‘Qualquer lugar é melhor que a Venezuela’, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
[EcoDebate] Uma cidadã e migrante venezuelana que se refugiou em Boa Vista, Roraima, agora em 2017, chamada Yosleidis, disse a frase que dá título a esse artigo: “Qualquer lugar é melhor do que a Venezuela”.
Yosleidis não deixa de ter razão, pois seus sentimentos são reforçados pelos dados do FMI. O gráfico acima mostra o que aconteceu com a renda per capita, em poder de paridade de compra (ppp), da Venezuela. Nota-se que, em relação a outros países latino-americanos que eram bem mais pobres, a Venezuela deixou o primeiro lugar nos anos 1980 e 1990 para o último lugar a partir de 2016.
A renda per capita da Venezuela que era mais de duas vezes maior do que a do Chile em 1980 caminha para ser apenas metade da renda per capita do Chile em 2022. Em 2016 a renda per capita da Venezuela já era menor do que a da Colômbia, país que viveu décadas de guerra civil.
O incrível é que a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo e mesmo antes da queda dos preços no mercado internacional houve queda na extração. O gráfico abaixo mostra que a produção de petróleo na Venezuela caiu entre 2005 e 2009 e se manteve em nível baixo entre 2010 e 2014 quando o preço do barril estava elevado e incentivava a maior produção. E o que estava ruim, piorou muito após 2015, quando a produção caiu de 2,3 milhões de barris para menos de 2 milhões de barris diários (menos que o Brasil).
Além do mais, a Venezuela trocou a dependência dos EUA pela dependência da China, mas manteve o modelo extrativista de exploração dos combustíveis fósseis, altamente emissores de gases de efeito estufa.
O quadro econômico da Venezuela já não era bom na época de Hugo Chávez, mas foi se deteriorando rapidamente depois da morte do fundador da República Bolivariana, que morreu de câncer em 5 de março de 2013. O herdeiro de Chávez, Nicolás Maduro, venceu as eleições seguintes por uma pequena margem do oponente Henrique Capriles.
A queda da produção e do preço do petróleo agravou a situação fiscal e as contas externas do país. Junto à queda das exportações houve uma queda das importações que gerou escassez de produtos em geral, mas especialmente de produtos de primeira necessidade, pois a Venezuela é grande importadora de alimentos.
Com a deterioração econômica, a oposição liderada por Leopoldo López tomou as ruas para exigir a renúncia de Maduro, em protestos que deixaram 43 mortos em 2014. Com isto, López foi condenado a 14 anos de prisão.
Em 2015, a “Revolução” Bolivariana perdeu “de lavada” as eleições parlamentares. Abriu-se uma crise institucional, com o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e outros poderes públicos a serviço do chavismo enfrentam o Parlamento com maioria da oposição.
Em 2016, a oposição tentou convocar um referendo revogatório para tirar Maduro do poder, porém o Conselho Nacional Eleitoral inviabilizou o processo com a desculpa que houve fraude no recolhimento de assinaturas e adiou para 2017 as eleições de governadores previstas para 2016. Com a falta de eleições a oposição convocou protestos em massa. O Vaticano tentou, sem sucesso, intermediar a crise e, em dezembro, as negociações foram suspensas.
Em 2017, o Tribunal Supremo de Justiça assumiu as funções do Parlamento e suspendeu a imunidade dos deputados, o que foi considerou um golpe de Estado. Enquanto isto a Controladoria cassou os direitos políticos de Henrique Capriles. Desta forma, o povo foi para as ruas pedindo “eleições diretas já”. Entre abril e julho de 2017 houve manifestações todos os dias e cerca de 90 pessoas morreram nos confrontos políticos.
O clima institucional piorou quando o presidente Maduro decidiu convocar uma Assembleia Nacional Constituinte de forma autoritária e sem legitimidade do voto universal, excluindo o Parlamento. Tal medida teve a oposição não só do povo venezuelano, mas também dos demais países da região e dos organismos multilaterais. Até a procuradora-geral da Venezuela, a governista e chavista Luísa Ortega Díaz, rejeitou a manobra de Nicolás Maduro.
Entre as formas de manifestação popular, num país com falta sistemática de papel higiênico, chamou a atenção do mundo a “Marcha de la Mierda”, quando os manifestantes utilizaram excrementos como arma contra as forças de segurança do regime. As bombas de fezes têm sido lançadas contra policiais e nas redes sociais, os críticos do presidente Nicolás Maduro chamaram a arma de “coquetéis puputov”.
Enfim, como disse a refugiada Yosleidis, num desesperado desabafo: “Qualquer lugar é melhor do que a Venezuela”. De fato, a chamada Revolução Bolivariana entrou em uma fase de agonia e, no global, a situação da Venezuela atual é pior daquela situação anterior à Hugo Chávez.
Estatísticas divulgadas pelo próprio governo da Venezuela revelam um aumento de 30% nos índices de mortalidade infantil no país e o Ministério da Saúde anunciou também que os índices de morte de mulheres durante o parto cresceram assustadoramente: 65%. Houve ainda um salto nos casos de doenças como malária e difteria. Além do mais, a Venezuela é conhecida como um dos países com maiores taxas de homicídio e violência. O país está regredindo na transição epidemiológica.
Neste sentido, cresce a necessidade de reavaliação do regime bolivariano. O jornalista Clóvis Rossi tem chamado a atenção para a “cegueira da esquerda, que silencia sobre o deslizamento da Venezuela para a ditadura e sobre o seu monumental fracasso administrativo”. Ele cobra uma autocritica dos partidos de esquerda no Brasil e realça a novidade ocorrida quando um grupo de cerca de 250 intelectuais e ativistas políticos definidos como de esquerda e/ou progressistas divulgou um manifesto em que critica com dureza o governo de Nicolás Maduro.
O texto do manifesto diz: “Não acreditamos, como certos setores da esquerda latino-americana, que devemos defender acriticamente o que é apresentado como um ‘governo anti-imperialista e popular’. O apoio incondicional oferecido por certos ativistas e intelectuais não apenas revela cegueira ideológica, mas é prejudicial pois, lamentavelmente, contribui para a consolidação de um regime autoritário”.
Os últimos acontecimentos não dão esperança de uma saída pacífica para a crise. Bispos da Venezuela foram conversar com o Papa Francisco sobre a dramaticidade das condições de vida da maioria do povo venezuelano sob o tacão de Maduro. O governo da China que tem bilhões investidos no país já abriu um canal de diálogo com a oposição. As fraturas no campo chavista aumentam a cada dia.
No dia 27 de junho houve um sobrevoo de um helicóptero sobre a Suprema Corte venezuelana, em Caracas. O ataque foi assumido por um grupo de policiais, tendo Óscar Pérez como seu líder. O policial disse que se trata “de uma coalizão de funcionários militares, policiais e civis contra este Governo transitório e criminoso”. No helicóptero, foi aberta a faixa “350 Liberdade”, referindo-se ao artigo da Constituição Venezuelana que permite aos cidadãos se insurgirem contra o regime.
Artigo de Ernesto Tenembaum no jornal El Pais (05/07/2017) questiona o “incompreensível silêncio dos líderes da esquerda latino-americana diante dos crimes de Nicolás Maduro”, pois houve uma mudança substancial que gera tristeza e preocupação em quem defende a democracia e os direitos humanos. Tenembaum se revolta diante da crise venezuelana e diz: “Maduro, no final das contas, é fiel a si mesmo, não dissimula. O que não conquistaremos com os votos, conseguiremos com as balas”, disse. O que mais falta para entender alguém que, na realidade, é tão claro?”.
No mesmo dia 05 de julho, um grupo de simpatizantes do presidente Nicolás Maduro e de integrantes de milícias chavistas conhecidas como “colectivos” invadiu a sede da Assembleia Nacional, em Caracas.
Os conflitos de rua têm aumentado com a aproximação do dia 30 de julho, data das eleições para a Assembleia Constituinte e tentativa de Maduro para relegar de vez a atual assembleia eleita pelo povo e de maioria opositora. A crise se acirra, pois, Nicolás Maduro alterou as regras eleitorais para conseguir a maioria na nova entidade, mesmo com uma minoria de votos.
Segundo editorial do jornal El Pais (05/07/2017): “Trata-se de mais uma violação da legalidade por um regime que está concentrando nas pseudo-eleições constituintes do próximo dia 30 seus esforços para construir um Estado paralelo no qual não terá nenhum impedimento para exercer seu poder autoritário. Por mais que Maduro insista que a Venezuela está vivendo uma epopeia, o que está realmente acontecendo é uma atroz tentativa de liquidar a democracia em um dos principais países do continente americano”.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, o economista Rolando Astarita – autor de diversos livros sobre economia e contestação ao capitalismo – faz uma contundente crítica de todo o processo chavista, para além do atual presidente Nicolás Maduro, que pilota um regime bonapartista e muito repressivo:
“A crise políica está determinada, fundamentalmente, pela crise econômica. Essa é de uma profundidade poucas vezes vista em países capitalistas. Só em 2016, a economia caiu 12% (segundo o FMI) e em 2017 cairia mais 6%. A pobreza abarca mais de 70% da população. Segundo o Centro de Documentação e Análise Social da Federação de Professores são necessários ao menos 17 salários mínimos para comprar a cesta básica. As pessoas mais pobres sobrevivem com farinha, arroz, hortaliças e tubérculos; muitos vivem com as sobras que recolhem dos restos de lixo; muita gente perdeu peso. Essa é a base do amplo descontentamento social e rejeição ao governo. Tudo indica que caso se fizessem eleições, Maduro perderia pelas mãos da MUD – Mesa de Unidade Democrática. Diante de tal perspectiva, há um endurecimento repressivo do governo, que busca se sustentar a qualquer custo. Nisso, possivelmente convergem os setores mais vinculados à corrupção, fraude, crimes, que temem que uma queda do regime tenha consequência direta sobre eles; e também os convencidos ideologicamente do socialismo do século 21, que tratam de salvar esse projeto a qualquer custo. Daí que o regime tenha se encerrado cada vez mais em si mesmo, mesmo à custa de muitos chavistas que abandonaram o barco. O ataque à Assembleia Nacional, a militarização, a anulação do referendo revocatório, a postergação das eleições, são parte dessa dinâmica de ‘fuga para a frente’”.
Neste domingo (16/07), realizou-se Consulta Popular destinada a aceitar ou rechaçar a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte pelo governo de Nicolás Maduro. A rejeição já estava anunciada, pois a pesquisa da Datanalisis mostrava que 85% dos consultados consideram desnecessário reescrever a Constituição (elaborada, no governo Hugo Chávez). O governo Maduro preparou uma armadilha e convocou para o mesmo dia um “treinamento” para a eleição da Constituinte que o Executivo planeja para o fim do mês. A Igreja Católica também rejeita a Constituinte e o Papa Francisco mandou uma mensagem de paz.
Convocada pela Assembleia Nacional e organizada pela Mesa da Unidade Democrática (MUD), a consulta popular realizará três perguntas: a) Rejeita e desconhece a realização de uma Constituinte proposta sem a aprovação prévia do povo da Venezuela? b) Exige que a Força Armada Nacional Bolivariana obedeça e defenda a Constituição de 1999 e respalde as decisões da Assembleia Nacional? c) Aprova a renovação dos poderes públicos, assim como a realização de eleições livres e a formação de um Governo de união nacional? A MUD promove o “sim” nas três questões. Na manhã de domingo a presença era massiva, como mostram as fotos do jornal El Universal.
Considerada ilegal pelo governo Maduro, a Consulta Popular, pode ser entendida como o “maior ato de desobediência civil” depois de tantos protestos violentos. As notícias no início da noite de domingo davam o comparecimento elevado e pelo menos uma morte e três pessoas feridas. Houve confronto por parte dos grupos armados (Coletivos) que apoiam o regime. A oposição afirma que, após a Consulta Popular, vai-se ativar a “hora zero”, ou seja, a fase decisiva para tirar Maduro do poder e já preparam a convocação de uma greve geral.
A Venezuela está à beira de uma Guerra Civil aberta, profunda e imprevisível. A frase da refugiada Yosleidis – “Qualquer lugar é melhor do que a Venezuela” – fica a cada dia mais real. Mas também existe uma busca desesperada para transformar a triste situação da Venezuela e para achar uma alternativa para superar os desmandos e buscar um futuro melhor.
Referência:
Gabriel Brito. No momento, não há saídas progressistas para a Venezuela: entrevista com Rolando Astarita, Correio da Cidadania, RJ, 10/07/2017
http://www.correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/12686-no-momento-nao-ha-saidas-progressistas-para-a-venezuela
Ernesto Tenembaum. O silêncio da esquerda latina sobre a Venezuela, El Pais, 05/07/2017
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/05/opinion/1499289726_062254.html
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 17/07/2017
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