Tuberculose: população em situação de pobreza tem um risco três vezes maior de contrair a doença
Tuberculose: uma doença dos pobres
SBMT
Moradores de rua, população carcerária, infectados pelo HIV e população indígena, que em geral vive em uma situação de pobreza e tem um risco três vezes maior de contrair a doença, são os grupos mais suscetíveis de adquirir a doença
A tuberculose é principalmente um problema social: está relacionada com a extrema pobreza e se dissemina com mais facilidade em grandes aglomerações de pessoas, nas quais a luz é escassa e o ar mal circula. No Brasil, as quatro populações mais vulneráveis são: Os moradores de rua, a população carcerária, os infectados pelo HIV e a população indígena, que em geral vive em uma situação de pobreza e tem um risco três vezes maior de contrair a doença. Há outros grupos que também podem ser considerados suscetíveis: a população negra ou parda, que em geral vive em uma situação social pior, corre duas vezes mais o risco de pegar tuberculose do que um branco. E aqueles que estão em condição de pobreza e pobreza extrema e geralmente vivem em favelas.
O Brasil tem trabalhado na prevenção da doença atuando principalmente na proteção social (programas sociais no combate a tuberculose), na inovação e na pesquisa. Apesar dos últimos anos não registrarem mudanças significativas nos indicadores da doença, há clara modificação no cenário político do enfrentamento, no qual se destaca o aparecimento da sociedade civil. De acordo com o Observatório TB, a retomada da participação da sociedade civil organizada é de 2003 com a criação do Fórum ONGs TB RJ. Em 2004, foi lançada a Parceria Brasileira Contra a Tuberculose (Stop TB Brasil), e, em 2009, foi instalado o Observatório Tuberculose Brasil. Mais recentemente se deu a formação da Rede Brasileira dos Comitês de Tuberculose, formando assim o que se pode chamar de movimento nacional de luta contra a tuberculose.
Para falar mais sobre o assunto, a assessoria de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) conversou com o Professor Luis Cuevas, que desde 1985 tem dedicado seu interesse em Epidemiologia Clínica na área de Doenças Tropicais. Ele é membro do European Forum for tuberculosis inovation, European Respiratory Society; Membro fundador do TB Diagnostics Research Forum, National Institute of Health (NIH)/ NIAID e “CoChair”, NIH expert para diagnóstico de TB em crianças. Doutor Cuevas tem vasta experiência em pesquisa na área de epidemiologia, principalmente na implementação de diagnóstico de doenças infecciosas em Países de baixa renda, especialmente em Tuberculose.
SBMT: De acordo com o relatório global sobre tuberculose de 2016 da Organização Mundial de Saúde (OMS), a epidemia é maior do que o estimado anteriormente, com 10,4 milhões de novas infecções em 2015, dos quais 60% foram na Índia, China, Indonésia, Nigéria, Paquistão e África do Sul. A que o senhor atribui esses números tão altos?
Dr. Luis Cuevas: A tuberculose é uma doença da pobreza, que tem sido negligenciada há muitas décadas. As populações mais atingidas geralmente se encontram em locais com difícil acesso a diagnóstico e tratamento e frequentemente procuram o atendimento tardiamente. Quando buscam o serviço, já terão espalhado a doença para outras pessoas por várias semanas. A menos que tornemos os serviços e diagnóstico disponíveis mais rapidamente a essas populações, não seremos capazes de diminuir o número de casos que acontecem onde chamamos de “países de alta carga”. Esses países têm grandes populações, grande incidência de TB ou ambos. Apesar dos grandes avanços das últimas décadas em descentralizar os serviços, a maior parte dos centros de saúde que dispõem de métodos de diagnóstico ainda estão distantes das pessoas que mais precisam deles. A resistência aos medicamentos também tem crescido. A maior causa para esse aumento são serviços de saúde frágeis. Os pacientes que abandonam o tratamento contra a tuberculose são mais propensos a desenvolver resistência aos medicamentos. É por essa razão que países no leste europeu, onde o sistema de saúde foi desorganizado à época do colapso do sistema socialista, a resistência aos medicamentos aumentou drasticamente. Por outro lado, uma alta taxa de resistência aos medicamentos em Nova York (EUA) foi controlada ao se fortalecer o sistema de saúde e acompanhar rigorosamente os pacientes que abandonavam o tratamento. Uma vez que o sistema foi recuperado, a resistência aos medicamentos caiu substancialmente.
SBMT: A tuberculose mata mais de 1,8 milhões de pessoas por ano – mais do que qualquer outra doença – e a resistência aos medicamentos ainda é muito grande em alguns países. Quais são as principais causas da alta incidência e da resistência da doença? No seu entendimento, por que o diagnóstico da tuberculose resistente a drogas ainda é um processo tão lento?
Dr. Luis Cuevas: Diagnosticar micobactéria resistente a medicamentos é quase sempre um processo muito demorado. Métodos fenotípicos requerem culturas de bactérias, que podem levar até dois meses, para posteriormente fazer uma re-cultura na presença dos medicamentos para verificar se há resistência. Nós temos tido grandes avanços nas últimas décadas. Agora temos culturas líquidas, que são mais rápidas que as culturas sólidas anteriores, e podemos usar métodos moleculares para fazer a triagem e identificar resistência à rifampicina em menos de uma hora utilizando Xpert MTB/RIF. Também podemos identificar mutações por resistência a medicamentos de primeira linha utilizando o exame Line Probe e temos avançado na criação de exames para medicamentos de segunda linha utilizando LPAs. O ideal seria um teste rápido/molecular que pudesse identificar resistência à rifampicina e ao INH ao mesmo tempo, e alguns destes testes podem estar a caminho. Contudo, a solução é maior do que melhores métodos de diagnóstico. Um fator importante que atrapalha o diagnóstico de resistência a uma droga é a falta de acesso a alguns destes testes. Diagnóstico molecular só está disponível em laboratórios com boa infraestrutura, e lugares remotos, áreas rurais ou lugares cujos laboratórios tenham estruturas limitadas, precisam encaminhar os pacientes. Além disso, pacientes com resistência a medicamentos são muitas vezes pessoas com maior frequência de problemas sociais. Eles são mais propensos a terem abandonado o tratamento antes, serem dependentes químicos ou alcoólicos ou viverem em situação de rua. A alta prevalência de resistência medicamentosa é o resultado da combinação de sistema de saúde e problemas sociais, e por outro lado, países com sistemas de saúde fortalecidos e programas de apoio social frequentemente tem uma baixa prevalência de resistência a medicamentos.
SBMT: O senhor acredita que lacunas nos testes com subnotificação e subdiagnóstico dos casos constituem grandes desafios atualmente?
Dr. Luis Cuevas: Presumo que sua pergunta se refira ao grande número de casos que não são notificados aos programas nacionais de controle de tuberculose; ou se há um grande número de casos que não são diagnosticados na sociedade. Atualmente se estima em 4 milhões de casos que não são reportados aos programas nacionais. Esse número é muito grande. Hoje nós sabemos que em países como a Nigéria, apenas 15% dos casos são detectados pelos sistemas de saúde e notificados aos programas nacionais de controle. Isso significa que 85% dos casos são despercebidos. Muitos desses casos ‘ausentes’ podem buscar tratamento na rede privada ou talvez até cheguem aos serviços, mas não são notificados por conta de um sistema de vigilância precário. De qualquer modo (ainda há estudos em andamento para melhor compreender isso), esse número ainda é enorme. Não é possível falar sobre eliminação de tuberculose ou mesmo de controle, a menos que mudanças drásticas sejam aplicadas à maneira de se identificar os casos e provocar um forte aumento no acesso ao diagnóstico e tratamento. Essa é uma das nossas prioridades para o controle de tuberculose.
SBMT: Priorizar o controle da tuberculose nos presídios brasileiros – onde o índice da doença é 28 vezes maior que na população em geral – não é apenas essencial para reduzir a incidência entre os encarcerados, mas também na comunidade em geral. O senhor concorda com essa afirmação? Por quê?
Dr. Luis Cuevas: Eu concordo que a tuberculose nas prisões é um grave problema e no Brasil esse número é inaceitavelmente alto. O Brasil deveria desenvolver métodos de rastrear e identificar pessoas com tuberculose no momento da admissão ao presídio para evitar que a doença se espalhe para outros detentos. Eu discordo da sua hipótese de que controlar tuberculose em prisões seja capaz de reduzir significativamente a incidência na comunidade. Basicamente por causa dos números. O número de casos identificados dentro de prisões é muito menor do que o número de casos total na comunidade. É muito mais provável que uma pessoa da comunidade seja infectada a partir de outra pessoa da comunidade do que a partir de um detento. Apesar de ser um direito humano e que detentos tenham o direito ao diagnóstico e tratamento adequados, em termos de controle epidemiológico da infecção, isso não é tão relevante quanto identificar o maior número possível de casos na comunidade.
SBMT: A atual demora no diagnóstico e no tratamento da doença, além de afetar a vida do paciente, ainda põe em risco a de sua família e das pessoas com quem ele convive, já que a doença é transmitida pelo ar. O projeto global conhecido como CRyPTIC (Comprehensive Resistance Prediction for Tuberculosis: an International Consortium) pode ajudar a reverter esse quadro?
Dr. Luis Cuevas: Sua pergunta presume que a maior parte das infecções por tuberculose acontecem após o paciente ser diagnosticado com TB. Infelizmente, não é assim. Nós só testamos os pacientes para tuberculose após apresentarem os sintomas por duas semanas. Isso significa que contatos e familiares estiveram expostos à micobactéria por um bom tempo antes do diagnóstico. Por isso é importante examinar e testar contatos de casos novos, já que alguns podem ter contraído a doença e muitos ainda precisarão se submeter a profilaxia a fim de interromper uma infecção em andamento. O projeto que você citou é uma aliança internacional coordenada pela Oxford, e o consórcio CRyPTIC pretende sequenciar um grande número de amostras para identificar os marcadores genômicos da resistência medicamentosa. Essa informação permitiria que cientistas desenvolvessem métodos de diagnóstico para rapidamente identificar a resistência à droga. Essa informação é muito valiosa e muito requisitada, já que pode reduzir o tempo entre a primeira consulta do paciente e o diagnóstico. Deve-se lembrar que nós só testamos os pacientes duas semanas após o surgimento dos sintomas. Então para reduzir a chance de infecção, nós realmente precisamos focar na testagem precoce, para identificar os pacientes no início da doença. Nós ainda não dispomos desses testes.
SBMT: Ainda de acordo com relatório global sobre tuberculose da OMS, os gastos com a doença caíram quase US $ 2 bilhões (US $ 1,6 bilhões) a menos que os US $ 8,3 bilhões necessários para combater a doença. Essa diferença deverá aumentar para US $ 6 bilhões em 2020 se o financiamento não aumentar. Como o senhor vê isso?
Dr. Luis Cuevas: É verdade que os financiamentos estão diminuindo. Isso é uma tragédia. Isso é o reflexo de uma situação internacional complexa de financiamentos e instituições internacionais que monitoram os investimentos em controle de TB já demonstraram uma tendência de queda nos últimos 3 anos. Existe um cansaço dos doadores, existem muitas prioridades internacionais competindo entre si e uma grande dependência dos programas nacionais de controle em investimento externo. A diminuição no financiamento irá resultar no que já foi a maior lacuna em recursos para pesquisa, que prejudicará a sustentabilidade dos programas e limitará nossa capacidade de alcançar os objetivos em TB estabelecidos pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Essa solução não é simples e devemos destacar as lacunas em financiamento que estamos encarando, a importância da pesquisa e desenvolvimento para controlar TB, e que TB não é um problema prestes a ser resolvido. Eu espero que vocês possam aumentar essa conscientização.
SBMT: Em sua opinião, como a comunidade científica mundial pode contribuir para melhorar a situação da TB?
Dr. Luis Cuevas: Ainda precisamos de diagnósticos melhores. Sem métodos de diagnóstico apropriados não será possível ter confiança nos resultados e oferecer tratamento apenas àqueles que precisam, além de ainda não percebermos muitos pacientes. Nós precisamos de métodos de diagnóstico que possam ser usados em crianças, pessoas com imunossupressão e em idosos; testes que funcionem em todas as amostras, não apenas em expectoração, e testes que possam ser aplicados no local de atendimento, onde a maioria das pessoas buscam os serviços. Também precisamos de tratamentos melhores. Atualmente se a infecção é devida a uma micobactéria sensível à droga, o tratamento ‘rápido’ ainda dura 6 meses. Se o paciente for infectado por uma micobactéria resistente à droga, o tratamento é muito mais caro e dura um tempo muito maior, frequentemente exigindo drogas injetáveis e que provocam mais efeitos colaterais. A resistência às drogas também está aumentando. Então precisamos de drogas novas e melhores, que sejam eficazes, que exijam um tempo de terapia menor e que possam tratar pacientes com tuberculose multirresistente. Também precisamos de vacinas. Essa é uma infecção que se espalha com facilidade dentro das residências e a contatos próximos através das vias aéreas. Na maioria dos países industrializados, a incidência de tuberculose caiu à medida em que as condições de moradia melhoraram. Contudo, isso é um objetivo de longo prazo e a única maneira de reduzir a incidência no curto ou médio prazo é através das vacinas. Um dia, com boa alimentação, menos superlotação e melhor circulação de ar, a incidência da tuberculose vai cair. Isso aconteceu em países industrializados da Europa após a II Guerra Mundial, ainda antes do tratamento para tuberculose existir. Até que isso aconteça, como é um objetivo de longo prazo, nós precisamos de outras maneiras de prevenir as infecções. As vacinas disponíveis hoje tem eficácia limitada, já que só previnem a forma mais severa da doença. Nós precisamos de vacinas que funcionem em crianças e que previnam todas as formas da doença. Também precisamos de mais pesquisas para desenvolver novos métodos de localizar e tratar casos de tuberculose; mecanismos que apoiem os pacientes em tratamento para garantir que tenham acesso contínuo aos serviços. Então, precisamos de pesquisa nos sistemas de saúde, em como aumentar o alcance desses sistemas, de modo a tornar os serviços acessíveis a toda a população, torná-los amistosos, justos e focados no paciente, independentemente de sua capacidade de pagar. Esses são os principais tópicos de uma grande agenda de pesquisa, então a comunidade científica tem um longo trabalho pela frente.
SBMT: E a sociedade civil, o que pode fazer? Recente matéria publicada no jornal The Guardian fala que seria fundamental mais pessoas falando sobre a doença, um movimento da sociedade civil comparável ao HIV. O senhor entende ser está uma ação que traria resultados?
Dr. Luis Cuevas: Eu concordo com sua pergunta. Se tivermos mais pessoas empenhadas, a sociedade civil pode gerar uma pressão importante pela mudança; Apesar de muitos de nós acreditarem que a tuberculose deve ser uma prioridade e que isso deva estar em primeiro plano para políticos e decisores, infelizmente esse não é o caso. Tuberculose é frequentemente negligenciada por decisores e tem uma prioridade muito menor. Muitos políticos europeus tinham a impressão de que a tuberculose era um problema do passado. Eu também participei de debates com membros do parlamento nigeriano sobre a dificuldade de financiar a tuberculose. Muitos deles disseram “se eu fizer uma lista das minhas 10 prioridades, não terá tuberculose nela. Teria segurança, educação, infraestrutura, emprego, estradas, polícia, etc. antes de tuberculose”. Então a pergunta é: como aumentar o perfil da tuberculose? Essa é uma das doenças que mata um grande número de adultos, que não se pode diagnosticar em crianças e que temos métodos de diagnóstico e tratamento limitados para controlar. Então isso não é um problema apenas para a comunidade científica e para programas de controle de doenças. É um problema que afeta a todos nós. Pergunte à sua família e ficará surpreso. Muito provavelmente algum dos seus antepassados morreu de tuberculose, assim como aconteceu com meus bisavós. Pergunte a seus amigos se conhecem alguém com tuberculose. Pergunte ao seu vizinho, se alguém na família dele já teve tuberculose. De fato, rapidamente você vai perceber que essa é uma doença que mantemos em segredo, que nos envergonhamos de ter tuberculose, e que ainda tememos o estigma. Tentamos não contar aos vizinhos. Desse modo, a sociedade civil pode desempenhar um papel importantíssimo ao pressionar, defender e transmitir um recado forte e claro. Nós precisamos aumentar a importância dessa doença juntos.
Fonte: Sociedade Brasileira de Medicina Tropical
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 16/03/2017
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