Chapecoense e consciência humana, artigo de Amadeu Roberto Garrido de Paula
[EcoDebate] O homem tem consciência, é dizer, percebe quais são os efeitos dos atos da humanidade e de seus próprios. É o que o distingue de seus companheiros do reino animal. No entanto, essa consciência, em geral, não aflora imediatamente ao limiar da psique. Muitos fatos negativos se sucedem e suas consequências são aceitas com banalidade. O mal, assim, persevera.
É preciso que um evento de forte impacto, não raro, seja a chama que desperta a consciência.
Assim aconteceu com o triste, dolorido para os brasileiros e mesmo para estrangeiros, acidente aeronáutico que envolveu o bravo time do Chapecoense e sua comitiva. Algo que, aparentemente, não se justifica ante um Deus benevolente, que nos fez para sermos felizes. Mas é preciso atentar aos dizeres do crucificado: “os desígnios de meu pai são inescrutáveis”. Com efeito, nossa vida está envolta numa camada cinzenta e misteriosa, que nos impede de compreender o sentido último do mundo e da vida. Daí a filosofia, a teologia, a psicologia. Talvez nossa juventude histórica ainda nos impeça de maior clarividência; talvez deva ser assim até o final dos tempos.
O que há de certo é que não caminhamos como cegos. Deus nos concedeu o livre arbítrio, que é direito e responsabilidade. Direito de refletir e produzir coisas maravilhosas. Responsabilidade porque, se não refletimos, corremos o sério risco de sair perdedores. As forças naturais não perdoam agravos e respondem de modo implacável.
Foi necessário o desastre da Chapecoense para que até mesmo as torcidas organizadas, tão renitentes, começassem a falar em paz no futebol. Vejamos até onde vai a chama do conhecimento e sentimento da verdade, depois de reiterados crimes perpetrados por rivalidades irracionais. Quiçá despertasse, também, não só a paz no futebol, mas na vida, em todas as relações humanas. No Brasil, lesões corporais e homicídios praticados por motivos fúteis e torpes são constantes, a exemplo de desentendimentos domésticos e latrocínios. Passamos por uma séria crise política e institucional, mas a turbulência subjacente entre o povo é produto de nuvens muito mais carregadas.
Que o lamentável exemplo fique como alerta de que o homem é animal social, que não sobrevive fora da sociedade. Todos executam suas funções e todos são interdependentes. Assim, a morte inesperada ou acidental de um ser humano desloca um dos pontos de equilíbrio da vida. Tornou-se claro, ainda, que os atletas não são máquinas robotizadas, mas pessoas de carne e osso, que merecem todo respeito, ainda que seu desempenho em campo não seja o melhor. As torcidas tem todo o direito de pedir uma substituição, mas sem esquecer que tratam com seres humanos, seus problemas sociais, suas angústias, suas frustrações, suas perdas e assim por diante. O futebol foi tão mecanizado que muitos treinadores não falam em mudanças de atletas; aludem, insanamente, a “reposição de peças”.
Os estádios já mudaram seus nomes para “arenas”, onde forcejavam gladiadores em confrontos até a morte ou extremo exaurimento, com degradação física irreversível, num momento de engatinhamento da medicina, sob os aplausos da massa extática. Arenas de feras.
O acidente que abalou o Brasil escancarou o lado humano. Esperemos que não seja um sentimento efêmero.
As mortes no Brasil são banalizadas, principalmente nas “arenas” urbanas. Fiquemos no trânsito, para não abordar coisas piores, que produzem mortes diuturnas. São motociclistas que arriscam suas vidas, por irresponsabilidade ou pela avidez de entregar um papel, muitas vezes irrelevantes, em atividade cercada de cegas competições entre empresas. São ônibus que ralam pedestres, como se fossem pedras a serem afastadas do caminho.
Se o impacto dos chapecoenses sobre as consciências trouxer um mínimo de clarividência a nosso povo, poderemos dizer que as mortes não foram absolutamente vãs; devem ser choradas eternamente, até porque foram antinaturais e plenamente evitáveis, porém, no ainda desconhecido movimento cósmico, terão deixado uma terrível mensagem.
Amadeu Roberto Garrido de Paula, é advogado e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.
in EcoDebate, 09/12/2016
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