Ser humano ou ser Coisa? artigo de Paulo Sanda
[EcoDebate] Estava eu indo buscar meus filhos na escola, quando escuto no rádio: … % dos alunos do ensino médio não está prontos para o mercado de trabalho …
Os “pontinhos” são porque eu não consegui ouvir direito, não consigo me lembrar, ou talvez porque não queira me lembrar, pois fiquei chocado.
Fiquei chocado não com a afirmação da notícia, mas com ela, ou melhor, ou pior não sei dizer; fiquei chocado pois cheguei a conclusão que muitas pessoas, se não for a quase totalidade das que ouviram imagino que ficaram chocadas. Ou seja meu espanto é pensar que as pessoas em geral concordam que o objetivo do ensino é a capacitação para o mercado de trabalho.
Aliás é bem provável que você ao ler as linhas acima esteja pensando; E não é?
Mas me dê uma chance, caminhe mais um pouco comigo em minhas mal traçadas linhas.
Imagine a seguinte cena, um bebê acabou de nascer, os pais o pegam no colo e sorrindo se perguntam; “Quando será que ele estará pronto para o mercado de trabalho?”
A cena é absurda? Sim tão absurda quanto o resultado da tal pesquisa, tão absurdo quanto nós docilmente acreditarmos que as crianças devem ir para escola para poderem ser inseridas no mercado de trabalho.
Você provavelmente ainda não entendeu, ou se pensa que entendeu, discorda. Não da pesquisa, mas do miserável escriba, então vamos eu vou pegar você pela mão mais um pouco.
Nós humanos somos pobres de natureza, uma tartaruga marinha por exemplo, já nasce tartaruga, os ovos eclodem e logo a seguir elas se arrastam em direção ao mar, sozinhas elas nascem e as que não forem pegas por predadores crescerão e poderão em alguns anos renovar o ciclo da vida pondo novos ovos na areia da praia. Um bebê abandonado a própria sorte é um bebê morto em poucas horas. Uma criança mesmo que sobreviva sem o amparo de adultos, nunca vai aprender a falar. Tudo o que somos é o resultado de interações com o meio em que vivemos, isto é a sociedade.
No entanto para que estas interações ocorram nós precisamos de ferramentas, algumas delas até são apetrechos que temos desde o nascimento, a visão, audição, paladar, tato e olfato por exemplo, porém os sentidos não bastam, sobre eles temos que colocar ainda outras ferramentas, a linguagem por exemplo que vai fazer uso da audição e da capacidade de emitir sons, e note que esta capacidade em si não é fala, trata-se apenas de um sistema pelo qual ar passa por nossas cordas vocais, para o desenvolvimento da fala e da capacidade de comunicação pela linguagem oral é preciso educação, educação no sentido do convívio com pessoas que já tenham esta desenvolvida. Para isto são necessários meses para as primeiras palavras, e uns poucos anos para que a comunicação oral possa de fato se estabelecer.
No entanto este processo educativo não para na linguagem como todos sabemos, é preciso mais, muito mais para a formação de uma pessoa, um ser humano. Entre outras coisas a criança precisará aprender a viver em sociedade. E não vou nestas linhas discutir o método educativo, mas em geral bastará viver em sociedade.
Acontece que nós somos seres em constante construção, nossa sociedade; que por sinal não é o ápice civilizatório que muitos talvez acreditem, muito pelo contrário, temos certamente um longo caminho pela frente. Nossa sociedade não apareceu magicamente, por um ato divino, ou demoníaco que sabe? Ela é fruto de séculos, milênios de interações entre a espécie humana com seu meio, e entre si, informações passadas das mais diversas formas possibilitam que um primata bípede sem garras, ou presas, sem asas, carapaça, etc. Tenha se tornado o mais temível predador do planeta, capaz de matar qualquer outro animal, ou ainda não apenas voar, mas sair do planeta, se locomover a uma velocidades até acima do som, conter ou desviar o curso de rios, destruir montanhas e até transfega-las em crateras. E ao mesmo tempo que nos tornamos o algoz da natureza e de nós mesmos, também outras capacidades foram desenvolvidas, técnicas que buscam restaurar o ambiente, preservar o planeta e as demais espécies, curar doenças, melhorar a forma com que vivemos, entender o outro como outro e não como coisa.
É fato que avançamos muito mais no primeiro grupo de conhecimento, se fossemos capazes de preservar e restaurar na mesma velocidade que o somos ao destruir, teríamos certamente um planeta maravilhosamente bem cuidado, o que não acontece, se fossemos capazes de entender o outro como outro e não coisa, certamente não haveria desigualdade, miséria, guerras, etc. Neste sentido podemos dizer que a humanidade nos quesitos destrutivos está no ensino superior e talvez até em pós graduações, e na preservação talvez no fundamental 1.
E isto acontece porque o desenvolvimento das ferramentas agressivas é algo primitivo, instintivo, como o animal que acuado ataca. O instinto de preservação, o mesmo que nos leva a acreditar que o objetivo primeiro e único do ensino seja o mercado de trabalho. O ambiente competitivo onde se mata ou morre.
Deixe-me contradizer um pouco então; ora a medicina não é um campo como o dos negócios, nela o objetivo é salvar vidas. Ma non tropo, primeiro que “salvar vidas” é a frase de efeito o ápice, a glória, é ser um cirurgião por exemplo, que por sinal tem grande status social e faturamento. São necessários sim, porém antes do “salvar vidas” a beira da morte, temos o manter vidas com boas condições, o médico da família, aquele que acompanha seus pacientes, busca a melhorar a saúde da comunidade em que atua, este porém não tem glamour, e o salário é menorzinho. Então sim, mesmo na medicina de modo geral trata-se de mercado de trabalho, competição, um ganha outros perdem. A mesma lógica primária ou primitiva.
Sim é obvio que na sociedade que temos é preciso o trabalho, porém o ser humano não foi feito para o trabalho, mas ele para o ser humano. E pior pela raiz etimológica da palavra, é preciso a tortura, então os estudantes estão se preparando para o mercado de tortura, e por isto happy hour é sexta feira após o expediente. É por isto tanta frustração, insensibilidade, mágoa e sofrimento, pois assumimos não de forma resignada mas defendemos esta deturpação, que nos transforma de seres humanos em formação para sermos “coisas” cujo valor pode ser medido por quesitos como produtividade por exemplo, somos assim “coisificados”.
Se preparar ou ser preparado para o mercado de tortura, digo de trabalho é sim parte do ensino, afinal a cadeia produtiva em nosso meio se mistura no conceito de cadeia alimentar, como dizia Hobbes, o homem é o lobo do homem. Porém não é, ou não deveria ser, o ensino deveria se parte de um todo que nos integra e faz com que sejamos sujeitos desta humanidade que está em construção.
Paulo Sanda, Teólogo, palestrante, associado da ONG RUAH. É pároco na paróquia de Santo Estevão.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 11/04/2018
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