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UTI ambiental: programa Novo Chico para o Velho Chico, artigo de Osvaldo Ferreira Valente

 

Setores como a agricultura, a navegação e a pesca têm sofrido prejuízos com a queda do nível do Rio São Francisco (Fábio Pozzebom/Agência Brasil)
Setores como a agricultura, a navegação e a pesca têm sofrido prejuízos com a queda do nível do Rio São Francisco (Fábio Pozzebom/Agência Brasil)

 

[EcoDebate] A série ‘UTI ambiental’ já estava ficando esquecida aqui no Portal do EcoDebate, mas garanto que não está desativada e reaparecerá sempre que necessário para enquadrar algum assunto, como no presente, em que o paciente já anda internado há muito tempo e permanece em estado crítico. Trata-se do nosso Rio São Francisco, que por estar vendo as veias (cursos d’água formadores) do seu corpo (bacia hidrográfica) secando, corre sério risco de morte cerebral. Mas vamos lá para a intercorrência mais recente.

Foi lançado pelo governo federal, no dia dez de agosto próximo passado, o Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, com nome de fantasia de Novo Chico. É mais do que evidente e urgente uma ação propositiva para recuperar a capacidade de produção de água do Rio São Francisco. Por isso a iniciativa deveria estar sendo comemorada com entusiasmo se não ficasse aquela pulguinha enjoada atrás da minha orelha. Ela não produz coceira, mas é muito falante e vive fazendo reflexões. Sobre o Novo Chico, lá vem ela:

Primeiro, diz que anda muito desconfiada dessa mania brasileira de lançar programas em sequência, visando resolver um determinado problema. Aí o programa não dá em nada e o fracasso é resolvido com outra proposta, com outro apelido. Digo a ela que há um novo governo e que precisamos torcer para que as coisas estejam modificadas e ela prefere ficar muda; com certeza está pagando para ver. Confesso que também estou.

Numa segunda reflexão, vem uma análise dos recursos colocados no programa e que são da ordem de 1,162 bilhão de reais. Desses, segundo informações passadas no dia do lançamento, cerca de 900 milhões vão para abastecimento de água e tratamento de resíduos (esgotos, principalmente), devendo contemplar 55 municípios, de um total de 521. Restarão, portanto, em torno de 260 milhões para combate a erosão, recuperação de áreas degradadas, modernização de irrigação e conservação de nascentes. Tudo bem que qualidade e abastecimento de água são operações importantes, mas precedendo isso está a necessidade de haver quantidade suficiente de água escoando pelos córregos, ribeirões e rios que drenam a bacia do São Francisco. E o principal problema, hoje, são as baixas vazões desses cursos d’água. Por isso, a pulguinha continua invocada e estranhando a distribuição dos recursos.

Na terceira reflexão, ela vem cobrar uma mudança de conceitos. Por que não falar em aumento de infiltração de água no solo em lugar de controle de erosão? Controlar a erosão superficial, aquela que estamos vendo através das enxurradas, não é garantia de abastecimento de aquíferos subterrâneos. O escoamento superficial (enxurrada) pode estar sendo substituído pelo escoamento subsuperficial, seu parente próximo, mas nada amigo dos aquíferos. E vale ressaltar que quando as autoridades do Novo Chico falam em conservação de nascentes, elas só podem estar propondo um maior armazenamento de água de chuva nos reservatórios subterrâneos, pelo fenômeno da infiltração. Por que, então, a infiltração é sempre esquecida? O erro está em tratar o tema com a visão de conservação de solos, de interesse agrícola, em vez de usar a visão hidrológica, de interesse da produção de água da bacia hidrográfica. Falta, na verdade, o domínio do conceito de hidrologia de pequenas bacias hidrográficas.

E a pulguinha não perde detalhes, vindo com a quarta reflexão. Ela não achou graça nenhuma na provocação feita pelo Presidente Michel Temer, por ocasião do lançamento do Novo Chico, quando ele fez um convite aos Ministros e outras autoridades presentes para, quem sabe, numa ocasião propícia, todos fossem plantar árvores em torno do rio. O convite do Presidente ajuda a vender a falsa ideia de que o rio é produto de suas margens, o que já está se tornando erro recorrente na abordagem do assunto. Os rios são produtos de suas bacias hidrográficas e as margens protegidas, de acordo com o Código Florestal em vigor, e que devem ter inspirado a fala do Presidente, representam não mais do que 10% das respectivas áreas drenadas, nas regiões brasileiras com maiores demandas de água. Não podem, portanto, e por limitações físicas, serem as salvadoras da pátria, ou do Velho Chico, melhor dizendo. Leitores que já tiveram a paciência de ler outros artigos meus, publicados aqui mesmo no EcoDebate, devem ter percebido a minha renitência em condenar a visão de rio e a insistência em propagar a necessidade de dar a devida importância à bacia hidrográfica. Peço desculpas antecipadas, mas vou continuar batendo nessa tecla até que o seu som acabe acordando de vez as pessoas e as entidades responsáveis pela conservação de nossos recursos hídricos.

Vamos torcer para que a pulguinha esteja errada desta vez e pare de tagarelar quando perceber que o Novo Chico foi executado e venceu o estigma de mera propaganda de governo.

Osvaldo Ferreira Valente é também engenheiro florestal e autor de dois livros sobre hidrologia e produção de água: “Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas”e “Das chuvas às torneiras – A água nossa de cada dia”. ( valente.osvaldo@gmail.com)

 

in EcoDebate, 25/08/2016

[cite]

 

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One thought on “UTI ambiental: programa Novo Chico para o Velho Chico, artigo de Osvaldo Ferreira Valente

  • Ricardo Ramalho

    O artigo é lapidar, sobretudo, pela abordagem que escapa do lugar comum de discursos primários, baseados em aspectos pontuais da crise hídrica e, em especial, do Velho Chico que é, nitidamente de gradativa diminuição da vazão volumétrica de suas águas. Absolutamente, contraditório a essa soberba constatação, o Programa Novo Chico destina quase 80% de seus recursos em investimentos que retirarão mais água do rio para abastecimento humano, além do saneamento básico. Por mais humanitárias e meritórias que sejam as ações nessa área, em nada contribuirão para aumentar o volume de água. Apesar de não acessarmos os detalhes do programa, muito provavelmente, as demais ações se fixarão à tentativa de recomposição das matas ciliares da calha do rio, com sua margens ocupadas por atividades agropecuárias produtivas ao longo de décadas, com sérias dificuldades práticas de reordenamento. Também, certamente, destinará recursos às recuperações de nascentes, limitadas ao seu mais ínfimo entorno, de alguns metros. Como se as nascentes não fossem simples escoadouros, torneiras naturais dos aquíferos, continua e intensamente privados da realimentação pela infiltração das águas das chuvas. Para barrar esse processo, somente, um vasto programa de conservação do solo e da água na bacia hidrográfica, aliado a uma série de outras medidas que protejam os recursos naturais, promoverá a desejada e premente revitalização do São Francisco. Sem pregar o pessimismo, mas, calcado no realismo prático de que presencia a decadência e morte do Velho Chico, o Novo Chico pouco representa para sua revitalização.

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