MPF defende obrigatoriedade de consultar povos afetados por empreendimentos hidrelétricos na Amazônia
Mesmo cancelada pelo Ibama, usina São Luiz do Tapajós vai ser novamente julgada no TRF1 por desrespeitar o direito de consulta prévia, livre e informada
Cancelada há pouco mais de um ano pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), a usina de São Luiz do Tapajós voltará a ser julgada na Justiça, por ter desrespeitado o direito de consulta prévia, livre e informada dos povos que seriam atingidos pelo empreendimento. A discussão jurídica sobre a consulta prévia, prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), é considerada atrasada no Brasil em comparação com outros países da América Latina onde o direito já é reconhecido pelas cortes superiores.
No caso de São Luiz do Tapajós, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública exigindo respeito à consulta e foi vitorioso na primeira instância da Justiça Federal. O governo brasileiro recorreu e agora esse recurso deve ser julgado no Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF1), em Brasília. O MPF apresentou nesta semana seus argumentos para que a sentença de primeiro grau seja mantida.
Apesar do cancelamento da usina, o debate sobre o direito de consulta prossegue no Judiciário, principalmente porque o governo brasileiro nunca realizou uma consulta, em nenhum dos empreendimentos que promove, causando danos muitas vezes irreversíveis a povos que deveriam ser efetivamente protegidos, conforme prevê a legislação nacional e internacional. O MPF acompanha, atualmente, 12 processos judiciais que tratam do direito de consulta em diversos empreendimentos, todos com decisões favoráveis tanto na primeira, quanto na segunda instância.
“Em que pesem os sucessivos reconhecimentos em primeira e segunda instâncias, é preciso que
o Poder Judiciário internalize os padrões internacionais estabelecidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos”, alerta o MPF, que lembra que em outros países do continente, como Bolívia, Colômbia, Peru, Chile e México, a discussão jurídica sobre a consulta prévia está bem mais avançada, com decisões das cortes superiores reconhecendo a obrigatoriedade. No Brasil, as decisões de segunda instância, sobretudo no TRF1, são mais recentes e o tema só foi debatido colateralmente pelo Supremo Tribunal Federal, no caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. O primeiro caso de consulta prévia que deve chegar ao STF é o que trata da consulta da usina de Belo Monte, nunca realizada.
Na peça em que pede a confirmação da obrigatoriedade da consulta para a usina São Luiz do Tapajós, o procurador da República Camões Boaventura lembra que, durante muito tempo, povos indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais foram concebidos pela legislação nacional e internacional como incapazes de tomar suas próprias decisões. “Partia-se da noção de que estes grupos deveriam ser progressivamente integrados e “assimilados” à sociedade nacional, pois estariam em um estágio prévio em termos de evolução social”, no que ficou conhecido como paradigma integracionista ou tutelar.
Foi a Convenção 169 da OIT que mudou o paradigma internacional e estabeleceu o respeito à diversidade étnica e cultural como bases da relação entre os estados nacionais e os povos abrigados em seus territórios. No Brasil, a Constituição de 1988 também marca um rompimento com a maneira anterior de tratar esses povos, ao reconhecer sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”. Nos dois documentos, o direito dos povos à autodeterminação é a pedra fundamental do respeito às diferenças e, no caso da Convenção 169, cria-se um instrumento específico para a aplicação desse direito, que é a consulta prévia, livre e informada.
Para o MPF, trata-se de criar condições para tornar o pluralismo político uma realidade na democracia brasileira. A consulta prévia, argumenta, pode fazer ver o que não era visto, permitir a manifestação do dissensso, contrapor mundos sensíveis e formas diversas de se relacionar com a natureza e com o território. É, portanto, um direito fundamental por excelência.
Direito fundamental – Na peça enviada como resposta ao recurso do governo, o MPF assinala que o regime democrático, embora represente um governo do povo, não se confunde com um “maioritarismo”, no qual os grupos políticos dominantes podem impor suas vontades aos grupos minoritários. “A democracia possui uma dimensão contramajoritária que consiste justamente na imposição de limites à atuação das maiorias políticas”, diz o procurador Camões Boaventura. Nesse sentido é que a consulta prévia se constitui em um direito que se relaciona diretamente com outros direitos fundamentais como à propriedade coletiva, à cultura, à vida, à integridade espiritual e à sobrevivência.
Sem a consulta prévia, diz o MPF, “as posições políticas dos grupos culturalmente diferenciados eram simplesmente invisibilizadas, mesmo porque historicamente o sistema representativo sempre
se mostrou ineficaz no que diz respeito à participação política das minorias étnicas”. Por isso, trata-se de assegurar o “espaço de concretização do pluralismo político, na medida em que propicia que diferentes visões de mundo se confrontem na arena pública (estatal e empresarial às perspectivas identitárias dos povos indígenas e tribais, por exemplo), possibilitando a emergência de visões e perspectivas acerca das medidas administrativas e/ou legislativas previstas”.
O julgamento sobre a consulta prévia de São Luiz do Tapajós ainda não tem data confirmada.
Processo nº 3883-98.2012.4.01.3902
Veja aqui a íntegra da peça enviada pelo MPF ao TRF1
Fonte: Ministério Público Federal no Pará
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 28/11/2017
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