Produção orgânica, reforma agrária e preservação florestal: a história do sítio A Boa Terra, Parte 2/3, artigo de Roberto Naime
[EcoDebate] Em meados dos anos 1970, o grande sucesso no cultivo de flores não impedia que as pessoas estivessem atentas às transformações que o mundo vinha sofrendo.
Com sensibilidade raramente cultivada entre empreendedores de sucesso, perceberam que sua acelerada prosperidade tinha consequências sociais visíveis, que implicava concentração de terras e de renda.
Essa percepção tinha ressonâncias de outra discussão que surgia naquele momento, relacionando as questões econômica e ecológica. Um marco deste debate foi a reunião ocorrida na Itália que produziu a Carta de Roma, na qual se afirmava que os recursos naturais do planeta são finitos, das riquezas minerais à água, e que não se podia crescer indefinidamente.
“Small is Beautiful: Economics as if People Mattered (traduzido no Brasil como “O negócio é ser pequeno”, do economista alemão Ernst Friedrich Schumacher), sucesso internacional na época, foi revelador”, relembra o holandês Joop.
“Aliás, retomei esse livro no mês passado e acho que continua fazendo todo sentido.” Foi aí que, juntamente com uma irmã de Tini e uma irmã de Joop, com seus respectivos maridos, amadureceram a idéia de se formar uma comunidade para trabalhar coletivamente e ampliar os benefícios do uso da terra, que é um bem de todos.
“Quando chegamos, a terra já estava aqui. Quando todos partirmos, a terra seguirá aqui também. O pó de tudo o que existe está aqui, tudo retorna à terra e a terra sobreviverá por muito tempo quando nós também voltarmos a ser pó” afirmam eles.
Numa pequena clareira, sentados em roda, cada um com um copo d’água, um punhado de terra e alguns grãos de feijão, Tini percorre o círculo com o olhar, enquanto toma a palavra com terra nas mãos.
“Se pegarmos a terra, podem pegar, não é sujeira. A terra tem muitos segredos a revelar. Em cada centímetro cúbico há milhões de micro-organismos que são responsáveis por mantê-la viva, fértil. Os adubos químicos matam parte desses micro-organismos; já o adubo orgânico é apenas o retorno à terra daquilo que um dia já foi terra.”
Ela apanhou algumas sementes. “Vejam agora essas sementes, cada uma tem seu próprio rosto. Esta pedrinha, quando é depositada no colo da mãe terra, vai viver, vai mostrar que traz em si a força de perseverar, de buscar a luz do sol. E crescerá para fora e para dentro da terra, desenvolvendo sua potência de ser. Como uma cenoura, que cresce enterrada na escuridão da terra mas tem a cor do sol.”
“Como as sementes chegaram até nós? Por séculos e séculos, lavradores colheram e replantaram, escolheram e cuidaram da terra, das plantas e das sementes. É preciso reproduzir este ciclo.
Transformações sutis foram acontecendo ao longo dos séculos e séculos, com uma complexidade que está além de nossa capacidade de compreensão. Os transgênicos interrompem esse processo natural.”
Citou então o pesquisador Jeffrey M. Smith, que reuniu em Roleta Genética casos cientificamente comprovados de malefícios causados por transgênicos. “Devemos rezar pelos cultivadores das sementes crioulas, pois são eles que garantirão o futuro de nosso alimento.”
Tini segurou o copo d’água. “Somos 70% água, água em movimento. A que agora está em nosso corpo logo poderá estar naquele córrego, numa nuvem ou irrigando uma plantação. Poluir a água é poluir o nosso corpo, não há separação. Tudo está em tudo”, continuou.
“A substância que nos forma é a que está na terra e que vem até nós com o alimento e a água. Introduzir veneno em qualquer etapa desse ciclo significa envenenar o sistema do qual nós, assim como nossos filhos e filhas, netos e netas, fazemos parte.”
O principal motivador do Sítio A Boa Terra, no primeiro momento, foi social. A questão ecológica foi ganhando força ao longo da história. Com terras doadas pela Terra Viva, empresa da família de Tini da qual Joop tornara-se sócio, em janeiro de 1981 nascia oficialmente o projeto.
“Fizemos a experiência de uma pequena reforma agrária com 60 famílias de trabalhadores, os chamados bóias-frias na época, gente que passa de uma colheita à outra.
Cada família cultivava um hectare, sobretudo com arroz e feijão, além de horta”, explica Tini. “O cultivo e a colheita eram separados, mas 10% do rendimento era colocado em um fundo gerido coletivamente, com o qual conseguiram comprar um tratorzinho, algumas máquinas”, conta Joop.
Júlio trabalha hoje na área administrativa do Sítio A Boa Terra e era ainda muito novo quando se formou a ATRAI (Associação dos Trabalhadores Rurais de Itobi). Mas recorda-se bem de como seu pai e irmão mais velho se envolveram no projeto. “O mais importante, na época, era a tranquilidade de produzir o arroz e o feijão da família. De novembro a fevereiro não tem trabalho, então pelo menos o básico estava garantido” afirma ele.
Com os cultivos em andamento, outra demanda mobilizou a comunidade. Um grupo de pouco mais de 100 famílias se organizou no movimento dos Sem Casa com o intuito de planejar e construir, em sistema de mutirão, um novo bairro no local.
Durante quase um ano, todas as noites e finais de semana se reuniam para trabalhar na construção de 107 casas, ocupadas somente quando todas ficaram prontas.
Contudo, com a queda no preço do arroz e do feijão o projeto foi se esvaziando. Restaram as casas, onde as famílias vivem até hoje. Parte das pessoas foi incorporada ao trabalho no Sítio, outras se empregaram numa fazenda da Terra Viva na região. “Foram mais de dez anos vividos intensamente, com muita alegria, por todas essas pessoas. Sem dúvida, a maioria passou a viver melhor”, assegura Tini.
Referência: MST
Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.
Sugestão de leitura: Celebração da vida [EBook Kindle], por Roberto Naime, na Amazon.
in EcoDebate, 27/07/2016
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Obrigado pelo compartilhamento, apreciei muito o artigo.
Grande abs…
RNaime
Rachel Carson disse, em seu livro mais famoso, “o homem é parte da Natureza e sua guerra contra a natureza é inevitavelmente uma guerra contra si mesmo”.