O fetiche da previdência, artigo de Amadeu Roberto Garrido de Paula
[EcoDebate] O cidadão tende a confiar, em princípio, no discurso de seus governos legítimos. Por seu lado, os governos não podem e não devem mentir aos cidadãos. Lamentavelmente, o Brasil é um país de confiança fundada do povo e de escancaradas mentiras de seus governantes, num terreno de difícil acesso à compreensão da maioria da população – finanças públicas.
Há anos o Brasil vive sob grosseira inconstitucionalidade. O dispositivo nevrálgico, porém maltratado, está no art. 167 de nossa Constituição da República, ao dispor: “É vedado: XI – a utilização de recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, I, a, e II, para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201.” O art. 201 discrimina os benefícios.
Os mencionados recursos estão previstos no art. 195, nestes termos: “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, e das seguintes contribuições sociais”.
I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada, na forma da lei, incidente sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro.
II. do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidos pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;
III. sobre a receita de concurso de prognósticos.
Nada mais claro. Contudo, desde 1994 esses recursos estão sendo desviados por sucessivos governos, supostamente para pagamento dos juros da dívida da União. Supostamente porque, no Brasil de hoje, não sabemos aonde vão parar os desvios. No referido ano, foi criada o Fundo Social de Emergência. Depois passou-se à Desvinculação de Receitas Federais. Finalmente, por força da Emenda Constitucional n. 68, Desvinculação das Receitas Federais (DRU). Consequência: no final de 2015, dos 1,8 trilhão arrecadas pelo Tesouro por meio dessas receitas vinculadas, 1,1 trilhão foram apropriados pela União.
Os governos, inclusive o atual, sempre sustentaram a constitucionalidade desse procedimento incorreto, jurídica e moralmente, socorrendo-se da Emenda Constitucional n. 68, que deslocou 20% dos recolhimentos de seu caminho reto. Ocorre que Emenda Constitucional também pode ser inconstitucional, sendo entendimentos de Cortes Supremas internacionais e de nosso Supremo Tribunal Federal.
Feita essa consideração, ao lado de outras, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais do Brasil divulgou um quadro, com dados irrespondíveis, demonstrativo de que a Previdência não gera nenhum “deficit”, inclusive para o pagamento de aposentadorias, mas, ao contrário, produz “superavit”. Se considerarmos falsas as demonstrações dos Auditores Fiscais, a República, efetivamente, está perdida.
O que nos leva a por de manifesto essa situação crônica é o sentimento, que o governo dissemina na sociedade, de que o grande vilão de nossas desgraças é a Previdência Social. Como se renúncia fiscal para indústrias automobilísticas não houvesse nos empobrecido, com carros na porta e em ruas intransitáveis. Várias outras isenções e imunidades foram concedidas, especialmente por meio de emendas “jabutis” contrabandeadas em leis de conversão em medida provisória, até que o STF as proibiu, porém somente “ad futurum”, em ação direta de inconstitucionalidade subscrita pelo autor destas modestas linhas.
Enfim, nossos trabalhadores vão pagar a corrupção, as irresponsabilidades e as bandalheiras, mais uma vez em nossa sofrida história. No mínimo, deveriam vir à luz todas essas circunstâncias e não ficar-se no discurso único e equivocado de que o “saneamento” da Previdência Social saneará o Brasil. Entretanto, a divulgação da demonstração feita pelos Auditores Fiscais do Brasil permanece somente nas redes sociais, como se fosse algo impatriótico.
Amadeu Roberto Garrido de Paula, é advogado e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.
in EcoDebate, 22/12/2016
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