Água, minha paixão, meu monotema, artigo de João Ricardo Raiser
[EcoDebate] Um amigo disse certa vez que eu estava monotemático, ou chato, como esclareceu depois. E então sentenciou: – São assim as paixões. Nosso mundo gira em torno delas. Percebi ali a paixão por meu ofício – a gestão das águas, seus instrumentos, ciclo, escassez, conflitos, planejamento, integração com outras áreas, entre elas meio ambiente e uso e ocupação do solo. A responsabilidade de garantir que esse recurso limitado atenda a todos os usos.
“A água anônima sabe todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes”. Nesta frase, o filósofo francês Gaston Bachelar nos mostra que todas as águas são as mesmas, sejam quais forem. São elas as mesmas águas em que meu pai me ensinou a sonhar, nadar, navegar e pescar, que moviam a pequena turbina que gerava luz para a casa do meu avô, na zona rural do Paraná, que irrigam plantações, saciam a sede, refrescam as manhãs e tardes, e às quais um dia entregarei minhas noites.
Após mais de 15 anos, percebo que esta paixão não é um encantamento frívolo, sentimental, tampouco está ligada só à dependência física, química ou biológica que temos da água. Essa paixão vem de perceber suas funções de integração e comunhão entre os usos, de não existir atividade em que não esteja presente como matéria-prima ou parte do processo. Intimamente ligada e recebedora dos impactos causados por nós ao utilizamos a terra e outros recursos naturais. Para mim, sendo inclusive a base da tão desejada sustentabilidade, conceito que parece abstrato, mas que pode ser alcançado se percebermos que, como a água, estamos todos ligados, direta ou indiretamente dependentes uns dos outros.
Muitos acreditam que pensar e falar em água é coisa nova, mas não é, que o digam os Romanos e seus canais, onde o uso destes deu origem a palavra rival (do latin rivales – aqueles que dependiam do mesmo canal); ou o Rio de Janeiro, que transportava as águas do rio Carioca, hoje degradado, pelos Arcos da Lapa, para abastecer a cidade; ou os países pelo mundo onde a água é fator limitante, seja pela escassez ou pelo usos; ou nós mesmos, no Planalto Central, “Berço das Águas no Brasil”, que tanto estamos sofrendo com sua falta.
A água, quando ligada a diversos usos (abastecimento público, irrigação, indústria, hidroeletricidade, transporte hidroviário, pesca, turismo e lazer) é chamada de recurso hídrico, para muitos uma palavra técnica, sem romantismo ou poesia, mas este sinônimo, conceito ou situação, não tira da água a sua essência: um recurso onipresente, que deve ser utilizado de forma racional, integrada e planejada, imprescindível às atuais e futuras gerações.
Aos apaixonados, causa sempre estranheza que os atributos da amada não sejam reconhecidos. E é desesperador ver como as águas vem sendo tratadas, as ausências e omissões, a indiferença com aquela “de todas as fontes”, como se fosse algo comum, qualquer, inclusive à revelia de Leis e Constituições vigentes, como se seus conceitos e razões não fossem suficientes, relevantes ou convenientes.
A gestão dos recursos hídricos, está ligada a 3 importantes áreas: Planejamento; Desenvolvimento econômico e social; e Condições ambientais das bacias. Entretanto, enquanto a sua gestão não for reconhecida e efetivada nestes pilares, continuaremos à mercê da chuva e da sorte, vivendo de conflitos e desabastecimento, de buscar heróis ou escolher culpados, assumindo e socializando severos prejuízos ao ambiente, aos setores usuários e à sociedade.
É imprescindível que cada um faça a sua parte. Do gesto mais simples à mais complexa decisão, seja da criança ou governante no mais alto posto, buscando proteger as águas, planejar, orientar e regular os seus usos.
É urgente reconhecer a importância e respeitar as funções dos componentes e instrumentos da gestão dos recursos hídricos, para que não nos reste somente a tristeza e desespero de repetir os versos finais de Drummond, em seu “Confidência do Itabirano”, ao pensar nas águas que não mais nos servem: “…É apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!”
João Ricardo Raiser. Poeta. Administrador. Mestrando em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos (PROFÁGUA), na UNESP – Ilha Solteira, membro de Comitês de Bacia Hidrográficas Federais e Estaduais, representante no Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Gerente de Planejamento e Apoio ao Sistema de Gestão de Recursos Hídricos da SECIMA/GO. Atua na gestão das águas desde 2002. jrrgestor@gmail.com
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 31/03/2017
[cite]
[CC BY-NC-SA 3.0][ O conteúdo da EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, à EcoDebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]
Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário da revista eletrônica EcoDebate, ISSN 2446-9394,
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta enviar um email para newsletter_ecodebate+subscribe@googlegroups.com . O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.
O EcoDebate não pratica SPAM e a exigência de confirmação do e-mail de origem visa evitar que seu e-mail seja incluído indevidamente por terceiros.
Remoção da lista de distribuição do Boletim Diário da revista eletrônica EcoDebate
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para newsletter_ecodebate+unsubscribe@googlegroups.com ou ecodebate@ecodebate.com.br. O seu e-mail será removido e você receberá uma mensagem confirmando a remoção. Observe que a remoção é automática mas não é instantânea.
Prezado João Ricardo: A minha paixão pela água vem desde 1967, quando criei a primeira disciplina de hidrologia e manejo de bacias hidrográficas no Brasil, lecionada para o curso de Engenharia Florestal , em Viçosa, MG. Mas, aos 76 anos de idade, ando decepcionado com a surdez da maioria dos envolvidos no assunto, que teimam em não dar importância à hidrologia aplicada à produção de água e às tecnologias de manejo apropriadas aos ecossistemas hidrológicos analisados.
Preocupa-me a insistência em acreditar que basta a aplicação da legislação (Código Florestal, principalmente) é suficiente para resolver os problemas de vazão de nossos cursos d’água. Preocupa-me, sobremaneira, a fixação ambientalista no poder quase divino da mata ciliar. Coitada, se ela pudesse falar estaria reclamando de missões dadas a ela e que ela não poderá cumprir.
Preocupa-me, também, a crença de que basta jogar a culpa nas propriedades rurais e ameaçar, constantemente, os produtores, numa pressão permanente mas sem levara ele as alternativas viáveis de arrumação das águas que estão em seus domínios, mas não sob seus domínios, pois a água é de domínio publico (arrumação das águas é uma expressão do Dr. Manelito, produtor rural do Semiárido). Não adianta a sociedade querer que eles cuidem, sozinhos, de um bem que não pertence só a eles. A minha preocupação com os produtores rurais é porque, nas regiões de maior consumo de água, a produção se concentra em suas propriedades.
Isso para mim já virou também um monotema, mas acho que perdi o meu poder de convencimento, ou nem sei mais se algum dia eu cheguei a tê-lo. Tudo indica que você é jovem e desejo que o seu monotema encontre terreno fértil na seara dos pensamentos geradores de ideias e soluções. Abraço – Osvaldo Valente
Pingback: Água, minha paixão, meu monotema, artigo de João Ricardo Raiser | Câmara de Cultura
Obrigado pelas palavras, sevem-me como grande incentivo. É nossa função, levar informações e discutir as questões com a sociedade. Espero ter a oportunidade de conversar mais.
Abraços