A reprimarização da economia brasileira e a PEC 65: um retrocesso que nos leva de volta à década de 1970
A reprimarização da economia brasileira e a PEC 65: um retrocesso que nos leva de volta à década de 1970. Entrevista especial com Eduardo Luis Ruppenthal
“Esse é um momento difícil pelo qual o país está passando e pode significar um profundo retrocesso em várias conquistas constitucionais, avanços sociais e ambientais desde o processo de redemocratização brasileira”, denuncia o biólogo.
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Se aprovada, a Proposta de Emenda à Constituição – PEC 65 irá “afetar” a atual legislação de licenciamento ambiental brasileira, ao permitir que obras sejam realizadas “apenas com a apresentação de estudos iniciais pela própria empresa, sem o cumprimento das demais etapas”, adverte Eduardo Ruppenthal à IHU On-Line.
Atualmente, o licenciamento ambiental é determinado em três etapas: a Licença Prévia – PL, a Licença de Instalação – LI e, por fim, a Licença de Operação – OP, mas “a PEC 65 propõe a extinção das duas últimas etapas, eliminando uma série de prerrogativas fundamentais e importantes no que diz respeito a direitos ambientais e sociais, principalmente daqueles que são atingidos pela obra”, explica.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail,Ruppenthal frisa que a PEC 65 está inserida num “contexto mais amplo, do atual modelo brasileiro de uso, exploração e exportação dos recursos naturais, formado principalmente pelo tripé agro-hidro-mineronegócio, que não aceita ser regulado e não quer abrir mão de sua lucratividade máxima”. A alteração na legislação, pontua, faz parte da proposta brasileira de continuar investindo no modelo agroexportador e visa “facilitar o escoamento dos recursos energéticos e as commodities agrícolas e minerais, diminuindo os custos operacionais, ajustando a nossa economia aos interesses do mercado globalizado e às empresas transnacionais”.
Eduardo Ruppenthal também lembra que a “corrupção está inerente” às propostas de alteração da legislação ambiental brasileira e à realização de megaobras, como aconteceu durante o Regime Militar, com a construção da hidrelétrica de Itaipu e a construção da Transamazônica, e como ainda acontece nos dias de hoje, com a construção de Belo Monte. “Além da convergência da visão de desenvolvimento entre os governos e o setor privado, há uma relação mais promíscua que sempre foi denunciada, mas agora está sendo elucidada com a Operação Lava Jato, embora antes não fossem poucas as notícias e denúncias sobre favorecimentos às grandes empreiteiras e outras empresas subsidiárias de insumos, como ferro, cimento e equipamentos elétricos”, conclui.
Eduardo Luis Ruppenthal é biólogo e mestre em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente é professor da rede pública estadual.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que implicações vê na Proposta de Emenda Constitucional – PEC 65/2012, de autoria do senador Acir Gurgacz (PDT/RO), segundo a qual nenhuma obra poderá mais ser suspensa ou cancelada a partir da mera apresentação do Estudo de Impacto Ambiental – EIA?
Eduardo Luis Ruppenthal – A PEC 65 se insere em um conjunto de iniciativas que visam à flexibilização do licenciamento ambiental brasileiro. A PEC 65 destrói com o licenciamento, representa um retrocesso de décadas. Mas por que estas propostas? É importante entender que isso está dentro de um contexto mais amplo, do atual modelo brasileiro de uso, exploração e exportação dos recursos naturais, formado principalmente pelo tripé agro-hidro-mineronegócio, que não aceita ser regulado e não quer abrir mão de sua lucratividade máxima. Aliás, esses grandes empreendimentos desse tripé são construídos basicamente com as funções primordiais de facilitar o escoamento dos recursos energéticos e as commodities agrícolas e minerais, diminuindo os custos operacionais (“a tal da competitividade”), ajustando a nossa economia aos interesses do mercado globalizado e às empresas transnacionais.
Brasil: o fornecedor de matéria-prima
No contexto da divisão internacional do trabalho, essas obras reforçam nosso velho papel de fornecedor de matéria-prima e isso fica evidente com a reprimarização da economia brasileira na última década. Essas obras gigantescas ditas de “interesse público ou nacional” estão orquestradas em projetos maiores, transfronteiriços, já pensados em vários momentos da história dos países sul-americanos, mas que ganham enorme destaque a partir da década de 1990. Ao nível da América do Sul criou-se a Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana – IIRSA, que nacionalmente, dependendo dos governos, recebe outros nomes, como o Avança Brasil (FHC – 2000/2003), Brasil de Todos (Lula – 2004/2007) e, a partir de 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento com duas versões: PAC 1 e 2 com Lula e Dilma.
Mas, seguindo o raciocínio dos setores econômicos de não aceitarem regulação e de quererem manter de qualquer jeito a lucratividade máxima, o custo do licenciamento em si, mais o que pode ser gerado a partir dele, através de compensações, mitigações e ressarcimentos – apesar desse valor representar “migalhas” frente aos lucros astronômicos que são da ordem de bilhões de reais ao ano -, ainda é visto como custo excessivo e/ou entraves para a acumulação do capital. Outro fator é o tempo: é óbvio que qualquer “tempo de atraso” será “prejudicial” para o capital. E essa lógica está presente em todos os espaços onde há a atuação dos setores desse tripé, que ocasionam enormes conflitos socioambientais, impactos irreversíveis ao meio ambiente e a violação de direitos humanos (na construção de grandes empreendimentos no Brasil há a violação de direitos humanos, em particular nas hidrelétricas, sistematicamente 16 direitos humanos são violados).
Essas iniciativas de combate ao licenciamento ambiental se fortalecem nos anos 2000, pois a ele tem se atribuído como um “entrave” ao desenvolvimento econômico e isso é reproduzido exaustivamente por esses agentes econômicos e também repetido como um mantra por seus porta-vozes, a mídia comercial, e pelos seus financiados representantes políticos em todos os espaços representativos, tanto no legislativo como no executivo, nas três esferas públicas: municipal, estadual e federal. São extremamente organizados, apesar de pertencerem a vários partidos, são financiados pelas empresas do setor e conseguem se constituir em bancadas como a ruralista, que negocia e vota conforme tem seus interesses particulares atendidos.
“Essas obras gigantescas ditas de ‘interesse público ou nacional’ estão orquestradas em projetos maiores, transfronteiriços, já pensados em vários momentos da história dos países sul-americanos, mas que ganham enorme destaque a partir da década de 1990” |
Código Florestal Brasileiro
Infelizmente muitos setores do dito campo político-partidário progressista também caem neste discurso retrógrado e senso comum, passando a reproduzir e aplicar o mesmo receituário. Mas há um marco importante quando essas iniciativas passam das declarações públicas e começam a ganhar espaço através de proposições para o desmonte da legislação: logo após o início da crise capitalista de 2007/2008, quando se identifica que uma das formas de manter as altas taxas de lucros é a aplicação do ajuste fiscal através da retirada de direitos sociais, trabalhistas e ambientais. Se em países do capitalismo central vimos esse processo acontecer principalmente aos dois primeiros direitos, nos países periféricos e onde ainda há uma megabiodiversidade, a maioria ainda desconhecida, e enorme quantidade de áreas e recursos a serem explorados com a possibilidade de expansão do capital, se avança por todos esses direitos. Por isso a legislação precisa ser desmontada conforme a voracidade do capital.
Um exemplo emblemático foi o retrocesso representado com a flexibilização do Código Florestal Brasileiro (atual lei 12.651, de proteção à vegetação nativa). Esse beneficiou o complexo do agro-hidro-mineronegócio, mas também a especulação imobiliária nas cidades. Apesar de serem beneficiados, há setores desse complexo que não ficaram plenamente contentes e de vez em quando se ouvem alguns rumores de novas mudanças. Pasmem, não será surpresa se propuserem novas alterações e ataques ao Código vigente. Importante lembrar que esse retrocesso do Código Florestal tem a sua constitucionalidade ainda discutida no Supremo Tribunal Federal – STF através de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIs. Essas ADIs, entre outros elementos de contestação, estão baseadas em um princípio constituído através das lutas socioambientais das últimas décadas e reconhecido na esfera jurídica: o princípio do não retrocesso ambiental.
Implicações da PEC 65
Esta PEC em particular, a 65, visa liberar as obras apenas com a apresentação de estudos iniciais pela própria empresa, sem o cumprimento das demais etapas. E uma vez apresentado, o documento funcionaria como licença para a execução do projeto, em caráter irrevogável, sem possibilidade de ser paralisado, nem por questionamento de órgãos como o próprio Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais e Renováveis – Ibama ou outros como a Fundação Nacional do Índio – Funai, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio, Fundação Cultural Palmares e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. Além de abrir mão da necessidade de apresentação de estudos aprofundados, com elaboração de alternativas, levantamento dos impactos e medidas a serem tomadas para minimizá-los, há uma retirada de uma série de direitos básicos como a participação social, nem sequer as populações atingidas seriam consultadas. Mesmo sendo uma das maiores fragilidades reconhecidas no atual processo de licenciamento, com a proposta seria eliminada de vez qualquer participação popular.
A PEC 65 também desnuda os interesses privados de congressistas. Ela foi proposta pelo senador Acir Gurgacz (PDT-RO) e aprovada na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ do Senado Federal. Em entrevista para a BBC, o proponente reconheceu que a aprovação da PEC trará benefícios econômicos para a sua família. E o relator da PEC foi o senador Blairo Maggi (PP-MT), o “rei da soja”, ganhador do prêmio Motosserra de Ouro por sua responsabilidade para a destruição da Amazônia, e atual ministro da Agricultura. A PEC, para seguir adiante, precisa ser aprovada por três quintos dos senadores (49 votos) em dois turnos de votação no plenário do Senado, para depois seguir para a Câmara dos Deputados. Por enquanto, esse processo está interrompido, já que houve um pedido de vista realizado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
IHU On-Line – Que aspectos são considerados hoje ao se conceder uma licença ambiental para algum empreendimento e quais deveriam ser primordiais quando se trata de conceder uma licença ambiental para algum empreendimento?
Eduardo Luis Ruppenthal – Atualmente, para o licenciamento de um empreendimento de grande porte, como hidrelétricas, termelétricas, usinas nucleares, rodovias, portos, se passa por três etapas: Licença Prévia – LP, Licença de Instalação – LI e Licença de Operação – LO. A LP é analisada na fase preliminar, é onde o empreendedor apresenta o Estudo de Impacto Ambiental – EIA e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental – RIMA. É através desses estudos que é feita uma análise técnica da viabilidade socioambiental da obra. Quando esta estiver localizada somente em um estado, quem fará essa análise é o órgão licenciador estadual, no caso do Rio Grande do Sul é a Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luís Roessler – Fepam.
Quando é uma obra que está localizada na divisa de dois ou mais estados, é o órgão nacional, neste caso o Ibama. Nesta etapa inicial, o órgão pode pedir aprofundamento dos estudos, caso haja necessidade. Caso seja concedida aLP, o empreendedor deverá apresentar as propostas das medidas que minimizam os impactos ambientais identificados no EIA/RIMA, e assim será avaliada e julgada a concessão da LI; esta segunda fase permite a instalação da obra. Depois de cumpridas todas as condicionantes das etapas anteriores, a última fase, a LO, será autorizada, possibilitando o início do funcionamento do empreendimento.
A PEC 65 propõe a extinção das duas últimas etapas, eliminando uma série de prerrogativas fundamentais e importantes no que diz respeito a direitos ambientais e sociais, principalmente daqueles que são atingidos pela obra. Um desses direitos e que é obrigatório acontecer, mesmo que em muitos casos isso não seja cumprido e somente seja garantido pela população na justiça e através da mobilização social, são as audiências públicas. Embora não seja nas audiências que se decida sobre a implantação da obra, na maioria das vezes esse é o único momento de “participação oficial” da comunidade, espaço para se ter informações mínimas sobre a obra.
Além disso, é nesse momento que são explicitados os diferentes interesses e contradições do empreendimento. Lembro que dos 16 direitos humanos violados na construção de grandes empreendimentos no Brasil, em destaque as hidrelétricas, o primeiro que é violado é o direito à informação. Imagina, se atualmente isso já acontece, com a aprovação da PEC 65 será um caos total, elevando ainda mais os conflitos e as injustiças socioambientais.
“A PEC 65 também desnuda os interesses privados de congressistas” |
IHU On-Line – Quais são as principais falhas da legislação ambiental, especialmente em relação à concessão de licenciamentos para a construção de empreendimentos? A que atribui tais falhas?
Eduardo Luis Ruppenthal – Em 2016, completam-se 35 anos da construção do marco legal ambiental brasileiro com a lei nº 6.938, de agosto de 1981. O licenciamento é um dos mecanismos de controle ambiental. Ele possui falhas, defeitos e questionamentos, principalmente relacionados aos problemas históricos de estruturação dos órgãos ambientais, nos níveis federal, estadual e municipal. Essa não estruturação se dá pela falta de recursos humanos e físicos, como de logística: transporte, tecnologia e locais adequados de trabalho.
Há servidores sérios e consequentes que trabalham nestes órgãos, entretanto há um quadro difícil e desfavorável com a falta de estrutura, de não valorização e, ao mesmo tempo, de pressão intensa, tanto internamente pelos seus superiores, que na maioria não são técnicos do quadro ou sequer têm relação com a área ambiental, mas são indicados para “destravar” as licenças, ocasionando casos de assédio moral e perseguição como através da troca constante de servidores de um setor para outro, quanto externamente pelo poder econômico e pela mídia, que de forma constante faz um trabalho de desqualificação pública, adjetivando esses órgãos pela “morosidade”, “atraso” e “entrave”, afirmando que esses profissionais são os responsáveis por não “querer o progresso e o desenvolvimento” – “como não liberar ou atrasar uma obra que custa bilhões?” e “que profissionais são esses que não querem o progresso?”. E isso se reflete diretamente em amplos setores da sociedade, que reproduz esse senso comum, sendo esta uma das causas de órgãos extremamente importantes como Fepam, Ibama, Funai possuírem enorme antipatia pública/social.
Há uma política deliberada e intencional dos governos como forma de fragilizar a atuação desses órgãos no cumprimento de suas atribuições legais tanto na gestão, no licenciamento quanto na fiscalização ambiental. Dessas atribuições, a gestão e a fiscalização quase inexistem. A maioria dos órgãos ambientais transformou-se em verdadeiros balcões de licenciamento, quase em um serviço cartorial.
Além disso, podemos citar outras falhas no processo de licenciamento:
a) Atualmente estamos licenciando no escuro, frente ao pouco conhecimento da nossa megabiodiversidade, tanto na parte da identificação das espécies, quanto também das relações ecológicas, em nível ecossistêmico. Ainda conhecemos muito pouco algumas regiões inteiras, para não dizer nada. E isso reflete o quanto estamos atrasados na chamada Ciência básica. Muitas vezes os estudos levantados no EIA/RIMA são os primeiros naquelas áreas atingidas, e mesmo sendo realizados de forma qualitativa, não conseguem representar a totalidade ou até a parcela significativa da biodiversidade. Isso não só compromete, mas coloca em xeque todo o EIA/RIMA. Por exemplo, ao não levantar determinadas espécies endêmicas (que ocorrem somente naquele local), caso a obra seja realizada ou da forma que estiver estabelecida, pode colocar em extinção essas espécies. E isso, por si só, já seria inconstitucional, já que a Constituição brasileira protege as espécies e veda as atividades que as coloquem em extinção.
b) A falta de sinergia e planejamento dentro dos governos, onde não há diálogo entre os ministérios (exemplo:Ministério do Meio Ambiente e Ministério das Minas e Energia) e/ou que não respeitam as diretrizes e normativas anteriores já estabelecidas. Há situações em que o próprio Ministério do Meio Ambiente não segue as orientações estabelecidas em outro momento. Há pesquisas acadêmicas que apontam que, em mais de 90% dos casos ambientais nos quais há a judicialização, o réu é o próprio Estado. Este, que deveria ser responsável por cumprir a legislação e fiscalizar o seu cumprimento, infringe nas diversas etapas do licenciamento ambiental.
c) A negação e/ou a omissão e/ou baixo reconhecimento das externalidades (efeitos sociais, econômicos e ambientais) através da elaboração superficial de estudos de impacto ambiental, do não levantamento real tanto ambiental (biodiversidade) quanto social (número de famílias atingidas), quando não são fraudados, como aconteceu com o EIA/RIMA da hidrelétrica de Barra Grande (RS/SC). E, neste ponto, há uma contradição maior no processo de licenciamento, pois muitas vezes há um claro conflito de interesses, já que a empresa responsável por fazer os estudos socioambientais é contratada e está a serviço do empreendedor. O estudo vai ser rigoroso a ponto que gere muitas condicionantes e custos ou que possa inclusive ter a conclusão de inviabilizar a obra?
d) As dificuldades relacionadas pela falta e o acesso das informações pelos atingidos e suas comunidades por uma série de questões, que podem ser físicas, como a distância e o tempo disponível, além do linguajar técnico na elaboração dos estudos. Apesar de que o Estudo de Impacto Ambiental – EIA corresponde aos estudos técnicos aprofundados e que o Relatório de Impacto Ambiental – RIMA é um documento de fácil compreensão para leigos, ainda assim representa, para muitos atingidos e comunidades, algo indecifrável para o seu entendimento.
e) O não cumprimento do rito legal do licenciamento, em que pendências como condicionantes não são cumpridas para a continuidade do processo na etapa seguinte – vejamos o exemplo emblemático da usina de Belo Monte. Isso ocorre principalmente através da pressão externa do poder econômico, midiático e político, que acabam ingerindo externamente ao órgão que determina uma decisão não técnica (“canetaço”), e, caso isso não possa resolver, se substituem os comandados responsáveis pela liberação de determinada etapa ou licença. Um exemplo emblemático disso foi a concessão da LP das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio no Rio Madeira, em 2007, pelo Ibama, licença esta dada sob forte pressão política, apesar da posição contrária dos técnicos do órgão.
f) As audiências públicas, quando ocorrem, são garantidas via ação judicial e mobilização social. Mesmo não sendo decisórias em relação à licença, são secundarizadas em todo o processo. Também são constituídas por um linguajar técnico, em que se estabelecem tempos desproporcionais para os lados distintos. Esse tempo é restrito se for levada em conta a quantidade de informações frente a um EIA que pode chegar a centenas ou passando de um milhar de páginas. A arena social construída em uma audiência nem sempre corresponde a aspectos de igualdade, já que, de um lado, têm técnicos com linguajar específico, autoridades políticas e representantes econômicos, enquanto, do outro lado, pessoas com valores e visão de mundo totalmente diferentes (um pescador, um pequeno agricultor, um indígena, um quilombola etc.).
Apesar dessas e outras falhas que poderiam ser enumeradas, é importante ressaltar que em vez de avançarmos neste processo, principalmente para resolver essas situações essencialmente no que tange a uma maior transparência e participação, o que se vê através dessa PEC é um retrocesso de décadas. Se fôssemos nos localizar em momentos da história brasileira, trata-se de um retrocesso que nos leva à década de 1970.
É importante ressaltar ainda que além da lei nº 6.938, de agosto de 1981, existem outros mecanismos de controle ambiental propostos, como o Zoneamento Ecológico Econômico – ZEE, que define quais atividades podem ser realizadas em determinada área ou região. Existem poucos ZEEs feitos no Brasil. Estes seriam extremamente importantes, inclusive contribuindo para o licenciamento ambiental. Se formos analisar, o único instrumento que foi colocado em prática da Política Nacional do Meio Ambiente foi o licenciamento, apesar de todas as falhas.
“Em mais de 90% dos casos ambientais nos quais há a judicialização, o réu é o próprio Estado. Este, que deveria ser responsável por cumprir a legislação e fiscalizar o seu cumprimento, infringe nas diversas etapas do licenciamento ambiental” |
IHU On-Line – Por que mesmo com a exigência do Estudo de Impacto Ambiental, tantas obras no Brasil apresentam problemas e ainda assim recebem licença de operação?
Eduardo Luis Ruppenthal – Pelas falhas citadas acima, mas principalmente pela maioria das obras terem o “licenciamento político” dado no “carteiraço”. Nos últimos anos, tivemos inúmeros exemplos de empreendimentos que estavam com data de início e término estipulados, mas sequer tinham licenças nem EIA/RIMAs prontos ou sequer haviam iniciado qualquer estudo, considerando que existe a possibilidade dentro do licenciamento de não haver viabilidade e da não obtenção da licença. Consideramos exemplos desse processo algumas grandes obras que estavam no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. Essas são consideradas as “joias” de alguns governos, e apesar da inviabilidade socioambiental, recebem as seguidas licenças e, ao final, a LO. Em casos em que não são cumpridos os ritos do processo, como as condicionantes da etapa anterior, tais obras são realizadas deixando um passivo social e ambiental acumulado.
Porém, além da convergência da visão de desenvolvimento entre os governos e o setor privado, há uma relação mais promíscua que sempre foi denunciada, mas agora está sendo elucidada com a Operação Lava Jato, embora antes não fossem poucas as notícias e denúncias sobre favorecimentos às grandes empreiteiras e outras empresas subsidiárias de insumos, como ferro, cimento, equipamentos elétricos etc.
Corrupção
O tradicional toma lá dá cá se dava pelo financiamento privado das campanhas eleitorais; como contrapartida das obras, essas empresas eram as principais financiadoras das principais campanhas. Para muitos que defendiam ou ainda defendem dizendo que são legais, os financiamentos de campanha eleitoral nunca foram “doações”, e sim investimentos. I-N-V-E-S-T-I-M-E-N-T-O! Nunca deixaram de ser imorais.
A corrupção está inerente a esse processo e isso é conhecido desde as megaobras do regime militar, como ahidrelétrica de Itaipu, Angra 1 e 2, Transamazônica, e há uma série de malfeitos intimamente ligados aos grandes empreendimentos: a centralização de poder político e econômico, a geração de conflitos e injustiças sociais e ambientais, o superfaturamento, o uso clientelista, o uso político-partidário e eleitoreiro, a necessidade de uma máquina de propaganda que a mídia comercial patrocina – comprada/vendida -, a qual cumpre papel fundamental, porque há a necessidade de conseguir uma “opinião pública” favorável, inquestionável, um “senso comum pró-progresso”, e, claro, a corrupção. Muita corrupção. Pela insustentabilidade social e ambiental, da ilegalidade e criminosa na maioria dos casos, a obra somente sai do papel graças a muita corrupção.
Imagem da construção da Usina de Angra 3, em julho de 2015 Créditos da foto: www.ambienteenergia.com.br |
IHU On-Line – Pode nos dar alguns exemplos de obras que têm problemas em seus Estudos de Impacto Ambiental?
Eduardo Luis Ruppenthal – Vou citar as cinco emblemáticas desse último período, em que além de problemas nos EIA-RIMAs, todos os elementos citados acima estão presentes e estão cada vez mais evidentes e desnudados através do noticiário. Muitas dessas notícias não deveriam estar nas seções de política ou economia dos jornais, e sim nas páginas policiais.
Quero fazer um destaque especial aqui: tudo isso está sendo amplamente noticiado pelo IHU em seus boletins diários, como também nas entrevistas, análises de conjuntura da semana e reportagens especiais. Valeria a pena fazer, em outro momento, uma síntese de cada uma dessas obras.
a) Transposição do Rio São Francisco;
b) Usina nuclear de Angra 3;
c) Hidrelétricas do Rio Madeira (Jirau e Santo Antônio);
d) Barragens de Fundão e Santarém em Mariana;
e) Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Sem dúvida, a mais emblemática, onde as ilegalidades relacionadas aoEIA/RIMA, desde o início e até agora, fizeram com que o Ministério Público Federal entrasse com 25 processos em todo o processo da construção.
Abaixo apresento algumas manchetes sobre Belo Monte e os porquês da sua construção:
a) O ex-ministro de Minas e Energia do governo Dilma, o senador Edison Lobão (PMDB-MA), foi acusado por um dos executivos da Camargo Corrêa em sua delação premiada de receber R$ 2 milhões na construção de Belo Monte.
b) O ex-presidente da Andrade Gutierrez em sua delação revelou um esquema de propinas no valor de R$ 150 milhões envolvendo a construção da hidrelétrica, que seriam divididos entre o PT e o PMDB.
c) A Procuradoria Geral da República (PGR) pediu a inclusão de Renan Calheiros (PMDB-AL), Romero Jucá (PMDB-RO), Valdir Raupp (PMDB-RO) e Jader Barbalho (PMDB-PA) em um inquérito que investiga o suposto pagamento de propina na construção da usina de Belo Monte. O ex-ministro de Minas e Energia, Edison Lobão (PMDB-MA), já é investigado (20/06/2016).
“Essa ‘agenda’ deve ser entendida como uma forma de manter e ampliar o lucro das empresas através da implantação de um processo sumário de licenciamento ambiental de projetos ditos ‘estratégicos’ pelo governo e de ‘interesse nacional'” |
IHU On-Line – Quais são as demais propostas que estão em curso e que poderão causar um impacto na legislação ambiental?
Eduardo Luis Ruppenthal – Além da PEC 65, há outras iniciativas de retrocesso em pautas específicas, mas que teriam enormes impactos ambientais e sociais, como a PEC 215, que ameaça a demarcação de terras indígenas e quilombolas e sugere a liberação da mineração nestas áreas. Em específico ao licenciamento ambiental, há três propostas de mudanças profundas neste marco legal aparentemente vindas de três frentes. Entretanto, possuem o mesmo propósito de flexibilização. A primeira proposta está no Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama e foi apresentada pela Associação Brasileira de Entidades Estaduais do Meio Ambiente – Abema, entidade que representa as secretarias estaduais do Meio Ambiente; a segunda é o Projeto de Lei 3.794, de 2014, elaborado pelo deputadoRicardo Tripoli (PSDB/SP) e está na Câmara Federal; a terceira é o projeto de Lei 654, de 2015, apresentado pelo senador Romero Jucá (PMDB/RR), que está no Senado e é uma das 28 medidas da Agenda Brasil.
Essa “agenda” está sendo apresentada como uma forma de “saída mais rápida” da crise, mas deve ser entendida como uma forma de manter e ampliar o lucro das empresas através da implantação de um processo sumário delicenciamento ambiental de projetos ditos “estratégicos” pelo governo e de “interesse nacional”. Essa medida também está presente no programa “Uma ponte para o Futuro”, proposto pelo PMDB ao governo Dilma quando ainda era aliado, e está na pauta do governo do interino, mas que perdeu forças com a queda de Romero Jucá do Ministério do Planejamento, responsável por articular essas iniciativas. As propostas da Abema e dos congressistas, mesmo com diferenças, representam retrocesso da legislação ambiental. E a PEC 65 engloba as demais e agiliza todo o processo de desmonte.
Para não deixar de registrar, alguém que personifica essas tentativas de retrocesso nestas últimas décadas: Romero Jucá, ao longo de toda a sua vida pública, sempre um representante de seus próprios (a família é proprietária de ao menos 12 companhias, de acordo com a reportagem, com interesses que variam de lojas de calcinha a mineradoras) e também interesses privados, é integrante da bancada ruralista, ocupou cargos importantes em todos os governos desde a redemocratização: presidente da Funai (Sarney), da Conab (Collor) e líder dos governos Fernando Henrique, Lula e Dilma. Foi alçado ao Ministério do Planejamento no atual governo interino e entre seus principais objetivos estava o desmantelamento da legislação ambiental. O político passou pelos partidos PSDB, PDS, PFL, PPR ePMDB e sempre manteve relações próximas com os chefes do Executivo. Acumulou escândalos:
a) Em dezembro de 1989, pouco depois de deixar a presidência da Funai, ele manifestou-se contra o plano de retirada de cerca de 40 mil garimpeiros que haviam invadido terras indígenas ianomâmis. Logo após, a Procuradoria-Geral da República denunciou Jucá sob acusação de que, quando era presidente da Funai, ele realizou venda ilegal, mediante suborno, de madeiras de lei da reserva indígena Uru-eu-au-wau. Mas a acusação mais grave, ainda pouco conhecida e que representou um genocídio indígena, foi através da destinação de terras onde viviam indígenas Akuntsu para fazendeiros.
b) Em 1994, Jucá foi denunciado pelo Ministério Público Federal – MPF em processo por corrupção, formação de quadrilha e peculato, que teriam sido praticados durante sua passagem pela Funai. Nos governos FHC, foi alçado a vice-líder no Senado e era um dos seus principais articuladores. Em 1996, apresentou um projeto de lei que regulamenta a mineração em terras indígenas.
c) Logo que o PSDB deixou o Planalto, Jucá se mudou para o PMDB, em 2003, e passou a articular o apoio da legenda ao governo Lula. Em 2005 assumiu o Ministério da Previdência do governo petista, mas foi exonerado após denúncias de corrupção e voltou para o Congresso, onde liderou a bancada governista. Jucá manteve a liderança do governo até 2012, ficando por dois anos como líder do governo Dilma no Senado. Foi um dos principais articuladores para o retrocesso representado nas mudanças no Código Florestal.
d) Em 2015, Jucá teve seu nome envolvido no esquema de corrupção da Petrobras, investigado pelas operações Zelotes e Lava Jato, que este ano se estende para outras obras, como a usina de Belo Monte, junto com os demais integrantes da cúpula do PMDB, como Jader Barbalho, Renan Calheiros e Edison Lobão. E é investigado pela Procuradoria-Geral da República por ter supostamente agido para beneficiar outra mineradora, a Vale S/A, ex-Vale do Rio Doce, maior empresa do setor no Brasil. O processo corre em segredo de Justiça.
Imagem da Usina de Belo Monte, em 2016 Foto: Marizilda Cruppe / #projetocolabora |
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Eduardo Luis Ruppenthal – Esse é um momento difícil pelo qual o país está passando e pode significar um profundoretrocesso em várias conquistas constitucionais, avanços sociais e ambientais desde o processo de redemocratização brasileira. É hora de resistir, de unir forças e de lutar na defesa desses direitos e da legislação ambiental. No caso dolicenciamento, apesar das falhas, defendemos seu aprimoramento, corrigindo esses erros, e que possam ser dadas as condições ideais para a sua implantação, além da necessidade de incorporação de novos desafios estabelecidos na atualidade, como as mudanças climáticas.
Estaremos em várias frentes, inclusive jurídica, questionando essas iniciativas pela sua constitucionalidade dentro do princípio de não retrocesso ambiental, assim como ocorreu diante da flexibilização do Código Florestal. Nós, juntos com os demais setores, como os movimentos sociais que acompanham a pauta socioambiental no Brasil, temos clareza do significado dessas iniciativas e dos reais interesses. Não aceitaremos retrocessos!
(EcoDebate, 29/06/2016) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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