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Condorcet e o direito à cidadania das mulheres: marco do feminismo moderno

 

O mundo precisa de justiça, não de caridade”

Mary Shelley (1797-1851)

Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes

e totalmente livres

Rosa Luxemburgo (1871-1919)

Marie Jean Antoine Nicolas Caritat
Marie Jean Antoine Nicolas Caritat. Imagem: Wikipedia

[EcoDebate] Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, conhecido como Marquês de Condorcet (17/09/1743 – 28/03/1794), foi um filósofo, matemático e revolucionário francês, além de ser um proeminente defensor da cidadania das mulheres e um pioneiro dos ideais feministas.

Cientista reconhecido, desde 1765, quando publicou sua obra, Ensaio sobre o cálculo integral, ele deixou sua marca na história da matemática e da atuária. Em 1769, entrou na Academia das Ciências de Paris. Em 1782 entrou para a Academia Francesa. Mais tarde foi o primeiro autor a defender um sistema previdenciário com base na repartição simples intergeracional. Ele pode ser considerado um dos fundadores da ciência Atuária e um defensor do sistema de proteção social, da paz, da educação universal e dos direitos das minorias raciais e dos idosos. Foi um protagonista da luta pelos direitos humanos.

Condorcet era um iluminista de primeira hora e contribuiu com a Encyclopédie, ou “dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers”. A Enciclopédia, editada por D’Alembert e Diderot, reunia 35 volumes, 71 818 artigos, e 2 885 ilustrações. Os principais intelectuais do Iluminismo francês contribuíram para a monumental Enciclopédia, incluindo Voltaire, Rousseau, Montesquieu e Marie Jean de Caritat.

Com a queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789, Condorcet assumiu um protagonismo exemplar na Revolução Francesa. Com o grande revolucionário inglês Thomas Paine (que foi um autor fundamental no processo de Independência dos Estados Unidos e participava de um grupo de intelectuais ingleses que incluía William Godwin e Mary Wollstonecraft) escreveu um projeto liberal de Constituição que garantia avanços sociais e respeitava a democracia. Condorcet defendeu o fim da escravidão e o término da colonização francesa no Haiti.

A lista de realizações de Condorcet é longa. O objetivo aqui é apenas mostrar a contribuição de Condorcet na defesa dos direitos da cidadania feminina. Em 1787 ele já havia tratado do assunto em uma discussão mais ampla sobre os direitos constitucionais. Mas foi no dia 03 de julho de 1790 (um ano depois do início da Revolução Francesa) que o Marquês de Condorcet publicou o texto “Sobre a admissão do direito de cidadania às mulheres” (ver link na referência abaixo) que explica sua defesa da cidadania das mulheres na Assembleia Nacional. O texto é uma verdadeira aula sobre equidade de gênero (pena que o presidente Michel Temer não tenha hábito de ler esse tipo de literatura, que seria de grande valia para qualquer discurso no Dia Internacional da Mulher).

Defendendo o direito de voto feminino na Assembleia Nacional, logo na primeira página, Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat diz:

“… os direitos dos homens resultam simplesmente do fato de serem seres racionais e sensíveis, suscetíveis de adquirir ideias de moralidade e de raciocinar sobre essas ideias. As mulheres que têm, então, as mesmas qualidades, têm necessariamente os mesmos direitos. Ou nenhum indivíduo da espécie humana tem verdadeiros direitos, ou todos têm os mesmos; e aquele que vota contra os direitos do outro, seja qual for a sua religião, cor ou sexo, desde logo abjurou o seu próprio.

Seria difícil provar que as mulheres são incapazes de exercer os direitos de cidadania. Embora possam tornar-se mães de família e expostas a outras indisposições passageiras, por que não podem exercer direitos que nunca foram propostos para privar as pessoas que periodicamente sofrem de gota, bronquite, etc.? Admitindo, por enquanto, que existe nos homens uma superioridade de espírito, que não é o resultado necessário de uma diferença de educação (que não é de modo algum provada, mas que deveria ser, permitir que as mulheres sejam privadas de um direito natural sem injustiça). Essa inferioridade só pode consistir em dois pontos. Diz-se que nenhuma mulher fez qualquer descoberta importante na ciência, ou deu provas da posse do gênio em artes, literatura, etc. Mas, por outro lado, não se tem intenção de afirmar que os direitos de cidadania sejam concedidos apenas aos homens de gênio. Acrescenta-se que nenhuma mulher tem o mesmo grau de conhecimento, o mesmo poder de raciocínio, que certos homens. Mas, o que resulta disso? Só que, com exceção de um número limitado de homens excepcionalmente esclarecidos, a igualdade é absoluta entre as mulheres e o restante dos homens; Que esta pequena classe à parte, inferioridade e superioridade são igualmente divididos entre os dois sexos. Mas, uma vez que seria completamente absurdo restringir a essa classe superior os direitos de cidadania e o poder de ser confiado a funções públicas, por que as mulheres deveriam ser excluídas mais do que aqueles homens que são inferiores a um grande número de mulheres?” (Condorcet, 03/07/1790, p. 1).

O importante a notar é que Condorcet defendeu o voto universal para ambos os sexos na Revolução Francesa, com argumentos sólidos e claros, com base nos princípios de uma cidadania universal. É necessário registrar ainda que Condorcet, com seu texto de 1790, inspirou as duas mulheres que são consideradas pioneiras do feminismo moderno: Olympe de Gouges, que escreveu a provocativa “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, em setembro de 1791 e Mary Wollstonecraft que escreveu a fundamental obra “Uma defesa dos direitos da mulher” em 1792. O Marquês de Condorcet era casado com Sophie Marie Louise de Grouchy (1764-1822) e costuma receber em sua casa em Paris figuras ilustres da França e do resto do mundo, inclusive as proto-feministas Olympe de Gouges e Mary Wollstonecraft.

Não há dúvida de que o Marquês de Condorcet foi um grande cientista, um grande revolucionário e um defensor pioneiro da equidade de gênero. Ele foi perseguido pelo regime de terror implementado pelos Jacobinos e por todos aqueles que não conformavam com suas ideias avançadas, igualitárias e democráticas. Simone de Beauvoir, que foi influenciada por estas figuras admiráveis do feminismo do final do século XVIII, no livro O Segundo Sexo, escrito mais de 150 anos depois da Revolução Francesa, reconheceu o pioneirismo de Condorcet na defesa da cidadania feminina.

Maria Lygia Quartim de Moraes, no Prefácio da edição brasileira do livro “Reivindicação dos direitos da mulher” (Boitempo, 2016) escreveu: “O feminismo iluminista de Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges compartilha da mesma crença na importância da educação e na universalidade de direitos, fazendo eco a Condorcet. É um feminismo que se opõe à escravidão dos africanos e indígenas e à escravidão doméstica” (p. 10).

Artigo de Jeffrey Nall (2008), em artigo bastante esclarecedor, fundamenta porque Condorcet se tornou um feminista, muito antes do feminismo se tornar um dos movimentos mais importantes da modernidade:

Em suma, Condorcet tornou-se feminista por uma combinação de razões que não podem ser separadas umas das outras: primeiro, Condorcet acreditava que a verdade objetiva de que mulheres e homens são iguais intelectualmente, o que ele comprova nas suas relações pessoais com as mulheres; e o princípio de que a liberdade humana individual deve triunfar sobre o triplo terror do arcaico (baseado na autoridade) tradição, preconceito e utilidade. Em segundo lugar, enquanto a utilidade era justificava os direitos políticos das mulheres, o feminismo de Condorcet foi influenciado pela sua crença de que a libertação da mulher promoverá o progresso da sociedade humana. Finalmente, embora não fosse um fator que contribuísse sistematicamente, um dos fatores-chave da postura feminista de Condorcet foi sua paixão pela justiça, o que o levou a colocar suas ideias e conhecimento da igualdade de género em ações concretas destinadas a alterar a composição da sociedade” (p. 62).

Portanto, não cabe a pergunta de onde está falando e de que tempo está falando, quando se trata da defesa de um direito universal. Nem cabe questionar a “apropriação cultural”. O fato é que um homem esclarecido e sensível foi um dos pioneiros fundamentais dos ideais do feminismo moderno. O discurso de Condorcet tem como fundamento a igualdade de gênero, sendo, podendo até mesmo, ser definido como agênero no sentido de que os direitos da pessoa humana são independentes do gênero ou são aplicáveis equitativamente para todos os tipos de gênero.

Ainda segundo Nall (2008): “Para homens e mulheres no século XXI, Condorcet é um monumento às possibilidades de uma vida livre da escravidão dos estereótipos e dos preconceitos. Ele nos lembra que o feminismo não pertence a nenhum gênero, assim como os direitos humanos não pertencem a qualquer gênero; e ele é um farol, convidando todos os seres humanos a abraçarem a totalidade da experiência humana e combater a injustiça e o preconceito com as espadas gêmeas da verdade inspirada na razão e da paixão dirigida pela empatia” (p.66)

No dia 28 de março de 2017, se homenageia os 223 anos da morte de Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat. A melhor forma de lembrar esta data é relembrar a obra de Condorcet e ler o seu pioneirismo texto, de 1790, “Sobre a admissão do direito de cidadania às mulheres” (que pode ser acessado, em inglês, no link abaixo). Como disse Condorcet ao final do texto citado: “Por que privar as mulheres dos direitos de cidadania, em vez de deixá-las a liberdade de exercê-los pessoalmente?”.

Referências:

ALVES, J. E. D. A polêmica Malthus versus Condorcet reavaliada à luz da transição demográfica. Textos para Discussão. Escola Nacional de Ciências Estatísticas, Rio de Janeiro, v. 4, p. 1-56, 2002. http://www.ence.ibge.gov.br/images/ence/doc/publicacoes/textos_para_discussao/texto_4.pdf

Marie-Jean-Antoine-Nicolas Caritat, Marquis de Condorcet, The First Essay on the Political Rights of Women. A Translation of Condorcet’s Essay “Sur l’admission des femmes aux droits de Cité” (On the Admission of Women to the Rights of Citizenship). By Dr. Alice Drysdale Vickery (with preface and remarks) (Letchworth: Garden City Press, 1912).

http://oll.libertyfund.org/titles/condorcet-on-the-admission-of-women-to-the-rights-of-citizenship

Jeffrey Nall. Condorcet’s Legacy Among the Philosophes and the Value of His Feminism for Today’s Man. Essays in the Philosophy of Humanism, volume 16 no. 1, 2008 https://www.academia.edu/167025/_Condorcet_s_Legacy_Among_the_Philosophes_and_the_Value_of_His_Feminism_for_Today_s_Man_

 

José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 27/03/2017

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