Racismo Ambiental: Conceito se mostra extremamente atual diante do massacre sofrido pelos índios Gamela
Racismo Ambiental: Conceito se mostra extremamente atual diante do massacre sofrido pelos índios Gamela
Racismo Ambiental
Por Maíra Mathias – EPSJV/Fiocruz
Dakota do Norte, Estados Unidos, 2016: uma empresa petrolífera está em vias de terminar a construção de um oleoduto com quase dois mil quilômetros de extensão. O traçado original é abandonado para evitar que a tubulação passe próxima de Bismarck, capital do estado, já que moradores e autoridades locais temem pela contaminação dos mananciais de água que abastecem a cidade. A solução encontrada? Desviar a rota do oleoduto para os limites da Reserva Indígena de Standing Rock, rente ao lago e ao rio que abastecem os índios Sioux. Carolina do Norte, Estados Unidos, 1982: rejeitos químicos são depositados há uma década no condado de Warren, um dos locais mais pobres do estado onde historicamente se estabeleceram comunidades descendentes de escravos. A substância alocada por lá, conhecida como PCB, é tão tóxica que o Congresso do país baniu a sua produção em 1979. A promessa das autoridades é de que, uma vez atingida a capacidade máxima, o depósito será desativado e transformado em área de recreação. Não só o lixão continuou em operação como foi expandido diversas vezes.
O fio que liga essas (e muitas outras) histórias se tece nas desigualdades e discriminações étnicas e raciais que de antemão, definem quem são os injustiçados e quem são os privilegiados nas disputas pelo território e em torno dos direitos socioambientais. E pode ser sintetizado em um conceito: racismo ambiental. “Ninguém decide fazer um lixão em Ipanema ou Copacabana. A decisão de onde jogar o lixo está ligada à imagem que se tem da população em quem você joga lixo”, resume Tania Pacheco, criadora do blog Combate ao Racismo Ambiental e coordenadora executiva do Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, projeto que acompanha centenas de situações nas quais o ônus do modelo de desenvolvimento capitalista recai sobre povos indígenas, comunidades tradicionais, populações negras e pobres. Mas, diferente de outros conceitos, destaca ela, o racismo ambiental emerge da insurgência desses grupos: “Foi forjado no calor das lutas do movimento social no condado de Warren para que os rejeitos tóxicos parassem de ser despejados lá”.
Quem empregou pela primeira vez o termo foi Benjamim Chavis, liderança do movimento negro que mesclava religião (é reverendo) e ciência (é químico) em sua militância. “Racismo ambiental é a discriminação racial nas políticas ambientais. É discriminação racial na escolha deliberada de comunidades de cor para depositar rejeitos tóxicos e instalar indústrias poluidoras. É discriminação racial no sancionar oficialmente a presença de venenos e poluentes que ameaçam as vidas nas comunidades de cor. E discriminação racial é excluir as pessoas de cor, historicamente, dos principais grupos ambientalistas, dos comitês de decisão, das comissões e das instâncias regulamentadoras”, escreveu ele. Por ter ganhado as manchetes dos jornais graças à combinação de ações diretas de protesto e discurso político contundente, o caso do condado de Warren serviu de incentivo para que outras comunidades fizessem denúncias semelhantes, chegando-se ao seguinte quadro: em 1983 nos oito estados do sul dos Estados Unidos (onde a segregação racial era notória), 75% dos depósitos de rejeitos eram instalados em bairros negros, embora a população negra representasse apenas 20% do total de habitantes da região. Estatística reversa pode ser observada hoje no caso do oleoduto em Dakota do Norte: 92% dos moradores da cidade de Bismark, que conseguiram ser ouvidos pelas autoridades e evitar os riscos de contaminação subjacentes à estrutura da indústria petrolífera, são brancos.
“Não é mera coincidência ou acaso”, afirma Tania, que explica que falar de racismo ambiental no Brasil é reconhecer que a constituição dos poderes políticos, econômicos e culturais dominantes está historicamente ligada a um passado colonial em que os indivíduos brancos foram considerados e tratados como superiores. “Por exemplo, por que uma indústria como a Aracruz Celulose vai [em 1967] para o Espírito Santo implantar o monocultivo de eucalipto exatamente em territórios indígenas e quilombolas e não nos territórios onde havia agricultores de descendência italiana com as suas fazendinhas? É porque a terra é pior? Não. Pelo contrário, seria a melhor terra. Mas esses empreendimentos se instalam exatamente onde se pode cutucar com vara curta e ter o mínimo de reação, senão nenhuma reação do poder público e da sociedade em geral”. Daí, explica ela, a importância de se colocar o dedo na ferida, especialmente em um país onde prevaleceu durante muito tempo o falso mito da democracia racial. “O conceito explicita a dimensão racista dos problemas ambientais e coloca na linha de frente perguntas incômodas: por que é muito mais fácil e naturalizado agredir o índio, agredir o quilombola?”, questiona Tania.
“Em Ilha de Maré [Bahia], as comunidades começaram a elaborar perguntas assim. Por que um empreendimento como o Porto de Aratu não está na Barra, que é um dos bairros mais etilizados de Salvador, mas foi instalado aqui em nosso quintal? E foram identificando, no vácuo de respostas do poder público, o processo de racismo ambiental”, conta Maria José Pacheco, secretária executiva do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), citando o conflito entre a população quilombola da ilha da Baía de Todos os Santos, o porto e o complexo industrial que operam no próprio território, como é o caso da Petrobras, ou a poucos quilômetros dele e provocam contaminação ambiental. Um caso extremo aconteceu em dezembro de 2013, quando, para controlar um incêndio em um navio da Braskem/Odebrecht, foi derramado ao mar todo o óleo combustível da embarcação. “Três anos depois, nada foi feito: nenhum responsável punido; nenhuma medida de segurança construída; nenhuma reparação”, escreveram as comunidades em carta aberta publicada em janeiro deste ano na qual denunciam a degradação das condições de subsistência e de saúde no território.
“Essas comunidades vêm de um processo de resistência, com fortalecimento da organização e da articulação política. E as respostas a esse processo, pelo Estado, por seus órgãos ambientais, nunca se deu no mesmo nível da mobilização. E a gente foi pensando nisso, que para além da situação de injustiça ambiental e de processos incorretos de licenciamento, ligados aos interesses econômicos, havia um pano de fundo de discriminação e negação dessas comunidades. Para o governo e para a sociedade, é como se essas populações não existissem como sujeitos de direitos, como atores políticos, e os espaços onde elas desenvolvem o seu modo de vida fossem vazios. O conceito de racismo ambiental caiu como uma luva tanto para a gente refletir sobre esse processo tão forte no Brasil, vivenciado por indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, pelas comunidades negras como um todo, quanto para fortalecer as nossas lutas por direitos e por vida digna, sustentável e com saúde”, afirma Maria José.
Ampliação e disputas
O racismo ambiental não se restringe ao ‘onde’ os empreendimentos que mais poluem e degradam são instalados, mas também ao ‘como’ eles operam. Em 2011, o Ministério Público do Estado do Espírito Santo moveu uma Ação Civil Pública contra a siderúrgica ArcelorMittal e o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema). O processo acusa a empresa de racismo ambiental e sustenta que a multinacional adota por aqui uma tecnologia diferente de suas plantas no exterior, como se no Brasil houvesse uma espécie de ‘licença para poluir mais’. Outro caso envolvendo siderurgia e contaminação, desta vez com a empresa alemã TKCSA no Rio de Janeiro, acusada pelo MP estadual de cometer crimes ambientais, levou um promotor a refletir: “E se os incidentes ambientais tivessem acontecido numa unidade na Alemanha? Talvez já tivessem interrompido o funcionamento da siderúrgica há muito tempo”, disse em entrevista ao portal Deutsche Welle. “Benjamim Chavis alertava no início da década de 1990 que, à medida que a luta contra o racismo ambiental nos Estados Unidos fosse bem sucedida, os países pobres se tornariam depositários das grandes cargas de rejeitos tóxicos oriundos de indústrias e de outras atividades poluentes. Como sabemos, isso de fato aconteceu”, situa Tania Pacheco.
Em tempos de capitalismo global, o conceito de racismo ambiental foi sendo ampliado – e também disputado. Se no início da luta no condado de Warren o foco eram as comunidades negras, o próprio movimento social foi se dando conta de que por lá o racismo ambiental também atingia povos indígenas e populações imigrantes, como latinos e asiáticos. Por aqui, o conceito abarca diversos grupos que por seus traços físicos, culturais, políticos e econômicos se diferenciam do modelo branco, ocidental e burguês historicamente imposto, como ribeirinhos, quebradeiras de coco, geraizeiros, dentre outros. Já a disputa do conceito veio da própria necessidade de expandir e angariar mais apoios para a luta contra o racismo ambiental. Isso se deu depois da Conferência Nacional das Lideranças Ambientalistas de Cor, nos Estados Unidos em 1991. O encontro gerou um documento intitulado ‘Princípios da Justiça Ambiental’. “Você tem um movimento popular cuja grande bandeira é a luta contra o racismo ambiental. Dentro da luta, uma das coisas que o movimento quer é justiça ambiental. O que vai acontecer é que para sair das ruas e entrar na academia, entrar também nas grandes ONGs – para as quais a luta contra o racismo ambiental não dizia nada –, é preciso um conceito que unifique. E a palavra de ordem que teve esse poder unificador foi ‘justiça ambiental’, que é um direito de todo mundo”, conta Tania.
Assim, o conceito de racismo ambiental foi considerado supérfluo em alguns meios acadêmicos, nos quais a noção de justiça já seria suficiente para englobar analiticamente a denúncia e a busca de superação dos conflitos pautados pela relação entre injustiça social e meio ambiente. Segundo Tania, o Brasil e os Estados Unidos são os países onde a ligação do racismo ambiental com as lutas sociais está mais estabelecida. “O conceito não pega no resto do mundo ou pega muito pouco”, diz. Por aqui, ele também chegou no guarda-chuva do movimento internacional por justiça ambiental, no bojo da ECO 92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente realizada no Rio de Janeiro. Em 2002, foi criada a Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Em 2005, formou-se um Grupo de Trabalho de Racismo Ambiental dentro da Rede. “Enquanto nos Estados Unidos o conceito surge da rua, aqui ele chega via academia. E chega via a grande preocupação por justiça ambiental. Conforme as discussões foram se desenvolvendo, começamos a trabalhar também com o racismo ambiental que, na avaliação de muita gente, responde mais diretamente à nossa realidade no sentido de mobilizar os movimentos sociais e ser facilmente reconhecível para quem sente os efeitos do capitalismo literalmente na pele”.
Perspectivas
Estados Unidos, 2017: em menos de três minutos, o presidente Donald Trump decretou a flexibilização do licenciamento ambiental e a construção de dois oleodutos, revogando, assim, a vitória do movimento indígena de Standing Rock e de seus aliados que, ao longo de sete meses, ficaram acampados no território. Com suas dezenas de ações diretas de protesto contra a obra, que acabou sendo paralisada pela Casa Branca em dezembro passado, eles romperam a invisibilidade midiática tão comum nesse tipo de conflito. Brasil, 2017: Executivo e Congresso, através de portarias, medidas provisórias e projetos de lei acenam com a flexibilização do licenciamento ambiental de empreendimentos e alterações no processo demarcatório de terras indígenas e territórios quilombolas, entre outras medidas. Lá e cá, as comunidades e povos organizados denunciam: “basta de racismo ambiental!”.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 10/05/2017
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