‘Muita gente vai, no final da vida, estar excluída da proteção previdenciária’, prevê Clóvis Scherer (Dieese)
Aprovado no dia 3 de maio, na Comissão Especial, o texto-base da reforma da previdência (PEC 287/2016) traz algumas mudanças em relação ao projeto original enviado pelo governo Temer. Está prevista para esta semana a votação dos destaques feitos pelos parlamentares. Nesta entrevista, o economista e coordenador adjunto do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Clóvis Scherer, compara os dois projetos e reforça que a reforma continua trazendo muitas perdas para os trabalhadores. Para Clóvis, há questões essenciais que ainda estão de fora do debate, por exemplo, a exclusão, na prática, de muitas pessoas que podem, com as novas regras, nunca se aposentarem. O quadro se agrava ainda mais, como alerta, quando se leva em conta a reforma trabalhista e a terceirização irrestrita, com sérios impactos no mercado de trabalho e dificuldades de contribuição por 25 anos para a Previdência
Por Raquel Júnia – EPSJV/Fiocruz
Digamos assim, o texto aprovado amenizou, realmente, algumas preocupações que se tinha com relação a dispositivos da proposta inicial. Algumas questões foram consideradas, por exemplo, a questão da desvinculação das pensões e do benefício do BPC ao salário mínimo, que havia sido suprimida na proposta do governo e agora voltou a vinculação. A mudança no tempo de contribuição para o trabalhador da agricultura familiar, o segurado especial agora contribui com 15 anos, ao invés de 25, também atenuou um pouco um problema que poderia ser gerado para a inclusão previdenciária desse grupo. Além disso, a possibilidade de acumular aposentadoria e pensão no valor até dois salários mínimos também tem uma repercussão bastante significativa pra uma parcela importante da população, embora não tenha realmente respondido completamente à preocupação com relação aos beneficiários de baixa renda, nesse aspecto da acumulação de aposentadoria e pensão. De qualquer maneira, esse é um outro ponto que eu acho importante destacar. Com relação à idade, manteve-se uma diferença de idade entre homens e mulheres, embora não aquela que temos hoje, mas para três anos. Outro ponto é que os professores mantiveram uma condição mais favorável para aposentadoria. Em alguns outros pontos também houve mudança, mas que não necessariamente são positivas, por exemplo, a regra de transição, no caso do servidor público, se tornou mais rígida ainda, suprimindo a chamada integralidade e paridade para parte dos servidores que esperavam poder contar com isso, houve a mudança no pedágio, no tempo adicional de contribuição para quem cai na regra de transição de 50% pra 30%, mas isso não significa uma grande mudança porque, ao mesmo tempo, no substitutivo aprovado foi imposta uma idade mínima progressiva para aposentadoria. Então, no final das contas, é preciso fazer uma análise se realmente nesse aspecto se revela uma condição mais vantajosa ou não em comparação com o texto original, talvez não represente grande melhoria. E com relação ao valor dos benefícios, que é outro ponto importante, temos que, por um lado, reconhecer que agora a aposentadoria chamada integral, com 100% da média, poderá ser obtida não com 49 anos de contribuição, mas sim com 40 anos. Por outro lado, na outra ponta, para aqueles que não conseguem acumular muito tempo de contribuição, o valor do benefício vai ser menor, porque no patamar de início, no texto original se partia de 76% da média dos salários, enquanto que agora no substitutivo é só 70%, então houve aí um trade-off, uma compensação. Isso revela que existe um problema aí principalmente com relação a essa questão dos 25 anos de contribuição como exigência mínima para aposentadoria, porque esse é um requerimento bastante difícil de ser atendido por parte de grande parcela da nossa população, muita gente não vai conseguir acumular esse tempo de contribuição e vai, no final da vida, estar excluída da proteção previdenciária, esse é um grande temor.
Esse continua sendo o grande ponto crítico da reforma, mesmo com essas alterações?
É um dos pontos mais preocupantes e que não foi tocado ou que não tem sido destacado nos debates. Tem se focado muito na questão da idade mínima para aposentadoria e não se dá tanta atenção a esse requisito elevado de 25 anos de contribuição. Primeiro porque as características da inserção das pessoas no trabalho mostra que é difícil acumular tempo de contribuição por conta da informalidade, da rotatividade e, principalmente, isso acontece com as pessoas que têm idade mais avançada, então a pessoa vai chegar próximo da aposentadoria, ou quando perde a sua capacidade de trabalhar, sem ter acumulado esse tempo de contribuição e não vai conseguir ocupação tão facilmente nessa fase da vida. É muito difícil uma pessoa com 55 anos ou mais conseguir um emprego formal onde haja registro em carteira, contribuição previdenciária, normalmente as pessoas nessa idade se inserem em ocupações informais, por conta própria, com renda muito baixa, portanto, não tendo muita condição de reservar uma parte do seu rendimento para contribuir para a previdência. Isso, quando consegue trabalhar, porque, muitas vezes, as pessoas perdem as condições físicas de trabalhar ainda mais cedo, vamos pensar aí no trabalhador da construção civil ou de outras ocupações que são bem exigentes fisicamente. Então esse é um ponto bastante crítico, eu diria, do nosso sistema de proteção.
Traduzindo, então, na verdade pode ser que muitas pessoas não consigam se aposentar?
Esse é um temor que a gente tem, de que o número de pessoas que não conseguirão se aposentar e que não conseguirão ter outra renda, seja de emprego formal ou informal, vai aumentar muito.
Esse substitutivo foi pactuado com o governo, mas, segundo diversas análises o governo ainda não tem condições de aprová-lo no Congresso. Diante desse quadro, há expectativa sobre modificações?
Eu acho que a sociedade vai ter que continuar se manifestando. Esse não é o único ponto crítico, acho que existem outros por exemplo, na questão do trabalhador rural, principalmente o segurado especial da agricultura familiar, tem o problema dele ser obrigado a contribuir individualmente monetariamente por 15 anos para a Previdência, e a gente sabe que uma parcela grande da agricultura familiar não tem uma renda suficiente para fazer contribuições para todos os membros da família, então, pode ser que só exista condições de contribuir para uma pessoa da família ter o benefício previdenciário. Pode ser que aí nós tenhamos outro problema. A própria idade do BPC, que o governo queria botar em 70 anos e o substitutivo colocou em 68, mas 68 pra quem é beneficiário do BPC, é muito, as pessoas já não têm condições, não teve renda muito antes de chegar nessa idade, então pode ser que essas pessoas fiquem aí num limbo, sem renda, seja do mercado de trabalho, seja de um benefício assistencial, então é outro ponto que teria que ser discutido. Poderia listar vários outros itens, o próprio cálculo do valor, a proposta do substitutivo sacramenta aquela ideia de que você vai fazer o cálculo da média usando todas as remunerações desde 1994, e não apenas com as 80% maiores contribuições. Isso vai ocasionar uma redução no valor do benefício, porque claro que a média com os maiores valores é maior do que a média calculada com todos os valores. Esse percentual de perda, digamos, pode chegar de 5% a 10% do valor final do benefício. Pode ser que para muitas pessoas isso não deprima tanto a aposentadoria a ponto de tornar insustentável, mas para quem recebe pouco mais que o salário mínimo, por exemplo, uma pessoa que contribuiu sobre dois ou três salários mínimos ao longo da vida, essa perda no final da aposentadoria pode ser bastante significativa e tornar o rendimento da aposentadoria insuficiente para uma vida digna. O governo tem falado muito “nós estamos assegurando o salário mínimo como piso previdenciário”, mas ele não fala justamente dessas pessoas que estão entre o salário mínimo e o teto, essa faixa intermediaria que não é exatamente um grupo de pessoas privilegiadas, vamos aceitar que dois ou três salários mínimos não é nenhum salário de marajá no Brasil, e esses aí vão ter perda, por esse mecanismo de cálculo e pela regra de cálculo de 70% mais pontos percentuais adicionais. Eu acho que tem muito que discutir e muito que avaliar. E o governo tem negociado, se é que tem negociado, internamente com seus representantes, e não de maneira aberta com a sociedade como um todo.
Quais são aspectos centrais da discussão sobre a Previdência que não estão aparecendo no Congresso, ou aparecem muito pontualmente nas falas da oposição, e no próprio debate público sobre o tema? Ainda há pontos que precisam ficar mais claros para a população?
Eu acho que já tem sido dado bastante destaque às diferentes interpretações do que é o orçamento da seguridade social no Brasil, como é que se calcula o orçamento, quais são as receitas e quais são as despesas da seguridade social e da previdência social. Então, esse debate para mim está bem, pelo menos para quem acompanha no Congresso isso tem sido colocado, foi bem explorado. Tanto de um lado o governo sustentou sua tese, de que existe um déficit e, do outro lado, principalmente a ANFIP [Associação Nacional de Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil], e outras entidades que se alinham com essa linha de interpretação, que é a nossa também, argumentam que a seguridade social não apresenta déficit, esse déficit surge quando o governo, digamos, adota uma interpretação bastante flexível, enviesada, no nosso entender, da Constituição para colocar ali o resultado do regime próprio da União como parte da seguridade social. E, além disso, não conta as receitas que são desvinculadas pela DRU [Desvinculação das Receitas da União] e também não considera essas isenções, desonerações que foram feitas com recursos da Previdência que não são contabilizados aí, o que deveria ser feito. Esse debate acho que está bem colocado. Agora, o que eu acho que está faltando, realmente, e é mais importante ainda é o seguinte: quais são as projeções financeiras atuariais subjacentes que podem ser feitas a partir dessa proposta do governo e do substitutivo em termos, de um lado, de resultado fiscal e, por outro lado, algo que não foi feito de maneira nenhuma, o impacto social dessas propostas? Por quê? Porque o governo, inclusive a comissão cobrou isso do governo, não apresentou as projeções de receitas, despesas e déficit previdenciário com base na sua proposta. O Ministério da Fazenda produziu um documento dizendo: “aqui estão as nossas projeções do resultado fiscal financeiro da Previdência se a PEC for aprovada”. Acontece que esse modelo que eles utilizaram para as projeções é muito pouco conhecido e numa avaliação que nós, do Dieese, fizemos junto com a ANFIP, com especialistas, é que nós temos grandes dúvidas com relação à consistência desse modelo, a gente acha que o modelo não está suficientemente desenvolvido para nos permitir saber qual vai ser o resultado dessa reforma, tanto em termos fiscais quanto, principalmente, algo que o modelo não apresenta, mas que é possível e é necessário ter, qual é o impacto que essa reforma terá na cobertura previdenciária, nos benefícios. Inclusive, para responder uma questão chave: nós vamos com essa reforma reduzir ainda mais nosso grau de proteção social no Brasil? Por exemplo, excluindo pessoas que não vão conseguir ter tempo de contribuição suficiente para ter uma aposentadoria na velhice. Esse dado não está suficientemente debatido e deveria ser justamente o centro do debate. Mais importante até do que saber se está havendo déficit ou superávit na seguridade social, é importante saber qual é o resultado da proposta que está sendo apresentada para que a gente possa julgar: está muito rígido? É possível que o sistema seja mais generoso em termos de valores, de benefícios, de idade pra aposentadoria, em tempo de contribuição? A gente não tem essa avaliação e é muito difícil fazer esse tipo de avaliação sem que o governo apresente os dados, porque é ele que controla a produção dos dados necessários para fazer esse debate. E a Comissão não exigiu isso, pediu, mas não aprofundou o debate em torno dessas projeções.
De forma independente é difícil fazer essa projeção?
Sem dúvida, fica muito complicado porque vários parâmetros para uma projeção dependem de você ter acesso a dados da antiga Previdência, do antigo Ministério, enfim, dados do INSS sobre o comportamento. Por exemplo, um dado que não tinha, veio surgir muito recentemente, mas que a gente não tem uma série histórica, por exemplo, para avaliar, é justamente o tempo de contribuição das pessoas que se aposentam por idade. Esse dado não existia, foi divulgado muito recentemente. Um outro dado que seria possível saber, qual é a duração dos benefícios, em média, quanto tempo uma pessoa permanece recebendo aposentadoria, quanto tempo uma pessoa permanece recebendo uma pensão, e a gente poder modelar isso num modelo de projeção. Então são variáveis que externamente ao governo, a gente não dispõe.
E diante do cenário que está se desenhando com a aprovação da reforma trabalhista, a terceirização para atividade fim, que já foi sancionada, é precisa considerar todos esses fatores também nessa projeção?
Sim, nesse aspecto mais da questão do mercado de trabalho, das relações de trabalho, é muito preocupante, porque, realmente, está se destruindo um sistema todo de proteção do trabalho, de regulação do trabalho, sem que haja algo coerente colocado no lugar que dê proteção ao trabalhador. Está se colocando simplesmente a desmontagem da legislação de proteção ao trabalho deixando o trabalhador desprovido de meios de conseguir fazer um mínimo de equilíbrio com o empregador na sua relação capital – trabalho. E essa deterioração que se pode esperar a partir da reforma trabalhista terá como efeito a corrosão das bases de financiamento da Previdência, porque ela continua sendo financiada por contribuições vindas da folha, ou seja, do trabalho assalariado formal, com carteira, que vai encolher com essa reforma. Os salários tendem a cair porque as condições de trabalho vão ser aviltadas, a relação entre capital e trabalho vai ser desvantajosa para o trabalhador, o salário real pode cair, isso tem reflexo na arrecadação previdenciária. E, por outro lado, tem o sentido inverso, quando você faz com que as pessoas tenham que trabalhar mais para chegar à aposentadoria, a oferta de força de trabalho no mercado tende a aumentar, os idosos vão ter que trabalhar mais, os jovens vão procurar muito o emprego para poder, já de início, ter alguma chance de se aposentar no futuro, isso tudo vai afetar o mercado de trabalho, aumentará a oferta de trabalho, digamos, enquanto que a demanda por trabalho, por trabalhadores, continua muito fraca e não tem perspectiva de aumentar. Então isso tudo tende a também impactar negativamente o mercado de trabalho. Então as duas coisas se retroalimentam num processo muito negativo, num círculo vicioso.
Nós tivemos no último dia 28 uma greve geral convocada por todas as centrais sindicais contra as reformas. Que balanço pode ser feito dessa mobilização? Como vocês avaliam a correlação de forças hoje entre o governo e os setores dominantes que se posicionam a favor da reforma e os trabalhadores que são contrários?
Pelo que se observou depois da greve geral, claro que é preciso que a mobilização continue para que realmente esses processos de desmontagem da previdência pública e da proteção do trabalho no Brasil sejam revertidas. Até porque a questão da reforma trabalhista está no Senado, continua a tramitar. Agora, por outro lado, essa greve geral, toda mobilização que houve antes, e essa grande unidade das centrais sindicais, não só das centrais, acho que todo o movimento sindical está muito unido em torno do objetivo de se contrapor a essas duas reformas e à terceirização, todos esses elementos aí já explicam muito o que foi alterado na reforma da Previdência. Se não tivesse havido essa mobilização toda, essa pressão, inclusive, na base dos parlamentares, acho que muitas das coisas que foram amenizadas no substitutivo não teriam sido feitas. Mesmo agora, com relação à reforma trabalhista, também já se observa que o Senado vai adotar um ritmo diferente de discussão da reforma trabalhista, respondendo, inclusive, a um pedido do movimento sindical de mais possibilidade de debater o projeto de reforma trabalhista antes que venha à votação. Então já vão ter aí três comissões, num ritmo menos acelerado que o governo estava querendo imprimir com esse processo. Eu acho que a sociedade já se fez ouvir, mas se realmente o objetivo for de alterar e eliminar desses dois projetos aquelas questões nocivas ao trabalho, aos trabalhadores, é preciso manter a mobilização, pelo menos essa é a avaliação das centrais e do restante do movimento sindical.
Podemos dizer que essa unidade dos trabalhadores em torno dessa resistência é inédita ou diferente de outros momentos?
Acho que sim, é realmente uma unidade que chama atenção. Até um tempo atrás se falava que as centrais poderiam não estar todas unidas com a mesma bandeira, mas com o passar do tempo, com as discussões que elas foram fazendo, essa unidade se consolidou. Acho que todas estão falando a mesma linguagem, e isso não é inédito, mas é realmente marcante. E também não só a unidade, mas a força com que essa unidade veio às ruas, essa greve geral, a maior da história, acho que foi até um alento pra quem está preocupado com as possíveis repercussões dessas reformas. Essa greve foi um alento no sentido de fazer ver que existe resistência, existe capacidade de mobilização.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 15/05/2017
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