Os 100 anos da Revolução Bolchevique e a derrota dos anarquistas, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
“O que foi feito, amigo; De tudo que a gente sonhou (…)
Outros outubros virão; Outras manhãs, plenas de sol e de luz”
Milton Nascimento
Imagem: http://www.anarquista.net
[EcoDebate] O mês de outubro de 2017 marca os 50 anos do assassinato de Che Guevara, os 68 anos da Revolução Comunista na China, os 100 anos da Revolução Russa e os 500 anos da Reforma Protestante. Sem dúvida, acontecimentos marcantes para o décimo mês do ano, cheio de referências históricas. História que não tem fim. Como disse Milton Nascimento: “Outros outubros virão; Outras manhãs, plenas de sol e de luz”.
A Revolução Russa foi o evento social que teve o maior impacto (para o bem ou para o mal) na dinâmica histórica mundial no século XX. Na madrugada do dia 25 de outubro de 1917 (07 de novembro no calendário ocidental), os bolcheviques, liderados por Vladimir Lenin, cercaram e ocuparam o Palácio de Inverno, onde estavam sediados o Governo Provisório e o Soviete de Petrogrado. Imediatamente, o governo bolchevique tomou uma série de medidas de impacto, como a saída imediata da guerra (assinatura do Tratado de Brest-Litovski), o confisco das propriedades privadas dos aristocratas e da Igreja Ortodoxa e a instalação da “ditadura do proletariado”, como sugeria a teoria marxista.
Karl Marx achava que a revolução socialista aconteceria nos países capitalistas mais avançados e viria para libertar as forças produtivas dos constrangimentos impostos pela acumulação burguesa. Mas a Revolução Bolchevique aconteceu em um país atrasado economicamente, com uma indústria incipiente e com forte dependência do setor rural. Diante do atraso e da calamidade provocada pela Primeira Guerra Mundial, os líderes da Revolução Russa colocaram como meta a industrialização em marcha forçada do país.
Lenin dizia que “O comunismo é o poder dos sovietes mais a eletrificação”. Além disto, Lenin incentiva a aplicação das ideias tayloristas da disciplina do trabalho e afirmou: “É preciso organizar, na Rússia, o estudo e o ensino do sistema Taylor, sua experiência e sua adaptação sistemática”. O taylorismo na URSS virou stakhanovismo (ou estacanovismo) que foi um movimento que apropriou o exemplo do mineiro Alexei Stakhanov, que, convenientemente, defendia o aumento da produtividade operária com base na própria força de vontade dos trabalhadores.
O resultado da revolução foi a implantação de um “capitalismo de Estado”, de cunho autoritário, produtivista e com base em uma grande expropriação dos trabalhadores em nome do desenvolvimento coletivo do país, para se rivalizar com as potências ocidentais. As liberdades individuais foram sacrificadas em nome dos “direitos” econômicos e sociais. O meio ambiente também foi totalmente sacrificado em nome do antropocentrismo socialista.
Evidentemente, esta revolução estatista e totalitária era essencialmente contrária às ideias anarquistas de fortalecimento da sociedade civil. Os anarquistas defendem a autogestão e a organização de maneira independente e antagônica ao poder do Estado. O anarquismo defende a liberdade em sua integralidade, significando a ruptura total com todas as formas de autoritarismo e respeitando a soberania da consciência e da razão como norteadoras de seus atos, além da organização de baixo para cima da vida social.
Não há espaço neste artigo para analisar as principais consequências da Revolução Russa. Mas, no aniversário de 100 anos, talvez seja importante tocar em um ponto pouco abordado que é o sofrimento dos anarquistas que sonhavam com um mundo de liberdade e foram exterminados.
Por exemplo, o livro de Juan Manuel Ferrario, “As matanças de anarquistas na revolução russa” (2007), trata de dois acontecimentos importantes que se somam no conjunto da tragédia dos anarquistas russos: “de um lado a configuração do movimento makhnovista que se estendeu por toda a Ucrânia entre 1918 e 1921 e cujo nome se deve a seu líder guerrilheiro, Nestor Makhno; de outro lado, estão os ‘acontecimentos de Kronstadt’, cidade russa em que os bolcheviques, já no poder, assassinaram milhares de marinheiros que se sublevavam em greve ao ver os primeiros indícios da configuração da burocracia vermelha, e da distorção dos objetivos principais da Revolução Russa”.
Do ponto de vista da equidade de gênero, cabe relembrar o papel que teve Emma Goldman na Revolução Russa. Ela nasceu em Kovno (atual Kaunas), na Lituânia, então parte do Império Russo e emigrou para os Estados Unidos em 1885. Emma Goldman (1869-1940) foi uma das principais figuras da história do anarquismo e do feminismo na Rússia, nos Estados Unidos e no mundo. Ela foi uma das primeiras defensoras da liberdade de expressão, da organização sindical, regulação da fecundidade e igualdade e independência das mulheres.
Em Nova Iorque ela se tornou uma militante anarquista, escritora e divulgadora de ideias anticapitalistas, em defesa das causas sociais e sindicais, assim como pioneira da luta pela emancipação da mulher. Em 1906, ela fundou o jornal anarquista Mother Earth (Mãe Terra). Ela teve uma atuação destacada na luta contra os interesses imperialistas por trás da Primeira Guerra Mundial. Foi expulsa dos EUA e voltou à Rússia, onde participou da Revolução Bolchevique.
A Revolução Russa abriu uma janela de oportunidade para as mulheres de todo o mundo, viabilizando o divórcio, novas formas de família não-tradicionais e promovendo a “procriação consciente” e o aborto, todas ideias defendidas por Emma Goldman e outras mulheres anarquistas. Mas a primeira experiência mundial de dar mais liberdade e direitos às mulheres falhou, ao não conseguir transformar integralmente as aspirações revolucionárias em realidade. E, mais ainda, como os ideais revolucionários resultaram em repressão política e social do stalinismo.
Emma Goldman ficou desiludida com os retrocessos que eliminaram o sonho de uma sociedade com maior equidade de gênero. Diante do “capitalismo de estado” e do regime totalitário, em franca oposição aos ideais libertários do anarquismo, ela abandonou o país e escreveu o livro “Minha desilusão na Rússia”. Goldman continuou tendo atuação em vários países e, já na terceira idade, viajou até a Espanha para apoiar a Revolução Anarquista durante a Guerra Civil Espanhola. Morreu em Toronto, no Canadá, em 1940.
Como mostra Paul Avrich (2017), a queda de Makhno marcou o início do fim do anarquismo russo. Três meses depois, em fevereiro de 1921, o movimento sofreu outro grande golpe quando Piotr Kropotkin, com quase oitenta anos de idade, morreu de pneumonia. A família de Kropotkin recusou o enterro cerimonial de Estado oferecido por Lenin e um comitê de anarquistas foi designado para organizar o funeral. No funeral de Kropotkin a bandeira negra do anarquismo foi hasteada por Moscou pela última vez. Duas semanas depois, a revolta de Kronstadt explodiu e uma nova onda de prisões políticas varreu o país. Livrarias anarquistas, copiadoras e clubes foram fechados e os poucos círculos anarquistas restantes foram dissolvidos. Mesmo os pacifistas seguidores de Tolstói – dos quais alguns foram fuzilados na Guerra Civil por se recusarem a servir no Exército Vermelho – foram presos e banidos. Em Moscou, um círculo de influentes “anarquistas soviéticos” conhecido como Universalistas foi preso sob falsas acusações de “banditismo e atividades ilegais”.
Ainda segundo Avrich, a repressão continuou inalterada nos meses que se seguiram. Em setembro de 1921, a Cheka executou dois anarquistas famosos sem julgamento ou acusações formais. Emma Goldman ficou tão ultrajada que considerou fazer um escândalo à maneira das sufragistas inglesas. O famoso anarquista Alexander Berkman registrou em seu diário.
“Uma a uma as brasas da esperança se apagaram. Terror e despotismo esmagaram a vida nascida em Outubro. Os slogans da revolução foram perjurados, seus ideais sufocados no sangue do povo. O fôlego de ontem está condenando milhões à morte; a sombra de hoje suspende-se como um lençol negro sobre o país. A ditadura está pisando no povo. A Revolução está morta; seu espírito grita no deserto… Decidi deixar a Rússia”.
Os Bolcheviques venceram a Revolução Russa. Os anarquistas foram derrotados e eliminados política e fisicamente. A experiência soviética se espalhou pelo mundo, inclusive nos primeiros anos da Revolução Chinesa. Mas o “Capitalismo de Estado” da China virou “Socialismo de Mercado” chinês. O Império Soviético não resistiu mais do que 7 décadas. A URSS chegou ao fim em 1991. Mas a luta anarquista pela liberdade, pela auto-organização da sociedade civil e pela paz e harmonia vai continuar eterna.
Referências:
FERRARIO, Juan M. “As matanças de anarquistas na revolução russa”, Imprensa Marginal, 2007
http://www.anarquista.net/wp-content/uploads/2014/09/As-Matan%C3%A7as-de-Anarquistas-na-Revolu%C3%A7%C3%A3o-Russa-Juan-Manuel-Ferrario.pdf
Paul Avrich. Os anarquistas russos e a Guerra Civil, Ideias & Debates, 2017
http://passapalavra.info/2017/04/111506
Emma Goldman. Capítulo XI. Los Aspectos Sociales del Control de Natalidad, Mother Earth, Vol. XI, abril 1916, In: La palabra como arma. – 1a ed. – Buenos Aires : Libros de Anarres; La Plata: Terramar, 2010, pp: 137-144
http://www.radiovillafrancia.cl/wp-content/uploads/2014/06/Goldman-Emma-La-palabra-como-arma.pdf
The Emma Goldman Papers http://www.lib.berkeley.edu/goldman/
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 25/10/2017
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Artigo fascinante, pelo contexto e por divulgar a brutal repressão aos anarquistas.
Hoje, parece-me, não há mais espaço para levantes populares o que não impede a mudança, obviamente, que é avassaladora e vem de outras formas mas que em muito poucos ocorrem via as instituições vigentes.
Como ocorrem, então?
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Parabéns ao articulista! Resumo histórico sobre assunto pouco conhecido e divulgado, onde é ressaltado o caráter brutal do regime comunista russo, bem condizente com tudo o que se conhece até hoje sobre o mesmo.