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Artigo

Uma breve introdução ao sistema monetário internacional ‘padrão dólar’, artigo de Ranulfo Paiva Sobrinho

 

[EcoDebate] O sistema monetário internacional padrão dólar substituiu o extinto sistema Bretton Woods a partir de 1973. Esse sistema é caracterizado por falhas estruturais que vem desencadeando períodos de crescimento econômico e crises econômicas tanto em países isoladamente quanto em conjunto, como é o caso da crise desencadeada nos EUA em 2007 que vem afetando negativamente várias nações.

Entender essas falhas é condição necessária para buscarmos soluções para os problemas socioecológicos que ocorrem tanto em escalas locais (desemprego, desigualdade social, perda de biodiversidade e ecossistemas) assim como globais (migração humana, mudanças climáticas, crises financeiras internacionais).

Basicamente a principal falha do padrão dólar está relacionada com a composição dos ativos de reservas internacionais, a qual mudou drasticamente após o fim do Acordo de Bretton Woods. De 1945 até 1973, os principais ativos de reservas eram em ordem decrescente, ouro, papel-moeda convertível em ouro, SDRs (Special Drawing Rights).

Durante esse período, o dólar já era a principal divisa usada em transações internacionais e o fato do dólar ser lastreado (35 dólares para uma onça de ouro) limitava a expansão do crédito em um país, pois, conforme explica Duncan (2005) países com déficit de conta corrente deviam, quando seus parceiros comerciais exigissem, remeter quantias do ouro para o exterior. Com a saída do ouro do sistema financeiro, os agentes autorizados a expandir crédito (bancos, por exemplo) reduziam a disponibilidade de crédito no país, causando períodos de recessão.

Por outro lado, o país receptor do ouro, passava por período de expansão do crédito e, consequentemente, crescimento econômico e dependendo dos setores que os bancos concediam crédito, bolhas econômicas. Durante esse período de aquecimento da economia, a inflação tornava mais vantajoso à importação de produtos, fazendo que o país incorresse em déficits comerciais o que levava a saída do ouro do país, reduzindo a expansão do crédito e levando a recessão econômica. Novamente o país receptor do ouro, passava por processo descrito anteriormente.

Esse processo, descrito de forma muito simplificada, impedia que os países incorressem em déficits, ou, superávits crescentes ao longo do tempo em sua conta corrente.

Com o fim do Acordo de Bretton Woods a composição dos ativos de reservas muda consideravelmente e o processo de expansão do crédito pelo sistema financeiro aumenta em quantidades sem precedentes causando períodos de crescimento econômico associado com expansão de bolhas econômicas que inevitavelmente estouram.

Os principais ativos de reservas passam a ser: (a) títulos de dívidas governamentais; (b) títulos de dívidas privados emitidos por corporações; (c) derivativos; (d) ações de empresas negociadas em bolsas de valores, entre outros.

Como se pode notar, no padrão dólar os ativos de reservas praticamente são criados pelos seres humanos, ao contrário do ouro. Consequentemente, os países podem financiar os seus déficits de conta corrente com a venda de tais ativos desde que os bancos centrais dos outros países o aceitem.

Esse é o caso dos EUA que sendo o país emissor da principal moeda no atual sistema monetário internacional, vêm desde a década de 1980 financiando total ou parcialmente os déficits de sua conta corrente (o maior do mundo) com a venda de ativos de reservas como títulos do governo federal dos EUA, de agências respaldadas pelo governo norte-americano como a Fannie Mae, ações de empresas negociadas em bolsas de valores (Figura 1).

 

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Figura 1 – Contas corrente e financeira dos EUA. Fonte: International Financial Statistics – IMF.

 

O padrão espelho observado na Figura 1 é observado em outras nações, isto é, tanto pelos países que como os EUA financiam os déficits de conta corrente através da conta financeira, assim como pelos países que possuem superávit de conta corrente e precisam reciclar os recursos financeiros entrantes por esta através da ‘exportação’ dos mesmos via conta financeira, ou, compra de ativos de reservas como é o caso da China. Focamos neste último caso para explicar um processo chave para entender como esse comportamento do balanço de pagamentos afeta a expansão do crédito e de bolhas econômicas em um país.

Conforme explica Duncan (2012), quando as empresas residentes nos EUA pagam pelos produtos importados da China, bilhões de dólares são transferidos dos EUA para a China. O banco central da República Popular da China (BCRPC) a fim de evitar que o iuan perda sua competitividade e assegurar que a China continue exportando para os EUA, compra os dólares a uma taxa de câmbio desejada. Ao fazer isso ocorrem dois processos importantes que são detalhados em Paiva Sobrinho e Romeiro (2016a), e, brevemente descrito a seguir.

Como se sabe durante o sistema monetário internacional padrão dólar, o FED cria dólares toda vez que compra algo (FED 1982) e da mesma forma os demais bancos centrais criam sua moeda ao comprar ativos financeiros de seu interesse. Quando o banco central da China (BCRPC) compra os dólares que foram enviados pelas empresas residentes nos EUA ele está criando iuans, os quais serão transferidos para o sistema bancário da China e destinados às empresas que exportaram para os EUA.

Esses iuans ao entrarem no sistema bancário chinês, dependendo no nível de endividamento dos setores que compõe a economia chinesa, podem ou não contribuir para que os bancos expandam o crédito e dependendo para quais setores esse crédito é expandido pode desencadear tanto o crescimento econômico quanto bolhas econômicas. Mais detalhes sobre como esse processo ocorre consultar Paiva Sobrinho e Romeiro (2016a, b).

Por outro lado, os dólares adquiridos pelo BCRPC são investidos nos EUA seja através da compra de títulos de dívida do governo federal, de agências respaldadas pelo governo norte-americano, ações negociadas em bolsas de valores, repos (acordo de venda e recompra, do inglês, sale and repurchase agreement), entre outros. Toda vez que o BCRPC, ou qualquer outro banco central, compra algum ativo financeiro em outro país ele está adquirindo ativos de reservas e isso é computado com sinal negativo no balanço de pagamentos (Figura 2).

Esses dólares entram no sistema bancário norte-americano e dependendo do nível de endividamento dos setores que compõe a economia norte-americana podem contribuir para que os bancos expandam crédito tanto para atividades que contribuem para o crescimento econômico assim como para as que visam à especulação de ativos seja no mercado mobiliário ou imobiliário, desencadeando assim bolhas econômicas que inevitavelmente estouram.

O processo de expansão do crédito e sua relação com o crescimento econômico e bolhas econômicas é analisado através de um arcabouço analítico multinível descrito em Paiva Sobrinho e Romeiro (2016b).

Bilhões de dólares

 

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Figura 2 – Contas corrente e financeira, de ativos de reserva da China. Fonte: International Financial Statistics – IFM.

 

O processo descrito é válido para outras nações, seja as que possuem déficit de conta corrente assim como as que possuem superávit da referida conta, como o Japão.

Dessa forma, o padrão dólar propiciou um período de transferências de recursos financeiros transnacionais sem precedentes na história da humanidade. Vários fatores contribuíram para esse fenômeno, sendo que os principais são citados a seguir:

1. Adoção do sistema de ‘primary dealers’ em 1960 nos USA, o qual é adotado atualmente pela maioria dos países. Esse sistema é composto por instituições financeiras conhecidas como ‘primary dealers’ que desempenham papel importante no processo de criação do dinheiro em conjunto com os bancos centrais e governos. Este sistema possibilitou aos ‘primary dealers’ terem acesso a um dos ativos financeiro de maior liquidez (títulos de dívidas do governo de um país) formando assim o mercado global de títulos de dívidas governamentais e privados que passa a ser altamente conectado a partir de 1979 com a implantação do sistema SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication). Os problemas relacionados a este sistema são descritos em Paiva Sobrinho e Romeiro (2016a).

2. Alta interconectividade de instituições financeiras bancárias através da SWIFT, a qual possibilita o fluxo internacional de recursos financeiros em quantidades e velocidades jamais presenciados na história da humanidade. O SWIFT também serve meio de coerção contra países ao suspendê-los do sistema (Bloomberg, 2012; 2014).

3. Remoção das restrições de controle de entrada de capital, o que se concluiu em 1990, instituindo a globalização dos mercados financeiros.

4. Globalização de produtos e serviços feitos com mão-de-obra barata, principalmente de países asiáticos, o que levou a significativa redução dos custos de produção.

5. Emprego acentuado pelas instituições bancárias norte-americanas e europeias, a partir da década de 1980, da prática da securitização como meio para obter o ‘cash’ para financiar os empréstimos de longo prazo concedidos aos seus clientes.

6. Desregulamentação do mercado de derivativos em 2000.

Esse conjunto de fatores possibilitou a formação de um sistema complexo de fluxos financeiros, de produtos e serviços entre países no mundo todo gerando consequências tanto positivas quanto negativas para a humanidade. O problema é que as consequências negativas tanto sociais quanto ambientais estão superando as consequências positivas.

Existem outros detalhes relacionados ao sistema monetário internacional padrão dólar que são descritos com mais detalhes em Paiva Sobrinho e Romeiro (2016a, b) e que serão apresentados futuramente em ‘post’.

Entre esses detalhes, um que considero muito importante está relacionado ao processo de criação do dinheiro e do crédito pelas instituições financeiras. Esse processo é desconhecido por muitos políticos e economistas (Paiva Sobrinho, 2015) e merece ser compreendido a fim de criarmos soluções para os problemas socioecológicos que afetam a humanidade nesta época geológica, o Antropoceno.

Espero que este breve ‘post’ possa ter contribuído para iniciar o entendimento da dinâmica e funcionamento do atual sistema monetário internacional, padrão dólar. Espero em breve apresentar um ‘post’ mostrando como essa dinâmica do padrão dólar contribuiu para o desencadeamento da atual crise econômica que o Brasil está vivenciando.

Referências

Bloomberg, 2012. http://www.bloomberg.com/news/articles/2012-03-15/swift-will-halt-financial-messaging-for-sanctioned-iranian-banks.

Bloomberg, 2014. http://www.bloomberg.com/bw/articles/2014-09-01/banning-russia-from-the-swift-payment-system-would-really-hurt.

Duncan, R. 2005. The dollar crisis. Causes, consequences, cures. John Wiley & Sons.

Duncan, R. 2012. The New Depression: the breakdown of the paper money economy. John Wiley & Sons Singapore.

FED. 1982. Putting it simply. Federal Reserve of Boston.

Paiva Sobrinho, R. 2015. Creación de dinero y sus consecuencias para la sociedad. http://sustainability.school/es/creacion-de-dinero/

Paiva Sobrinho, R.; Romeiro, A.R. 2016a. Understanding the dollar standard in order to improve ecological macroeconomic theory. (Submetido)

Paiva Sobrinho, R.; Romeiro, A.R. 2016b. An analytical framework to assess economies in the dollar standard. (Submetido)

Ranulfo Paiva Sobrinho
Pesquisador colaborador no IE-Unicamp
PhD Economia, MSc Engenharia e bacharel em Ecologia

 

in EcoDebate, 01/04/2016

[cite]

 

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