Dois anos do desastre de Mariana, uma catástrofe lenta e dolorosa
Dois anos do desastre de Mariana, uma catástrofe lenta e dolorosa. Entrevista especial com Fabiano de Melo
IHU
Dois anos depois do desastre que atingiu a região do subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 quilômetros do centro do município de Mariana, em Minas Gerais, “o cenário ainda parece de guerra, porque toda a região dos distritos foi destruída, especialmente as residências”, relata o biólogo Fabiano de Melo à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Segundo ele, desde que o desastre aconteceu, em novembro de 2015, “as áreas rurais e os trechos do rio Doce na zona rural foram melhorados. Entretanto, a região mais urbana, especialmente aquela dos distritos que foram mais atingidos, está totalmente devastada e continuará assim, porque foi totalmente inviabilizada”. O discurso de recuperação da área e de reassentamento das famílias, diz, prevê que a situação seja regularizada até 2019, “mas não sei se teremos alguma mudança antes de 2020. (…) Até o momento as principais famílias atingidas continuam numa situação provisória de morar de aluguel em outras áreas e em outras regiões”, adverte.
Melo informa ainda que, embora tenha havido uma melhora na condição da calha principal do rio Doce, “a qualidade da água do rio piorou ao longo dos meses. Então, mesmo depois de dois anos, dos quase 18 pontos do rio analisados, 16 apresentaram qualidade de água péssima e dois, regulares. Isso significa que a água está bastante imprópria para o consumo em todo esse trecho analisado pela Fundação SOS Mata Atlântica”, afirma. De acordo com ele, os estudos realizados até o momento ainda não conseguem diagnosticar os prejuízos causados na biodiversidade da região. “Acredito que nos próximos cinco anos teremos estudos bem intensivos sobre a dinâmica do impacto, não só em relação às questões físicas da água, do solo, da bacia, como também da parte biótica, que afeta a população humana e, particularmente, os pescadores que foram atingidos. Agora, em termos de recuperação da área, se nesses anos todos não nos sensibilizamos de que já deveríamos ter iniciado uma ação de recuperação do rio Doce há muito tempo, não sei quanto tempo se levará para fazer esse tipo de recuperação”, diz.
Na entrevista a seguir, o biólogo também comenta que, apesar de ter aumentado a intensificação das fiscalizações na área afetada, “ainda falta recurso de pessoal para dar conta do número de represas de rejeitos que existem em Minas Gerais. Então, embora a fiscalização tenha aumentado, não estamos imunes a um outro desastre como esse que ocorreu em Mariana, e isso nos preocupa bastante”, frisa.
Fabiano de Melo | Foto: UFG
Fabiano de Melo é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Viçosa – UFV, mestre em Genética e Melhoramento pela mesma universidade e doutor em Ecologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Atualmente leciona na Universidade Federal de Goiás – UFG.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Dois anos depois do desastre de Mariana, qual é a atual situação da região?
Fabiano de Melo – Hoje o cenário ainda parece de guerra, porque toda a região dos distritos foi destruída, especialmente as residências. Ao longo desses dois anos, posso dizer que as áreas rurais e os trechos do rio Doce na zona rural foram melhorados. Entretanto, a região mais urbana, especialmente aquela dos distritos que foram mais atingidos, está totalmente devastada e continuará assim porque foi totalmente inviabilizada. O discurso é de que, até o final do ano que vem, novas áreas seriam construídas e entregues aos moradores. Então, em termos sociais, o impacto ainda é muito grande.
Em termos ambientais há uma melhora na condição do rio Doce, especialmente na calha principal do rio, mas um relatório recente da Fundação SOS Mata Atlântica informou que a qualidade da água do rio piorou ao longo dos meses. Então, mesmo depois de dois anos, dos quase 18 pontos do rio analisados, 16 apresentaram qualidade de água péssima, e dois, regulares. Isso significa que a água está bastante imprópria para o consumo em todo esse trecho analisado pela Fundação SOS Mata Atlântica. Diria que a condição geral de recuperação, tanto social quanto ambiental, ainda é muito precária.
O único indicativo mais interessante que posso apontar é a iniciativa acerca dos estudos que estão sendo feitos, ou seja, está havendo uma cobrança dos órgãos ambientais de que novos estudos sejam feitos, e há uma demanda vinda da própria Fundação Renova, que foi consolidada para fazer esses estudos pelas empresas envolvidas. Nesse sentido há uma expectativa muito grande em relação à geração de dados ambientais acerca da biodiversidade nos próximos cinco anos. Nunca tivemos uma oportunidade tão grande de estudar a bacia do rio Doce como temos agora, não só por conta do desastre de Mariana, mas também pela situação degradante que a bacia já sofreu ao longo desses séculos. A partir desses estudos, teremos condições de conhecer melhor a bacia do rio Doce e estimular um cenário futuro mais positivo, para que sejam feitas intervenções corretas e emergenciais na bacia, de modo que isso possa repercutir na melhora da qualidade da vida humana.
IHU On-Line – Na mídia foram publicadas notícias recentes informando que os atingidos estão aguardando sair do papel o projeto da nova cidade que será construída para eles no distrito de Lavoura, a nove quilômetros de Bento Rodrigues. Fala-se também que a Samarco tem um prazo até março de 2019 para concluir o reassentamento das famílias no novo distrito. Que informações o senhor tem acerca de como está se dando esse processo de realocação das famílias?
Fabiano de Melo – As informações que temos são as mesmas que você e todos os brasileiros têm, ou seja, essas que estão sendo publicadas na mídia. Estamos vendo o Ministério Público atuante e cobrando que essa regularização seja feita o mais rápido possível. Boa parte das famílias e funcionários envolvidos no acidente entraram com ações na Justiça e, nesse sentido, há milhares de ações na Justiça na tentativa não só de cobrar indenizações, mas acelerar esse processo de viabilização das áreas construídas para que os moradores possam retomar sua vida normal, porque até o momento as principais famílias atingidas continuam numa situação provisória de morar de aluguel em outras áreas e em outras regiões. Eu particularmente me sinto um pouco desalentado em relação a esse cenário e não acho que ele será alterado até 2020. Prometem algo até o final de 2019, mas não sei se teremos alguma mudança antes de 2020.
IHU On-Line – Alguns biólogos e geólogos que pesquisam a bacia do rio Doce dizem que os impactos gerados pelo desastre do rompimento da barragem de rejeito ainda não são totalmente conhecidos. Concorda? Quais são as dificuldades para identificar todos os impactos gerados? Que tipos de monitoramento estão sendo feitos no rio Doce acerca da qualidade da água, da situação da bacia, da fauna e da flora?
Fabiano de Melo – Concordo. Em 2016 eu publiquei um artigo de opinião apontando exatamente para essa situação de devastação ambiental lenta, dolorosa e que já acontecia há décadas. Em certo sentido nós já víamos esse tipo de desastre acontecendo, mas não nos importávamos tanto, porque a deterioração ambiental é imperceptível aos olhos humanos, e só vamos perceber a degradação total depois de décadas, como é o caso da bacia do rio Doce. Então, esse tipo de impacto já vinha acontecendo, mas era um impacto muito silencioso, e como ele não ocorreu no mesmo tempo em que aconteceu o desastre de Mariana, ele foi sendo esquecido.
Com o impacto de Mariana, é como se a população que depende do rio tivesse acordado e visto que a situação era degradante e se degradou ainda mais rapidamente com a vinda da lama de rejeito da Samarco. Então, a população viu que o rio estava numa situação deplorável, e que se tornou muito pior com a mortandade dos peixes, a impossibilidade de pesca, ou seja, a população compreendeu melhor a real situação de degradação da bacia. O desastre trouxe uma mudança de foco que levou a população a acompanhar esse processo. Por conta do desastre, os estudos emergenciais para se compreender o impacto não só do acidente, mas da condição da bacia hoje, são estudos importantes, porque eles estão vasculhando vários pontos da bacia para prever ações futuras para a recuperação não só da condição da água, mas do leito do rio e dos afluentes importantes do rio Doce.
Estudos de monitoramento
Os estudos hoje estão sendo feitos ao longo de toda a bacia e está se pensando em toda a biodiversidade, não só a aquática, que foi a mais atingida pelo acidente, mas em relação à biota terrestre. Alguns estudos que li e as discussões que já tivemos por aqui mostram que, do ponto de vista da qualidade da água e da recuperação da bacia, os resultados ainda são imprevisíveis, porque não sabemos o que de fato foi impactado e o quanto isso vai demorar para ser revertido. Alguns pesquisadores especialistas em qualidade da água falam em alguns anos ou décadas. Os estudos que estão sendo feitos neste ano e os que serão feitos no próximo – não só por conta das exigências ambientais, mas da demanda da Fundação Renova -, serão fundamentais para entendermos esse cenário e enxergar no futuro quão significativo foram os impactos.
Estudos recentes já mostram que a água com rejeitos chegou até Abrolhos. Existem estudos que foram feitos e ainda não foram publicados e outros que ainda estão sendo feitos. Então, a dimensão do impacto de fato ainda é imprevisível, porque a condição das informações que temos hoje ainda é preliminar para entendermos o que realmente será impactado no futuro, o que temos que fazer de prevenção para melhorar essa condição, e o que tivemos de prejuízo efetivo. É claro que as análises feitas nesses dois anos já mostram que a qualidade e a viscosidade da água, e a qualidade de vida dos moradores que vivem nas proximidades e dependem do rio Doce, pioraram muito. A qualidade da água nesses períodos de chuva também piora bastante, porque ainda se tem muito rejeito ao longo da margem do rio e dos afluentes impactados. Em resumo, é incompreensível a situação e vamos demorar algum tempo para poder avaliar os prejuízos.
IHU On-Line – Além dos estudos feitos pela Fundação Renova, as universidades da região também estão realizando pesquisas sobre os impactos? Ainda nesse sentido, há dados conflitantes nos diferentes estudos feitos sobre a qualidade da água, a situação da bacia do rio Doce, da biodiversidade, ou as pesquisas indicam para mesma conclusão?
Fabiano de Melo – Particularmente nesse momento as maiores informações que temos são sobre a qualidade da água. Sobre os outros impactos à biodiversidade, os dados ainda estão sendo coletados e devem ser coletados nos próximos cinco anos. Então, não temos informações precisas agora. Do pouco que já se tem produzido sobre os recursos hídricos, na foz do rio Doce e nas áreas de oceanos que foram impactadas, não há conflito entre os estudos, ainda que não seja um conjunto de dados impressionante, mas estamos a caminho disso, porque à medida que os anos forem passando, teremos um acúmulo de informações para serem avaliadas e debatidas.
IHU On-Line – Como avalia a atuação dos órgãos ambientais no monitoramento da área e cobrança à Samarco ao longo desses dois anos?
Fabiano de Melo – Com certeza houve muita cobrança ao longo desses dois anos e um nível muito maior de exigências tanto dos órgãos federais quanto dos estaduais envolvidos. A empresa está sofrendo uma devassa nessas questões prévias do licenciamento e tudo isso foi intensificado. Entretanto, essas ações não impediram de vermos casos noticiados de outras represas de rejeitos que poderiam romper e causar estragos ambientais graves. Temos lido sobre isto nos últimos meses: por mais que tenham sido intensificadas as fiscalizações na área afetada, ainda falta fiscalização e recurso de pessoal para dar conta do número de represas de rejeitos que existem em Minas Gerais. Então, embora a fiscalização tenha aumentado, não estamos imunes a um outro desastre como esse que ocorreu em Mariana, e isso nos preocupa bastante.
IHU On-Line – O senhor comentou que o resultado do impacto só será conhecido definitivamente daqui cinco anos. O diagnóstico é o mesmo acerca da recuperação da área atingida pela lama e pelos rejeitos? Há alguma estimativa de quando a área atingida poderá ser recuperada?
Fabiano de Melo – Acredito que nos próximos cinco anos teremos estudos bem intensivos sobre a dinâmica do impacto, não só em relação às questões físicas da água, do solo, da bacia, como também da parte biótica, que afeta a população humana e, particularmente, os pescadores que foram atingidos. Agora, em termos de recuperação da área, se nesses anos todos não nos sensibilizamos de que já deveríamos ter iniciado uma ação de recuperação do rio Doce há muito tempo, não sei quanto tempo se levará para fazer esse tipo de recuperação. Imagina recuperar florestas e matas ciliares com intervenção humana. Esse é um processo muito caro e não é à toa que não conseguimos implementar políticas públicas como essas no tempo em que gostaríamos. Então, a previsão para a recuperação de um trecho de bacia tão longo quanto o do rio Doce, certamente vai levar décadas.
O que podemos fazer agora, emergencialmente, é proteger as nascentes, especialmente no trecho da alta bacia do rio Doce. Com isso, conseguiríamos fazer com que a qualidade da água chegasse em melhor condição para o restante da bacia, e aos poucos poderíamos fazer um trabalho de “formiguinha” para recuperar as condições ao longo da margem do rio. Precisamos recompor a mata nativa em todo a margem do rio Doce. Mas como a margem do rio Doce sofreu um processo de desmatamento ao longo de mais de um século, é preciso recompor o entorno do rio com matas de florestas ao longo dos municípios. Esse é um trabalho hercúleo, que vai demorar décadas e vai depender de muito investimento não só do poder público, mas de toda a sociedade.
IHU On-Line – Está sendo feito algum trabalho mais específico para proteger as nascentes do rio Doce?
Fabiano de Melo – De certo modo, a mata Atlântica, que cerca boa parte da bacia do rio Doce, principalmente na região da alta bacia, onde aconteceu o acidente, é protegida por lei. Então as Áreas de Proteção Permanente – APP e de Reserva Legal – RL, onde tem preservação nativa de mata Atlântica, são proibidas de corte, e isso já gera um número maior de fragmentos florestais e se tem uma condição melhor em termos de água produzida nas nascentes. Mas existem vários projetos no entorno da bacia, entre eles o da Fazenda Quintão, do Sebastião Salgado, que prevê a recuperação de áreas de florestas onde havia pasto. Esse tipo de trabalho está sendo feito e as empresas de papel e celulose próximo ao Vale do Aço têm vários projetos de reflorestamento com florestas plantadas, mas que envolve a manutenção de florestas nativas e isso dá uma condição de maior concentração de vegetação. Esse ainda é um mosaico de projetos sem uma política pública de intervenção única. Esse acontecido em 2015 pode levar a uma política única muito mais efetiva para ser implementada em toda a bacia, e prever uma recomposição florestal adequada.
IHU On-Line – Hoje discute-se a possibilidade de flexibilizar a legislação do processo de licenciamento ambiental para grandes empreendimentos. Como vê esse tipo de proposta? Quais seriam as consequências disso, especialmente na flexibilização do licenciamento ambiental de empreendimentos na área da mineração?
Fabiano de Melo — Esse tipo de mudança surge pensando no curto prazo e nas empresas. A legislação ambiental brasileira é muito boa e rigorosa e isso, teoricamente, impacta no tempo de liberação do licenciamento. Por conta disso, as empresas argumentam que têm prejuízos e, portanto, vão gerar menos empregabilidade. Enfim, trata-se de um discurso de desenvolvimento econômico por si só, do qual, de certo modo, nós todos dependemos.
Mas, no fundo no fundo, o grande problema do licenciamento ambiental brasileiro não está relacionado à legislação, pois a legislação não é o problema; o problema maior é a falta de investimento nos órgãos de fiscalização. Se tivéssemos uma estrutura de fiscalização muito mais organizada do ponto de vista de pessoal e de recursos disponíveis, teríamos uma celeridade maior no processo, mas isso normalmente não acontece, não só no âmbito federal, mas também nos níveis estaduais. Como se sabe, o poder econômico demanda urgência no processo de licenciamento, entretanto, se os esforços fossem concentrados na área de fiscalização e de gestão ambiental dos processos de licenciamento, teríamos a celeridade que as empresas e o próprio Legislativo querem aplicar. Ou seja, esse tipo de situação que estamos vivendo hoje no Brasil e em Minas Gerais é um processo paliativo que tem como objetivo fazer com que o licenciamento ocorra de forma mais rápida, que as empresas implementem seus empreendimentos e possam gerar a renda necessária que os municípios, o estado e a União desejam.
Portanto, o problema está nas políticas de investimento nos órgãos de fiscalização; esse é nosso grande erro. É a mesma história da educação, pois estamos preocupados em construir presídios, mas esquecemos de dar uma educação formal para a população brasileira. O que vai acontecer? Nós teremos que demandar uma situação paliativa para resolver a questão da violência atual no Brasil. É a mesma lógica. Fazendo um licenciamento flexível, estamos resolvendo a questão do desenvolvimento, mas, no fundo, degradaremos tanto as condições ambientais que vamos inviabilizar a qualidade de vida lá na frente. Os políticos não enxergam isso, o Legislativo não enxerga isso, e o Executivo, que está pressionado, quer que isso aconteça porque há uma demanda forte por desenvolvimento econômico. Quem sofre com tudo isso hoje, e vai sofrer muito mais amanhã, é a sociedade brasileira como um todo.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Fabiano de Melo — Gostaria de dizer que essa condição de impacto perverso e doloroso está ocorrendo principalmente para as famílias que perderam entes queridos, e não conseguimos mensurar essa situação. Só quem passou pelo acidente em si tem noção do prejuízo cultural e emocional que foi o próprio acidente.
Deixando isso de lado, no sentido de que está sendo cuidado, acredito que a revolução que a sociedade viveu ao entender que a bacia do rio Doce vinha sofrendo pelo impacto ambiental já foi, por si só, um grande alento que vamos ter para o futuro no sentido de que teremos melhoras e que a sociedade estará muito mais atenta a essas questões ambientais.
Existe hoje um olhar muito mais específico para a região, inclusive de outros órgãos de fiscalização, e essa cobrança sinaliza que teremos melhoras nos próximos anos, melhoras que não teríamos – infelizmente tenho que admitir isso – se não tivesse ocorrido o desastre terrível de Mariana. Esse é o alento que podemos passar para a população de modo geral.
(EcoDebate, 13/11/2017) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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