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Lei de pagamentos por serviços ambientais do Acre beneficia mercado financeiro, por Amyra El Khalili e Arthur Soffiati

 

 

[EcoDebate] A Lei nº 2.308, de 22 de outubro de 2010, do Estado do Acre, que cria o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA), o Programa de Incentivos por Serviços Ambientais (ISA), Carbono e demais Programas de Serviços Ambientais e Produtos Ecossistêmicos parece já manifestação da economia verde, antes que este conceito fosse badalado na Rio+20. Se o trabalho dos polinizadores pode ser valorado e precificado, quem receberá o dinheiro por eles, já que a natureza trabalha sem ter noção do que é trabalho e do que é remuneração? Alguém pode receber por eles. Quem será? Isto facilita muito a entrada de grandes empresários e grupos para receber por aquilo que a natureza faz de graça, queiramos ou não queiramos. O urubu trabalha diariamente durante o dia, seja sábado, domingo ou feriado. Ele age assim porque é da sua natureza, não porque precisa de dinheiro. Contudo, alguém pode querer receber por este serviço gratuito, valorando-o e precificando-o.

A formação de preços (precificação) nos mercados de capitais, especificamente nos mercados bursáteis (bolsas de valores e de mercadorias), é determinado por três fatores: a análise fundamentalista, que é o estudo da conjuntura econômica; a análise matemática, que compreende os cálculos de taxas de juros, prazos e custos; e a análise gráfica, que registra as oscilações de oferta e demanda do objeto (ativo ou commodity). Portanto, a complexidade para a formação de preços exige profundo conhecimento do objeto.

Na escola neoliberal, para encurtar o caminho para a precificação, criaram-se os “índices” produzidos por universidades de grife e institutos de pesquisa, pagando régias mesadas a essas instituições para, com estes indicadores, viabilizar as decisões dos players (comprar e vender) e, assim, girar cada vez mais e mais rapidamente contratos nos mercados de futuros.

A indústria de futuros, chamada de derivativos (derivado de ativos), tornou-se muito lucrativa no curto prazo, principalmente para corretoras e bancos, uma vez que os agentes intermediários ganham no volume negociado a despeito do resultado, ou seja, ganham corretagem quando o cliente está ganhando e também quando o cliente está perdendo.

Com o tempo, já não interessava mais ganhar “corretagem” sobre operações de compra e venda para cada contrato negociado. O apetite pela especulação e a ganância sobre as vantagens de comprar e vender rápido, muitas vezes em segundos, criou oportunidades para que os agentes intermediários (brokers e traders) ganhassem também no jogo financeiro. Entenda-se: jogando com o trabalho produtivo e o dinheiro dos outros. Jamais com seu próprio dinheiro.

A indústria financeira especulou com o aumento desproporcional (virtual) da produção de bens e serviços e avançou com a desregulamentação, dando chances para se realizar lucros ou prejuízos sem que o próprio sistema de garantias pudesse suportar as liquidações com a concentração de poder nas mãos de apenas meia dúzia de bancos também avalistas de garantias para os negócios que os mesmos bancos ofertavam para seus clientes.

Em dezembro de 2007, o Banco de Compensação Internacional (conhecido pela sigla BIS, em inglês) estimou em US$681 trilhões os negócios com derivativos – dez vezes mais o PIB de todos os países do mundo combinados. É a raposa tomando conta do galinheiro.

Se os autores da Lei SISA do Acre conhecem o funcionamento do mercado financeiro, não sabemos. O que sabemos é que o aparato conceitual utilizado por eles é antigo e pode nos levar a conclusões equivocadas. E exatamente eles, que sugerem ocupar postura pioneira. Usar o conceito de preservação de modo generalizado faz tábula rasa da natureza não humana. Parece irrelevante nossa observação. No entanto, se os autores recorrerem ao artigo “Duas filosofias de proteção à natureza”, de Catherine Larrière, incluído no livro Filosofia e natureza: debates, embates e conexões, organizado por Antônio Carlos dos Santos (Aracaju: Ed. Universidade Federal de Sergipe, 2008), verificarão que os conceitos de conservação e de preservação são antigos e de fundamental importância para compreender as relações entre sociedades humanas (antropossociedades) e natureza não humana.

Preservação significa manter íntegra a natureza não humana. Conservação indica o uso da natureza não humana respeitando seus limites. Em que sentido eles usam o conceito de preservação? Pelo visto, empregam-no como sinônimo de proteção, conceito que envolve preservação e conservação. Sugerimos sempre a nossos alunos e colegas: na dúvida, usar o conceito de proteção.

Entre os defensores da natureza não humana mais simplórios e dos críticos do movimento ecologista e ambientalista, os conceitos de conservação e de preservação são entendidos como opostos e excludentes. Trata-se de uma falsa questão, pois preservação e conservação se complementam. Não se pode ser preservacionista numa cidade, tampouco conservacionista numa reserva biológica.

Eles também atribuem à Cúpula dos Povos, movimento paralelo à Rio+20, o uso inadequado da artilharia ideológica, chamando a atenção para a sua ideologia desinformada. Aqui, eles entram num terreno minado e muito perigoso, pois, por uma vertente de pensamento (Mannheim e Althusser, por exemplo), todo ser humano pensa de forma ideológica, enquanto que o marxismo clássico entende como ideologia o pensamento conservador. Daí dizer-se que a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. A qual dos dois sentidos de ideologia se referem? Do jeito que a expressão é usada, parece que eles estão fora das ideologias, enquanto que a Cúpula dos Povos é prisioneira de uma.

Os autores da Lei sustentam que o SISA busca a “compatibilização do desenvolvimento econômico e social com as melhores práticas de preservação ambiental”. Já examinamos o conceito de preservação.  Compatibilização é uma postura que, segundo os ecologistas de boa estirpe, tenta conciliar desenvolvimento predatório, ou seja, crescimento econômico convencional com a proteção do ambiente. Historicamente, desde a década de 1970, os pensadores mais lúcidos sabem que tal conciliação é possível provisoriamente. Quando a corda a unir proteção do ambiente e desenvolvimento se rompe, o beneficiado é sempre o desenvolvimento. Mas existem concepções distintas de desenvolvimento. A qual delas seus autores se referem? A resposta a esta pergunta vem logo em todo o texto da Lei: desenvolvimento sustentável.

O conceito de desenvolvimento sustentável se afirmou nos anos 1980, principalmente com o livro Nosso futuro comum, oriundo da Comissão Brundtland. Progressivamente, ele substituiu o conceito de ecodesenvolvimento, bem mais claro, e tornou-se  central na Conferência Rio 92. Com o tempo, seu uso foi tão generalizado que perdeu o sentido. Hoje, fala-se de juros sustentáveis, lucro sustentável, renda sustentável, crescimento sustentável, práticas sustentáveis e até corpo sustentável sem o mínimo rigor conceitual. E seus autores rebatendo opiniões críticas à Lei SISA fazem o mesmo. As consequências de tal uso é o emprego de crescimento de renda e de PIB. Ora, a produção de armas de guerra e os serviços ligados a ela geram renda e contribuem para o aumento do PIB. Onde o pioneirismo destes autores em uso tão acrítico?

Falar em meio ambiente é redundância. Meio significa ambiente e ambiente significa meio. Ou falamos em meio ou em ambiente. Da mesma forma, discutir créditos de carbono é voltar ao passado ou não sair dele. O mercado de carbono não ataca a crise ambiental antrópica de frente, mas procura transformá-la em fonte de lucros. Mas o passado está também embutido no presente, assim como no futuro. Basta examinar o conceito de economia verde, tão propalado antes, durante de depois da Rio+20. Qual o seu conteúdo? Não se sabe ao certo. Só se sabe que ele já está sendo usado para que negociantes ganhem dinheiro com a natureza. Basta ver o livro A economia verde: descubra as oportunidades e os desafios de uma nova era dos negócios, de Joel Makower (São Paulo: Gente, 2009). O conceito de economia verde abre caminho para a valoração do ar e da fotossíntese, por exemplo. Produtor e produto, prestador e serviço são colocados no mesmo saco.

Parece que caminhamos para uma nova escravidão, esta bem mais sutil. No sistema escravista, o escravo e os bens e serviços por ele gerados podiam ser valorados. Um escravo, mesmo de braços cruzados, tinha preço. Podia ser comprado e vendido, independentemente dos bens e serviços que produzisse. A nova escravidão se assemelha mais com o que o filósofo francês Étienne de La Boétie chamava de servidão voluntária. As plantas realizam a fotossíntese voluntariamente para existirem, não porque as obrigamos. Mas alguém pode se arvorar em cobrar por ela ou ganhar alguma concessão governamental para explorá-la. Paremos por aqui, pois a lista de explorações indevidas é longa.

Portanto a Lei SISA abre um precedente perigoso para a raposa tomar conta, recebendo muita grana para cuidar do galinheiro, pois permite a captação dos recursos e a administração pelo sistema financeiro através do mercado de carbono. Está na mídia sendo apregoada como modelo de lei para o mundo. Enquanto o mercado de carbono vinagra na Europa contaminada pela crise financeira de 2008, aqui, nestas paragens, prega-se o mercado de carbono como a salvação da lavoura.

Causa estranheza que os idealizadores Lei de Pagamento por Serviços Ambientais do Acre desconheçam os impactos da precificação de produtos agropecuários nos mercados de commodities internacionais, como o caso do cacau, açúcar, café, soja, milho e boi, entre outros. Fica a impressão de que não foram estudadas as regras básicas de precificação, constituídas das análises fundamentalistas (conjuntura econômica), matemática (juros, prazos e custos) e da análise gráfica (oferta e demanda).

Não se faz mercado artificialmente com leis e marketing ambiental. As experiências que tivemos nos mercados de commodities e derivativos nos ensinaram que a participação do Estado diretamente na regulação para fomentar a comercialização criou distorções e estimulou a especulação.

Quando o Banco Central regulava o câmbio no mercado de ouro, havia liquidez porque a autoridade monetária alimentava o mercado comprando e vendendo ouro. Quando o Banco Central saiu do ouro, o mercado de ouro evaporou. Não existia o mercado de câmbio futuro porque simplesmente não havia vendedores futuros de câmbio. Quando o banco estabeleceu o controle da moeda pela banda cambial, o mercado futuro de câmbio na antiga BM&F emergiu do zero e hoje é o mercado que sustenta, juntamente com o de taxa de juros, o impressionante movimento financeiro da BovespaBM&F.

Que o Estado faça seu papel de agente regulador e fiscalizador do sistema financeiro, que seja agente de fomento, mas que não se meta a fazer “mercado”. Se o Estado não consegue sequer fiscalizar a degradação e a devastação ambiental, como pode o mesmo Estado virar agente financeiro ou, na melhor das intenções, repassar para terceiros (a raposa) essa função?

Perguntem à BovespaBM&F: por que os mercados de commodities agropecuárias não avançam? Ou: por que os produtores rurais deste continente não operam na Bolsa de Futuros para se protegerem contra oscilações bruscas de preços das commodities agropecuárias? Perguntem aos players: por que o preço de soja nacional é definido pela Bolsa de Chicago e não por um preço formado com custo Brasil?

Façam mais perguntas antes de fazer leis para dar “valor” e/ou “valorar” os bens ambientais. Perguntem aos árabes e africanos: por que a água (bem escasso no Oriente Médio e África) nunca foi cotada em Bolsas de Valores? Ou: por que os árabes e nordestinos não inventaram, ainda, o mercado futuro de água?

Também perguntem aos membros da Aliança RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras), que constroem um novo modelo econômico para América Latina e o Caribe, cujos relatórios e consultas públicas são assinados por mais de 5000 profissionais multidisciplinares e centenas de comunidades e instituições ao longo de duas décadas: por que não propusemos (ou melhor, pensamos) nessa Lei SISA antes?

Talvez porque não sejamos tão inteligentes quanto os idealizadores da Lei SISA a ponto de mobilizar o urubu.

O urubu mobilizado

de João Cabral de Melo Neto:

Durante as secas do sertão, o urubu

de urubu livre, passa a funcionário.

Ele nunca retira, pois prevendo cedo

que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,

cala os serviços prestados e diplomas,

que o enquadrariam num melhor salário,

e vai acolitar os empreiteiros da seca,

veterano, mas ainda com zelos de novato:

aviando com eutanásia o morto incerto,

ele, que no civil que o morto claro.

Embora mobilizado, nesse urubu em ação

reponta logo o perfeito profissional.

No ar compenetrado, curvo e secretário,

no todo de guarda-chuva, na unção clerical,

Com que age, embora em posto subalterno:

ele, um convicto profissional liberal.

Referências:

EL KHALILI, Amyra; SOFFIATI, Arthur. Lei de pagamentos por serviços ambientais do Acre beneficia mercado financeiro. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 12, n. 68, p.912, mar./abr. 2013.

EL KHALILI, Amyra. As commodities ambientais e a métrica do carbono. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 16, n. 93, p.2631, maio./jun. 2017.

 

Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras.

Arthur Soffiati é Doutor em História Social com concentração em História Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor aposentado da Universidade Federal Fluminense, integra o Núcleo de Estudos Socioambientais da mesma universidade. Publicou dez livros, além de vários capítulos de livros, de artigos em revistas especializadas e de artigos jornalísticos semanais.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 23/06/2017

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