Resenha do filme ‘A Onda’ (Die Welle)
Resenha do filme ‘A Onda’ (Die Welle)
O filme alemão A Onda mostra como um experimento de classe constituiu uma verdadeira ditadura fascista e discute o quão longe o regime de Hitler realmente está dos nossos dias
Análise de Alexandre Leitão, em Revista da História
Die Welle
Dir.: Dennis Gansel
Alemanha, 2008
Eu começo com os jovens. Nós os mais velhos estamos desgastados, mas meus jovens magníficos! Existem melhores que esses em qualquer lugar do mundo? Olhe para todos esses homens e garotos! Que material! Juntos, nós podemos fazer um novo mundo! – Adolf Hitler, 1933
No dia 30 de abril de 1945, quando tropas soviéticas estavam a poucos quarteirões do bunker onde havia se escondido, Adolf Hitler (1889-1945), chefe (führer) do regime nazista, cometeu suicídio disparando uma bala na sua têmpora direita. Imediatamente o mundo pôs-se estupefato, perguntando-se como seria possível um país de mais de 65 milhões de pessoas haver sustentado um movimento tão destrutivo quanto o nacional-socialismo. Conforme novas informações chegavam às agências internacionais de notícias acerca do número de vítimas dos campos de concentração, a intelectualidade e as elites políticas de diversos países tornavam-se progressivamente mais obcecadas em explicar aquele que seria o enigma do século XX: o que levaria um grupo de pessoas, em sua maioria racionais, a apoiar um líder autocrático, cuja ordem mais vultosa fora a de exterminar mais de 6 milhões de vidas humanas em câmaras de gás? Muitos, dentre os quais escritores como Albert Camus e filósofos como Hanna Arendt, se dispuseram a respondê-lo, apresentando seus argumentos na forma de tratados, estudos, romances e, obviamente, filmes.
Porém, talvez a mais nebulosa e assustadora das teses tenha sido engendrada por Ron Jones, um professor de história da Escola Secundária Cubberley, de Palo Alto, Califórnia, no ano de 1967. Incapaz de responder aos questionamentos de seus alunos sobre como o povo alemão teria sido capaz de apoiar as atrocidades nazistas, Jones decidiu realizar um experimento sociológico. No período de uma semana, transformou sua classe de 30 alunos em um verdadeiro movimento fascista, com direito a uniforme, saudação e parafernália ideológica. Começando com simples exercícios de como sentar-se apropriadamente nas carteiras, Jones passou a impor-se como uma figura autoritária em sala de aula. Os mais altos valores por ele defendidos passaram a ser comunidade, força e, sobretudo, disciplina.
Em menos de três dias não apenas percebeu um aumento da eficiência de sua turma, como o número de presentes ampliou-se, mostrando que muitos jovens estavam interessados em ingressar no mundo de proximidade familiar que ele havia criado. O nome escolhido pelo professor para batizar o grupo de jovens: a Terceira Onda, numa referência à crença mítica de que a terceira onda de uma maré é sempre a mais forte. Ao chegar quinta-feira, Jones percebeu que o experimento parecia estar saindo ao controle, com jovens apresentando-lhe denúncias uns contra os outros, pelo fato de acreditarem que certos colegas não estariam seguindo com dedicação suficiente os preceitos da Onda. O professor anunciou então que todos fariam um comício no dia seguinte, afirmando que eles eram apenas uma pequena parte de um movimento de amplitude nacional, que já teria inclusive um candidato à presidência, o qual faria um discurso em cadeia de televisão. Na sexta-feira, enquanto os militantes juvenis aguardavam um sinal de transmissão que jamais viria, Jones revelou-lhes que todos haviam participado de uma experiência sobre como o fascismo poderia triunfar no seio de uma sociedade.
O sinistro episódio sugeria não apenas que os jovens estariam mais sujeitos a estar sob a influência dos ideais fascistas, por conta das angústias que determinam esta fase do processo de amadurecimento, mas também que um simples conjunto de crenças políticas, centrado nos pressupostos de “comunidade” e “disciplina”, poderia ser capaz de conquistar o apoio popular. Em 1981, foram lançados um romance e um filme feito para a TV, intitulados A Onda, que descreviam de forma relativamente fidedigna os eventos ocorridos no colégio de Palo Alto. E 27 anos depois, coube ao cinema alemão, de forma catártica, desenterrar os pesadelos de seu passado, produzindo um remake da história.
Em A Onda (2008), filme de roteiro simples e excelente valor de produção – remake de um filme de 1981, dirigido por Alexander Grasshoff -, somos apresentados a o que seria um típico colégio alemão do início do século XXI. Os alunos aderem à moda do hip hop, escutam rappers norte-americanos e dividem o lazer entre atividades esportivas, festas e jogos de videogame, sendo retratados de maneira idêntica àquela de outras produções cinematográficas mundo afora. A alguns falta uma perspectiva de vida, a outros estabilidade (seja por motivos econômicos ou familiares) e todos são flagelados pelas agonias e dilemas que definem a transição da infância para a vida adulta. Na semana marcada para a realização de workshops em ciência política, caberá ao carismático e rebelde professor Rainer Wenger, interpretado por Jürgen Vogel, liderar o grupo de trabalho sobre “Autocracia”, termo moderado, que visaria não machucar as sensibilidades dos expectadores com palavras tão conhecidas como Fascismo ou Nacional-Socialismo. Wenger, longe de representar o clichê do professor conservador, de colete de lã e terno, surge na tela vestindo uma jaqueta de couro e dirigindo seu carro ao som de Rock’Roll Highschool, da banda Ramones. Logo nos primeiros minutos da película vemos a resistência de Wenger em assumir o comando da classe, estando muito mais interessado na turma de “Anarquismo”, inclusive por suas experiências no bairro de Kreuzberg, histórico reduto da militância de esquerda em Berlim.
Após uma série de reprimendas, resta ao desenvolto professor assumir seu lugar á frente da classe de “Autocracia”. Daí em diante todos os eventos ocorrem de forma muito parecida com aquela da experiência de 1967. Acompanhamos os efeitos da Onda sobre diversos estudantes, com destaque para o casal formado pelo nadador Marco e sua namorada Karo. Ele, desejoso do senso de comunidade que não encontra em sua própria família, adere fervorosamente ao movimento, enquanto Karo, criada por pais hippies, decide denunciá-lo tão logo se apresenta. Progressivamente o casal se distancia, levando à cena chocante na qual Karo, após atacar prolificamente a Onda, é agredida com um tapa pelo namorado. O evento mostra a Marco o quão longe o fanatismo fora capaz de leva-lo. Ao mesmo tempo acompanhamos o tímido Tim, estudante excluído de todas as tribos do colégio, que encontra na Onda a chance de enturmar-se e mesmo ganhar certa popularidade. O filme usa ainda de certas alegorias históricas para discutir a vitória política do nazismo na década de 1930, mostrando que apesar dos riscos representados pela Onda avolumarem-se no colégio, a diretora do mesmo afirma a Wenger (sem saber que ele está, em verdade, conduzindo um experimento sociológico) que ele conta com seu total apoio. Para que este continue com o trabalho de disciplinarização dos jovens.
A referência aqui é feita à elite política da decadente República de Weimar (1918-1933), que abriu as portas do governo alemão ao nazismo por acreditar que ele seria a melhor resposta à necessidade de manutenção da ordem no país. Em lugar dos sindicatos e do movimento comunista, que tanto assustavam os burocratas e deputados do Reichstag, dispostos a ceder à Hitler as liberdades civis do povo alemão, no microcosmo do colégio a Onda contrapõe-se aos estudantes “anarquistas”, jovens rebeldes que agem como os punks da década de 1980. Se não bastassem paralelos tão claros, o filme insere na cena final do comício, um discurso-síntese pronunciado por Wenger, em que este enuncia os questionamentos que, até hoje, emanam da extrema-direita europeia. Salvo pelo polêmico debate anti-imigração, o professor expressa a revolta contra a perda da soberania popular, executada por uma tecnocracia favorável aos bancos e ao capital especulativo, contra a corrupção de uma classe política que parece não compreender a realidade do país, e contra o desemprego e a miséria do povo, colocado à mercê de grandes corporações estrangeiras.
Aqui caberia ressaltar os paralelos entre o filme e as teses de Albert Camus (1913-1960), expostas no seu tratado O Homem Revoltado. Sem debruçar-se tão somente sobre a caracterização dos nazistas enquanto paladinos do conservadorismo, o pensador franco-argelino encontra no sentimento fulcral de revolta a semente causadora da ascensão de Hitler e das tragédias da Segunda Guerra Mundial. Teria sido o descontentamento perante a perda de um mundo tradicional, dirigida contra quase todas as classes sociais e movimentos políticos, o responsável por fundamentar a plataforma nacional-socialista, levando àquilo que Camus definiu como uma vontade de Apocalipse. No cerne desta ideologia haveria a percepção do jogo político como uma questão de vida ou morte, capaz de explicar o porquê dos suicídios testemunhados no bunker de Berlim em abril de 1945. Um mundo sem a vitória do nacional-socialismo seria indigno de existir e, portanto, terrível de se viver. Tal sentimento levou Magda Goebbels, a esposa do ministro de propaganda Joseph Goebbels, a envenenar os seis filhos pequenos do casal e matar-se logo em seguida.
De forma semelhante, ao cabo da trama, o jovem Tim, vendo seu mundo desmoronar com o anúncio de que a Onda não passara de um experimento que fugiu ao controle, ameaça assassinar Wenger com uma pistola automática. O professor rapidamente pergunta-lhe “Sem mim, quem irá liderar a Onda?” Constatando o precipício existencial no qual se encontrava, Tim opta pelo suicídio, disparando a arma em sua boca. O final, diferente daquele do evento de Palo Alto, foi decididamente influenciado pelo fenômeno dos massacres em escolas públicas, preponderantes nos EUA e presentes na Europa desde a década de 1990. A questão reside em ir além da mera mudança de roteiro, causado por questões contemporâneas, e problematizar aquilo que aproxima a trama dos eventos históricos sucedidos no término da Segunda Guerra Mundial. Desde então as ciências sociais tentam responder à questão do “porquê”, e a experiência da Terceira Onda talvez chegue próxima de apontar-nos o “como”. Obviamente os fascismos não podem ser reduzidos à mera presença de uniformes, gestos e uso da violência como meio de se atingir fins políticos. Quando muito essas foram práticas já disseminadas no continente europeu desde a segunda metade do século XIX, amplamente utilizadas pela extrema-direita e mesmo pela extrema-esquerda, das quais o nacional-socialismo se valeu para impor sua agenda de poder.
O filme A Onda toca então em uma questão mais simples, ainda que igualmente assustadora: a de que o fascismo talvez esteja mais próximo de nós do que pensamos, e de que ela possa ressurgir a qualquer momento. A esse respeito, podemos regressar a Albert Camus. Em 1947, o autor publicou um de seus maiores romances A Peste, cuja advertência aproxima a obra do filme alemão. Na trama, a pequena cidade de Oran, na Argélia, é tomada por uma epidemia de peste bubônica depois de ser invadida por ratos. A trama apresenta ao leitor uma analogia muito clara entre a invasão nazista da frança, e a subsequente disputa entre a Resistência e os colaboracionistas, opondo os que combatem a doença àqueles que lucram com ela. Mesmo sustentando um tom mais bélico do que político, em sua conclusão o narrador da obra menciona a comemoração geral após a notícia de que a epidemia cessara, ecoando aquela feita pela população de Paris quando da Libertação. Em meio à felicidade de seus concidadãos, o protagonista da estória, o médico Rieux, manteve-se em uma posição pessimista, pois sabia que, tal qual o fascismo, “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e nas roupas, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.
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