrismo, mas segundo o Tribunal da Santa Inquisição, esta teoria contrariava as crenças filosóficas e religiosas da época, que defendiam a ideia de que a Terra era o centro do Universo. Mais de 300 anos depois, o Papa João Paulo II reconheceu os erros cometidos pela Igreja na época e absolveu Galileu Galilei.
Será que a Igreja vai continuar tratando o sexo e a concepção no século XXI com a mesma noção de culpa e castigo que Santo Agostinho recomendou a proibição do sexo não reprodutivo no século IV?
Será que a Igreja vai esperar outros 300 anos para fazer uma autocrítica – assim como fez com Galileu – e reconhecer que a encíclica Humanae Vitae foi um equívoco e que é preciso absorver as pessoas e os casais que usam métodos contraceptivos artificiais e fazem sexo por amor e não, necessariamente, por finalidade reprodutiva?
Referências:
ALVES, JED. CAVENAGHI, S. Igreja Católica, Direitos Reprodutivos e Direitos Ambientais, Horizonte, Belo Horizonte, v. 15, n. 47, p. 736-769, jul./set. 2017
http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2017v15n47p736
ALVES, JED. A revisão da encíclica Humanae Vitae e os direitos sexuais e reprodutivos, Ecodebate, 16/10/2017
CONSCIENCE. Humanae Vitae. The Story Behind the Ban on Contraception, Conscience, 29/04/2018 http://consciencemag.org/2018/04/29/humanae-vitae/
HUMANAE VITAE, Carta Encíclica de Sua Santidade o Papa Paulo Vi sobre a Regulação da Natalidade
McCLORY, Robert. Turning Point: The Inside Story of the Papal Birth Control Commission, and how Humanae Vitae Changed the Life of Patty Crowley and the Future of the Church. New York: The Crossroad Publishing Company, 1995.
LISA MCCLAIN. How the Catholic Church came to oppose birth control, The Conversation, 09/07/2018
https://theconversation.com/how-the-catholic-church-came-to-oppose-birth-control-95694
MASSIMO FAGGIOLI. Humanae vitae foi um texto reescrito: o complicado nascimento de uma encíclica controversa, IHU, 13/07/2018
JOSEPH SELLING. Substituindo a tradição: ‘Humanae Vitae’ substituiu a verdadeira doutrina da Igreja, IHU, 14/07/2018 http://www.ihu.unisinos.br/579545-substituindo-a-tradicao-humanae-vitae-substituiu-a-verdadeira-doutrina-da-igreja
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 18/07/2018
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Excelente argumentação.A Instituição e suas patologias