Nação fragmentada, artigo de Amadeu Roberto Garrido de Paula
… fácil é a descida aos infernos;
noite e dia o portão do deus sombrio está
aberto; mas o retorno aos ares luminosos
do céu se faz por caminhos cheios de
provações.
VIRGÍLIO. Eneida, livro IV, 126-129
[EcoDebate] O ano que se encerra imergiu no mal absoluto a nação brasileira. Foi um verdadeiro “descensus ad inferos” (a descida aos infernos). O bem esteve na participação popular, nas saídas às ruas, o que sempre oxigena um povo sufocado. O mal enodoou esse bem, contudo, na medida em que a agulha da bússola oscilou em direção a todos os pontos cardeais. A nação perdeu seu centro e a noção de sua totalidade, assim como se dá com o pobre humano, ao descambar à neurose, à esquizofrenia e aos demais transtornos. Só o resgate do centro e da completude traz a cura.
A razão nacional busca com intensidade a luz superior. A irracionalidade se rende a ideologias obtusas ou a rompantes irresponsáveis como apelos a militares. A superioridade, felizmente, por ora, ainda é da razão. Sua busca, porém, é multifacética, contraditória, clama por um consenso mínimo. Este não vem, sobretudo, por interesses corporativos da “classe política” dominante do Congresso Nacional. Neste preponderam interesses majoritários das respectivas corporações, não a vontade de uma grande nação.
Ao vir à luz o mais importante fato da história brasileira após o fim da escravatura – o plano real – vozes de muitos economistas de proa ecoaram no sentido de que a promissora experiência monetária dependia de um conjunto de reformas: política, administrativa, tributária, fiscal, trabalhista, judiciária, uma completude para resgatar-se a totalidade perdida e que já trilhava um dos ásperos caminhos lembrados pelo poeta.
Nenhuma das reformas foi feita, ao logo de todos os governos. Contribuições não faltaram, assim como não faltaram gavetas para arquivá-las ou cestos de lixo. O Congresso Nacional passou enorme tempo em profunda letargia, satisfeito em aprovar medidas provisórias e nelas acrescentar medidas malandras e desonestas (jabutis). O despertar das ruas não comoveu os Poderes. O despertar da história humana é muito mais complexo que a resiliência individual.
Por consequência, permanecemos com um direito tributário inimigo dos empreendedores, dada sua dispensável complexidade. Sua longa mão é o Fisco, instituição composta de robôs, ignorantes da Constituição, empunhando sob “portarias” lâminas contra os contribuintes. Foram buscar seu símbolo na alquimia primava do caos: um leão. A amizade entre governantes e povo só se dá nos momentos analgésicos das eleições. Vão-se eleitores às urnas, esquecidos de injustiças que os dilaceraram.
Administração pública letárgica e desconexa. Lei de licitações (8.666/93) anacrônica. Nunca houve intenção do Executivo e Legislativo de alterá-la, pois servia, e muito bem, à inominável prática da corrupção que se generalizou. Ainda assim, importunava, a ponto de ser flexibilizada pelo astuto “Regime Diferenciado de Contratações” (RDC-Lei 12.462, de 5/8/2011), que se espraiou.
Máquina pública inchada e corrompida. A obra que a empresa privada tira de letra se converte numa grandiosa pantomima no interior do Estado, em seu planejamento. Na execução vem o fracasso. Vide a Transnordestina. Outrora foi a Transamazônica (para quem delira com os militares).
Administração sem metas obrigatórias. Estabilidade “pereat mundus” (ainda que o mundo pereça). Desmotivação, dada a incoincidência de propósitos entre o servidor que sonha com a novela das nove e o cidadão que pretende adiantar as soluções de seus problemas. Não há desenvolvimento possível por meio dessas instituições, cujas funções são ainda mais entorpecidas com a falta de dinheiro das administrações e os baixos vencimentos.
Reforma política que, se real, começa com a dissolução da “classe política”, mediante proibição de mais de uma reeleição em todos os níveis. Jamais. Nossos ilustres representantes da vontade popular só deixam a vidinha se cassados ou encarcerados. E o mais: voto distrital misto e “recall”. Impossível, a menos que esses cidadãos concordem em tirar a nação do inferno.
Reforma trabalhista, que é possível sem malbaratar direitos. Desde que se entenda flexibilização como modelos diversos, para as grandes, médias e pequenas empresas. Incentivos para o crescimento, entre os trabalhadores destas últimas, podem identificar interesses patronais e de seus colaboradores.
Reforma judiciária, num País em que sua Suprema Corte se transformou no palco dos “onze iluminados” – que tem certeza de sua divindade – à exceção de ambas as ilustres mulheres que o compõem. A todo instante pretendendo ditar os rumos nacionais, inclusive por decisões “monocráticas” – uma excrescência em órgãos essencialmente colegiados. Mandatos de dez anos, reformulação do modo de escolha e nomeação e paridade entre homens e mulheres. Há projeto de emenda constitucional em tal direção, que, neste momento, obviamente jamais será pautado.
Não há como superar sem muita luta exauriente a crise infernal que se abateu sobre nós. As unilateralidades ideológicas são equivocadas. Culpar a Previdência Social por tudo, além de importar em pífia interpretação dos acontecimentos, é seguir modelos mundiais que só geraram convulsões sociais.
O grande problema está em termos uma governança que siga o mantra do mestre dos versos, citado acima, que deu às mãos a Dante no inferno: “Feliz aquele que conseguiu compreender as causas das coisas”.
Amadeu Roberto Garrido de Paula, é advogado e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.
in EcoDebate, 30/12/2016
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Parabéns ao articulista! Muito bom seu texto. Traduz a situação agoniante em que nos encontramos, nas mãos de tiranos corruptos, incompetentes, desinteressados do bem estar geral. Isso ocorrendo em todos os níveis de administração.
O Pais tem de vencer enormes resistências. Muito difícil!
Uma análise muito lúcida e pertinente da nossa conjuntura
É inútil esperar que o proprio regime capitalista corrija sua maneira de operar. Se isso viesse a acontecer o capitalismo haveria se transformado em Socialismo, e isso, tenham plena convicção, ele jamais fará, pois significaria seu suicídio. Afinal, são mais de duzentos países se decladiando e tentando arrancar vantagens uns dos outros.
Pior do que “Nação Fragmentada” é planeta Terra fragmentada.
Esse ‘arranjo’ a que se chegou, em que o planeta Terra foi “fragmentado” em mais de duzentos países, cada um cuidando de seus próprios interesses, jamais poderia levar a bom termo.
Gostei muito do artigo, mas o considero incompleto por passar ao largo da causa imediata dessa conjuntura nefasta, que é a manipulação da nossas políticas interna e externa pelo capital externo, sobretudo o ianque, de forma muito bem descrita em “Blowback”, do cientista ianque Chalmers Johnson. Quando recorremos aos agiotas do FMI, ou do Banco Mundial, o pré-requisito é entregar as rédeas da nossa economia a eles. Logo de cara nos impõem câmbio flutuante, elevando o valor da nossa moeda para passarmos a importar e a não exportar. Sem entrar divisas, precisamos de mais e mais empréstimos. Também os juros têm taxas flutuantes, à conveniência dos credores. Até o fabrico de nossas moedas passa a ser deles, pra não haver inflação ou inadimplência. Também contigenciam parte do nosso orçamento (agora é de 46,5%!) para o pagamento do serviço da dívida mais amortização. E vão deixando atrás de si um rastro de miséria mundo afora, garantindo mão de obra e matéria-prima baratas para eles, donos do mundo. Veja o caso recente da Indonésia, afundada na miséria.