Economia Socioambiental – Um novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe, artigo de Amyra El Khalili
Economia Socioambiental – Um novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe
Sennet acrescentaria que a reificação das relações gerou a “corrosão do caráter”. Concordo. Ao sonharmos (ainda) com transformações sociais (em sua radicalidade), saímos do campo da angústia e abstrações, e agimos. Somos! Existimos! E certamente isso só é possível, junto a milhares de outros, de forma solidária e ética.
Margarida Barreto
Amyra El Khalili
A Rede de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras (Aliança RECOs) é uma rede de estudos e pesquisas ancorada no tripé informação, educação e comunicação, que reúne interessados em compartilhar conteúdos, indicar e pautar fontes e temas de diversas organizações e movimentos para a mídia nacional e internacional. Nasceu em 1996, com a motivação de alinhar diretrizes de projetos econômico-financeiros e jurídicos com a cultura de resistência para a paz, combatendo a corrupção no mercado financeiro, denunciando seus impactos nas questões sociais e ambientais e cobrando a sua responsabilidade socioambiental.
Há três principais mercados mundiais ilícitos: o de armas, o do narcotráfico e o da biopirataria. Esse dinheiro passa pelo sistema financeiro – o verdadeiro responsável pelo financiamento do mercado de armas e de todo o aparato gerador de guerras e misérias. Se os bancos e as corretoras estivessem dispostos a combater crimes e corrupção, o primeiro aliado para alcançar a paz seria o próprio sistema financeiro, que deveria financiar projetos alternativos, que, na verdade, exigem muito menos recursos e não alimentam a fraude e a especulação.
Atuamos na construção de um novo modelo econômico e de empoderamento dos movimentos sociais e ambientais, com a experiência profissional adquirida por anos no mercado de capitais, já que conhecemos a engrenagem deste sistema “por dentro”.
Defendemos projetos socioambientais que, focados na preservação e conservação ambiental, contribuem para a segurança pública, combatem as drogas, a violência contra a mulher, a criminalidade, a discriminação étnica, racial e religiosa, promovem a igualdade de gênero, concorrem para a geração de emprego, ocupação e renda.
No entanto, antes de idealizar um projeto socioambiental, é necessário que a sociedade seja devidamente informada, em linguagem de fácil compreensão, sobre questões técnico-científicas. As comunidades, em geral, não sabem lidar com recursos ou sua captação. Há ONGs e instituições que conseguem fazer bons trabalhos justamente por não terem dinheiro. O que move seus associados e membros é a causa. Em muitos casos, o recurso, quando entra, mais atrapalha do que ajuda.
Nossa proposta é questionar esse modelo econômico para que os atores sociais se informem melhor sobre as alternativas e riscos ao tomar suas decisões. Afinal, em casos como os dos projetos oriundos do mercado de carbono, recusar dinheiro é um direito, quando não um dever.
A razão consiste na informação de que falamos. Aceitar simplesmente os recursos de um projeto, ignorando que compromete o uso da terra, é conivência; além disso, é prejudicial a ajuda que pode por em risco uma comunidade com possível endividamento. A questão é bem maior do que simplesmente conseguir recursos para melhorar a qualidade de vida das comunidades. Há que se ter em vista cuidados como os de evitar conflitos, confrontos e violências, assim como abusos contra os direitos humanos e agressões ambientais, além da necessidade de também se fiscalizar e monitorar a origem e a aplicação dessas verbas, sejam elas públicas ou privadas.
Vários casos poderiam ser citados. Por exemplo: com a divulgação do Dossiê Acre, demos visibilidade às denúncias feitas com projetos do mercado de carbono e pagamentos por serviços ambientais no Acre. Elaborado em 2012, o estudo não tinha ainda conseguido o merecido espaço na mídia e nos mais diversos fóruns de debate, como também se ignorava seu ponto de vista técnico, operacional, jurídico, socioeconômico, além de essas políticas de cima para baixo interferirem no modo de vida das comunidades indígenas, tradicionais e campesinas da região amazônica.
Agimos em duas frentes: primeiro, ao orientar a respeito da produção de um projeto econômico, financeiro e jurídico com a mudança de paradigma; segundo, ao divulgar e publicar relatórios produzidos por formadores de opinião e lideranças que participaram de cursos e oficinas que aplicamos em parceria com universidades, centros de pesquisas e grupos locais, afora os de outras frentes das quais eu pessoalmente tenha participado como palestrante convidada.
Estes relatórios indicam o mapa da região, o perfil da população, as características do bioma, identificam as potencialidades alternativas da biodiversidade, entre outras informações relevantes. Dessa forma, podem apresentar os tipos de problemas a eles conectados, como o de água contaminada e o do enfrentamento de violência, de drogas, de degradação ambiental e exclusão social, e propor soluções. É dessa forma que se idealizam projetos socioambientais e se buscam maneiras de viabilizá-los.
Temos, atualmente, mais de cinco mil distribuidores, multiplicadores e parceiros na produção e disseminação de informação. São essas parcerias e “nós de comunicação” que formam a “aliança”, que ora completa 20 anos de trabalho voluntário, sem recursos de empresas e de governos. Não somos a mídia. Representamos para a imprensa um contraponto. Apoiamos a mídia alternativa para que também consiga seus financiamentos, posto que nos presta um serviço de utilidade pública da maior relevância.
Economia verde versus economia socioambiental
Participamos de várias frentes que se opõem ao modelo econômico-financeiro chamado “economia verde”. Somos contrários aos projetos de “economia verde” que vêm de cima para baixo e de fora para dentro, como a implementação de uma agenda de venda rápida, com objetivos como legislar, dar números e estatísticas.
Apesar de muitas organizações e comunidades serem contra todos os mecanismos e instrumentos jurídicos e financeiros da “economia verde”, ainda há um longo caminho para que suas vozes sejam ouvidas. A transversalidade da questão ambiental ainda é muito recente para ser assimilada pelo interesse público e, sobretudo, para contar com a consciência da sociedade como um todo. Como legislar sobre tema tão complexo e recente como finanças ambientais? Como falar de suas interfaces, multidisciplinares, e traduzir didaticamente essa linguagem para a população?
Ainda há muita confusão conceitual, o que representa um perigo para os desenhos dos contratos financeiros e mercantis. A linguagem de finanças ainda é restrita aos que a entendem e atuam no ramo. É árida e complexa, cheia de meandros e armadilhas. Estamos vivenciando um retrocesso nos instrumentos de financiamento (que fomentam) e um avanço nos instrumentos que financeirizam (que endividam). Antes de se estabelecerem leis para efeito de financiamento ambiental, a população precisa, primeiramente, compreender o que significa “educação financeira”.
Entendemos que a nova economia é viável por meio de projetos pequenos e pontuais. Porém, o interesse de um restrito grupo de consultores, corporações e governantes é por projetos grandes, que envolvem elevados recursos. Portanto, é necessário quebrar a acumulação e distribuir melhor a renda, evitando projetos com infraestruturas inalcançáveis e acordos duvidosos que deem espaço à corrupção e ao desvio de dinheiro de suas finalidades reais.
Como alternativa, construímos coletivamente a economia socioambiental.
Diferentemente da economia verde, a socioambiental passa por um processo de consulta à base popular, de ampla consulta pública e suficientemente lenta para ser entendida.
O processo que adotamos é de baixo para cima e de dentro para fora; é, sobretudo, desvinculado da agenda de eleições. Todo trabalho de consulta e construção coletiva demora anos, dadas as dificuldades de chegar onde poucos conseguem, em regiões afastadas e sem acesso à comunicação, locais caracterizados por uma população que necessita de assistência e orientação sobre impactos socioambientais
Este modelo econômico não pode depender de agenda governamental. Por sua natureza, muitas vezes contraria fortes interesses políticos e econômico-financeiros. Ele deve seguir seu caminho natural com a adesão dos atores sociais, sem ser forçado goela abaixo por normas e regras instituídas sem a participação e anuência da sociedade, mas com respeito aos direitos constitucionais duramente conquistados.
Há 20 anos trabalhamos nesse projeto, de envergadura geopolítica, pela cultura de paz, pela autodeterminação e emancipação dos povos com a cultura de resistência, cujo resultado se dará em longo prazo. Não buscamos resultados imediatos, mas duradouros e verdadeiramente sustentáveis, formando “alianças” inquebrantáveis.
Nota:
Os relatórios produzidos pela Aliança RECOs resultantes dos cursos de Economia Socioambiental são publicados pela Revista Fórum de Direito Urbano e Ambiental (FDUA). A FDUA é o primeiro periódico brasileiro especializado em Direito Urbano e Ambiental. Os assinantes da FDUA são tribunais de justiça, ministérios públicos, AGU, STF, câmaras de deputados, operadores do direito, entre outros.
Referências
Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Dossiê Acre: documento especial para a cúpula dos povos – o Acre que os mercadores da natureza escondem. CIMI, Regional Acre, 2012. Disponível em: <http://www.cimi.org.br/pub/Rio20/Dossie-ACRE.pdf>. Acesso em: 29 nov. 2016.
EL KHALILI, Amyra. O que se entende por “financeirização da natureza”? Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 15, n. 87, p. -, maio/jun. 2016.
SARMIENTO, Susana. Para a economista, primeiro a população brasileira precisa entender de educação financeira para depois discutir finanças ambientais. Entrevista concedida a Amyra El Khalili. 27 fev. 2015. São Paulo: Portal Setor 3/Senac. Disponível em: <http://www.setor3.com.br/jsp/default.jsp?tab=00002&newsID=a7051.htm&subTab=00000&uf=&local=&testeira=99&l=&template=58.dwt&unit=§id=185>. Acesso em: 29 nov. 2016.
KHALILI, Amyra El. Aliança RECOs – 20 anos construindo um novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 15, n. 90, p. -, nov./dez. 2016.
Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 23/08/2017
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