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Governança Ambiental e Equidade na Era da Pós-Verdade, artigo de George Martine

 

Governança Ambiental e Equidade na Era da Pós-Verdade, artigo de George Martine

Mitos e Governança | Convivemos em plena era da pós-verdade e do relativismo ético. Fatos objetivos pesam menos na formação da opinião pública do que emoções e crenças pessoais. Políticos não conseguem diferenciar bem público e privado. Populistas manipulam as massas com soluções simplistas; o mais poderoso deles nem consegue distinguir fabricação de realidade. Empresários pregam a ideologia do mercado, mas barganham as tetas do Estado. A mídia de massa defende interesses particulares, enquanto a mídia social constrói e destrói mitos em twitters de 140 caracteres. No conjunto da obra, a era pós-verdade erige edifícios sociais frágeis e erode a base de confiança essencial à manutenção de uma sociedade viável. O que isso tem a ver com a governança sobre a problemática ambiental?

Muito simples: mitos vendidos como fatos afetam diretamente a maneira em que compreendemos e governamos nosso mundo. Até a ciência entrou em crise na era da pós-verdade. Para a maioria dos especialistas, a situação ambiental global é crítica. Entretanto, a ciência se curva ao poder, os fatos se subordinam a interesses imediatos e a humanidade continua seu curso alegre em direção ao caos ecológico. Quase 100% dos cientistas do ramo acreditam nas causas antropogênicas das mudanças climáticas, mas um pequeno grupo financiado por empresas de petróleo e mineração consegue ofuscar a opinião pública e impedir ações nacionais ou globais efetivas. Esta disparidade entre fato e versão culminou recentemente no desligamento lamentável, mas previsível, do Acordo de Paris pelo Trump.

O desenvolvimento no banco dos réus

Por mais cega e desastrosa que tenha sido essa decisão de Trump, ela é coerente com a raiz mais profunda da oposição humana à governança ambiental. O maior projeto da nossa civilização – “o desenvolvimento” – é justamente o principal empecilho à sustentabilidade. A tarefa dos negacionistas é facilitada pela força e generalização da crença nesse projeto. “Desenvolvimento”, entretanto, significa crescimento econômico exponencial, utilizando energia para transformar recursos naturais em objetos de consumo e, eventualmente, em resíduos. Essa engrenagem é impelida e sustentada pela cultura universal do consumo, que define não somente os contornos da nossa felicidade esperada (consumir promete fazer-nos felizes), mas também o status social de indivíduos e grupos. Observa-se que os argumentos oficiais e comerciais a favor da governança ambiental são sempre formulados em termos de aumentar lucros e empregos, para agradar aos desenvolvimentistas, mas evitam cuidadosamente mencionar a redução do consumo. Entretanto, como bem sentencia Wilk –“sem consumismo, não há crise ambiental.” [1]

Não há como negar que a implementação desse paradigma tem reduzido a pobreza e melhorado a condição humana nos últimos tempos. O problema é que os recursos naturais que sustentam essa trajetória do crescimento econômico baseado no aumento do consumo são inerentemente limitados. Este fato é o elefante no salão que evitamos discutir.

A física ensina que não se pode produzir algo do nada ou vice-versa. A ciência ambiental confirma esta lei ao comprovar a transgressão pelo desenvolvimento de fronteiras planetárias críticas – incluindo o colapso da biodiversidade e as mudanças climáticas – pelo desenvolvimento.[2] Quanto maior e mais generalizado o crescimento econômico, mais nefastos seus efeitos ambientais. A crença de que esse desenvolvimento pode crescer infinitamente constitui o maior engodo da nossa civilização. Conforme observação lacônica de Kenneth Boulding – “Quem acredita no crescimento exponencial num mundo finito é louco ou economista. ” O maior drama ético do século 21 é que esse tipo de “desenvolvimento” só pode se expandir com o agravamento da destruição ecológica e acentuação da desigualdade.

 

 

Source: Steffen et al, 16 January 2015, Science: http://www.stockholmresilience.org/research/planetary-boundaries/planetary-boundaries-data.html

A crise ecológica atual foi originalmente criada pelos padrões de consumo dos 20% mais ricos do mundo. Mesmo hoje, apenas um terço da população mundial consome dentro do padrão desenvolvimentista, mas os outros dois-terços também aspiram a esse “desenvolvimento”. A limitação de recursos naturais inviabiliza terminantemente essa expansão. Isso pode ser ilustrada com a ajuda da “pegada ecológica” – ferramenta que mede o impacto humano sobre a biosfera.[3]

A biocapacidade total do Planeta é de 12,2 bilhões de hectares globais. Num mundo perfeito, estes recursos seriam distribuídos equitativamente e dentro dos limites da biocapacidade; na realidade, a desigualdade se agudiza e a pegada ecológica mostra que já ultrapassamos a capacidade de autorregenerarão da biocapacidade em 68% (em 2013). Constata-se que se toda a população mundial tivesse um padrão de consumo igual ao dos Estados Unidos, o Planeta poderia manter apenas 1,4 bilhões de pessoas sustentavelmente, enquanto um consumo igual ao da Argentina permitiria 3,3 bilhões. Somente com um padrão de vida característico da Somália o Planeta poderia acomodar sustentavelmente os 9,9 bilhões de pessoas projetadas para meados do século.

O engodo do projeto desenvolvimentista global é continuar propagando a ilusão de que todos podem consumir como os EUA, ou pelo menos como a Argentina. Isto até sugere rever a tradicional discussão sobre o papel da dinâmica demográfica na problemática ambiental. Até hoje, persiste em certos círculos o equívoco de que o crescimento acelerado da população gerou a crise ambiental, ignorando solenemente o fato de que ela foi produzida diretamente pelos países ricos de baixa fecundidade. Ainda mais absurda seria menosprezar a importância da dinâmica demográfica na trajetória ambiental futura. A dimensão dos bilhões de demandantes por inclusão no projeto desenvolvimentista, num mundo finito, detona a racionalidade subjacente ao paradigma dominante. O tamanho e crescimento dos bilhões ainda demandantes do “desenvolvimento” não podem ser simplesmente ignorados. Este dramático embate entre desenvolvimento, população e meio ambiente não pode ser resolvido sem convergência socioeconômica que respeite as limitações planetárias e que promove uma transição global drástica para valores e comportamentos desmaterializados. Do contrário, a explosão de conflitos e a ampliação da miséria humana no Planeta seriam inevitáveis.

Mas, a tecnologia resolve…ou não?

Os otimistas de plantão desistiram de trombetear o “milagre do mercado” para enfatizar uma de suas subsidiárias – o desenvolvimento tecnológico. Acreditam que este pode gerar grandes lucros na área ambiental enquanto resolve os problemas criados pelo “desenvolvimento”. Infelizmente, não há nenhum “quick fix” à vista! Grandes avanços tecnológicos serão essenciais, particularmente no setor energético, para ajudar na superação dos problemas ambientais. Isto vai certamente gerar empregos e retornos financeiros. Entretanto, o desenvolvimento tecnológico tem limitações críticas. Desenvolver e implementar novas tecnologias também demanda muita energia. Muitos materiais críticos para os milagres tecnológicos – como o petróleo e o lítio – têm estoques já limitados. Ou seja, a resolução de problemas num determinado setor cria outros, devido aos limites inerentes de recursos naturais. Pior, os avanços tecnológicos, ao melhorarem a eficiência de um material, aumentam sistematicamente a escala do consumo, conforme constata-se desde Jevons.[4]  Isto é, a tecnologia aumenta o consumismo, o que explica porque os avances tecnológicos excepcionais registrados nas últimas décadas foram marcados por uma explosão inédita no uso de recursos naturais.[5]  Finalmente, o controle e uso da tecnologia são imprevisíveis, conforme exemplificado na manipulação de avanços na computação e no material bélico, comandados atualmente por personagens mercuriais como Putin e Trump. Atribuir poderes mágicos e inerentemente benéficos à tecnologia é ingênuo, pois ela não tem influência autônoma sobre processos sociais ou políticos; apostar nela para resolver o desastre ecológico já implantado é roleta russa global.

Falhas da governança global

Ao ignorar as limitações inerentes da natureza e a consequente impossibilidade física de perpetuar o crescimento econômico, as duas principais iniciativas contemporâneas da governança global para lidar com as graves ameaças ambientais – os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e as Conferências das Partes (COPs) – destinaram-se ao fracasso. Os ODS e a Agenda 2030 apresentam uma grande variedade de objetivos e metas ambientais, sociais e econômicos, em graus de generalidade diversos. No seu conjunto, porém, constituem um trilema, pois os objetivos econômicos, sintetizados no Objetivo 8 como a procura generalizada do “crescimento sustentado”, dificultam ou mesmo inviabilizam os objetivos sociais e ambientais da proposta.[6]

Da mesma forma, a COP de Paris não oferece maiores esperanças. Os limites de aumento de temperatura estipulados são grosseiramente insuficientes. Nem estes parâmetros mínimos serão alcançados, ainda que todos – surpreendentemente – cumprissem suas promessas. O mais grave é que  Paris também não abordou a questão central – o redirecionamento do “desenvolvimento” e a especificação dos objetivos de crescimento econômico de acordo com as necessidades de diferentes países e da redução drástica das emissões.

Dada a enorme disparidade entre países e grupos sociais, a discussão de um modelo econômico radicalmente diferente, baseado minimamente na convergência, teria sido imperativa tanto nas ODS como em Paris. As duas iniciativas foram importantes em termos de criar consciência sobre a questão ambiental, mas falharam ao não discutir o próprio desenvolvimento. A ausência dessa discussão, nos dois casos, foi motivada pelo medo de “perder” os países na assinatura de um acordo universal inédito. Entretanto, tal estratégia imediatista pode induzir à complacência, pois sustenta a ilusão de que medidas efetivas estão realmente sendo implementadas. Nesse contexto, a ultrajante retirada do Acordo de Paris pelo Trump pode até ser a centelha que provocará um debate mais realista sobre os caminhos e os obstáculos da sustentabilidade.

Em suma, grandes mitos também prosperam na era pós-verdade. O maior e mais perigoso deles é a pretensão de solucionar o caos ambiental através da perpetuação do padrão de desenvolvimento que o causou.

É preciso reconhecer a gravidade do momento, modificar a cultura do consumo e promover a convergência social e econômica em níveis sustentáveis.

A governança global simplesmente não pode continuar ignorando o elefante no salão.

 

[1] Ver, Wilk, R. 2017. Without consumerism, there is no environmental crisis. https://www.populationenvironmentresearch.org/cyberseminars/10449

[2] Steffen, W et al. 2015. Planetary boundaries: Guiding human development on a changing planet. Science, 13 Feb. Vol. 347, Issue 6223.

[3] Global Footprint Network. http://data.footprintnetwork.org/countryTrends.html?cn=231&type=cdPC

[4] Alcott, B. 2005. Jevons’ paradox. Ecological Economics. 54 (1): 9–21.

[5] UNEP. 2017. Resource Efficiency: Potential and Economic Implications. A report of the International Resource Panel. http://www.resourcepanel.org/reports/resource-efficiency. United Nations Environment Programme, Paris. 168 p.

[6] Martine, G e J. E. Alves. 2015. Economia, sociedade e meio ambiente no século 21: tripé ou trilema da sustentabilidade? Revista Brasileira de Estudos Populacionais, v. 32, n. 3.

 

Artigo socializado pela ABEP: Associação Brasileira de Estudos Populacionais e reproduzido in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 09/06/2017

 

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