Retrocessos na demarcação de terras indígenas: Mais longe da terra, artigo de Maíra Mathias
Marialva, Nísio, Oziel. É muito provável que você não nunca tenha ouvido falar nas histórias por trás desses nomes. São algumas das vítimas nos últimos anos da escalada da violência contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul que explodiu de novo entre agosto e setembro de 2015. O ataque que inaugurou a onda de terror entre as comunidades aconteceu no município de Antonio João, onde se localiza a Terra Indígena (TI) Ñanderú Marangatú. Lá, no dia 29 de agosto, pistoleiros fortemente armados assassinaram o guarani kaiowá Simão Vilhalva, feriram outras pessoas e deixaram um rastro de destruição.
O episódio do Ñanderú Marangatú não é um ponto fora da curva. Emboscadas e “desaparecimentos” de lideranças indígenas, incêndios em aldeias, confinamento em reservas pequenas e superlotadas ou acampamentos em beiras de rodovias, desassistência à saúde, invasões e exploração ilegal de recursos naturais nos territórios já demarcados, incremento dos episódios de preconceito e racismo são algumas das muitas violações a que comunidades indígenas estão submetidas em todo o país. “A tentativa de retirar dos povos a condição de sujeitos de direitos é a diretriz que guia esse processo”, resume Cleber Buzatto, coordenador do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi. A entidade produz anualmente um relatório que reúne informações, análises e notícias sobre os problemas enfrentados pelos indígenas. É a única fonte a compilar os casos de homicídio. Apesar de a informação vir da Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai/MS), os dados não são divulgados e precisam ser obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação. No período entre 2003 e 2014, a Sesai registrou 754 assassinatos cometidos contra indígenas no país, 138 deles só no ano passado. O Mato Grosso do Sul figura todos os anos como o estado mais violento.
Como pouco tem sido feito para identificar e punir os autores desses ataques, a certeza da impunidade torna os crimes cada vez mais frequentes. “No Mato Grosso do Sul há uma conjugação de esforços para que a questão indígena seja desidratada, no sentido de retirar força dos próprios indígenas mediante a recorrente retirada de direitos. Os processos e inquéritos relativos a mortes e violências contra indígenas ficam parados sem nenhuma diligência por um longuíssimo período de tempo e são todos inconclusos. Não há investigação ou a investigação é tardia, quando ela começa os dados já se perderam”, atesta a subprocuradora-geral da República Deborah Duprat, responsável pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, que se dedica a populações indígenas e comunidades tradicionais.
O movimento indígena é unânime ao defender que a demarcação de terras é o único mecanismo capaz de superar definitivamente os conflitos entre indígenas e produtores rurais. Mas os entraves para que os territórios sejam restituídos se multiplicaram nos últimos anos. “Hoje os ataques aos povos indígenas acontecem de forma articulada nos três poderes da República. No Executivo há a decisão de paralisar a demarcação, no Legislativo há constantes ameaças de retrocessos e de impedir o acesso aos territórios e no Judiciário se torna cada vez mais comum a interpretação que leva a decisões de revisão ou cancelamento dos processos demarcatórios já concluídos”, denuncia Sonia Guajajara, da Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib).
A força dos ruralistas
No dia 27 de outubro, a bancada ruralista obteve mais uma vitória na Câmara dos Deputados. A Comissão Especial da Demarcação de Terras Indígenas aprovou por 21 votos a zero a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 do deputado Almir Sá (PPB-RR). O objetivo é que a decisão final sobre a criação e modificação de terras indígenas, quilombolas e áreas de proteção ambiental seja transferida do Executivo para o Legislativo. O relator da matéria, Osmar Serraglio (PMDB-PR), declarou na ocasião da instalação da comissão, que Executivo e Congresso têm que ter “paridade de armas” para decidir sobre as demarcações: “os dois têm de ter canhão, os dois têm de ter fuzil”, disse.
“Temos um verdadeiro campo de batalha instalado. Parece que se cria uma situação de guerrilha em relação a tudo que se refere a terras ou povos indígenas”, observa Sônia. “A PEC 215 é um dos maiores absurdos que se pode imaginar porque na concepção constitucional atual, questões de minorias não são sujeitas às maiorias eventuais. O Congresso, por essa razão, não seria o lócus próprio para deliberação sobre terras indígenas. De resto, é uma tarefa exclusiva do Executivo. Haveria uma invasão de poderes”, garante Deborah Duprat. Tanto o Ministério Público quanto deputados do PT, PCdoB, PV, Psol e Rede prometem entrar com Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF).
Na avaliação de Cleber Buzatto, após conseguir aprovar o Novo Código Florestal, em 2012, a bancada ruralista passou a concentrar forças no ataque à legislação indigenista. “Já no final de 2011, eles aprovaram na Comissão de Constituição e Justiça a constitucionalidade da PEC 215. Desde então, têm agido de forma sistemática para aprovar essa e outras matérias do interesse das grandes corporações do agronegócio e da mineração”, diz. Entre os projetos que se alinham diretamente a esses setores e tramitam com rapidez no parlamento, destacam-se o Novo Código da Mineração – cuja última versão do texto abre a possibilidade de exploração de recursos minerais em Unidades de Conservação –, e a flexibilização para compra de terras por empresas estrangeiras, que tende a concentrar ainda mais terras nas mãos de poucos proprietários, colocando as disputas demarcatórias em nível maior de dificuldade. De acordo com Buzatto, os ruralistas têm aproveitado as “oportunidades” de debate público desses projetos para propagar país afora um discurso de “incitação ao ódio e à violência contra os indígenas”.
Os recentes ataques aos guarani kaiowá demonstraram que políticos patrocinados pelo agronegócio não temem se expor em situações comprometedoras. Pouco antes do ataque, o Sindicato de Produtores Rurais de Antonio João promoveu uma reunião que contou com a presença dos deputados federais Luiz Henrique Mandetta (DEM) e Tereza Cristina (PSB), além do senador Waldemir Moka (PMDB). A pauta da reunião era a ocupação da sede da Fazenda Fronteira pelos indígenas guarani kaiowá que reivindicam a demarcação da Terra Indígena Ñanderú Marangatú. Não por acaso, a proprietária da fazenda, Roseli Maria Ruiz, é também a presidente do sindicato. Na sequência da reunião, vários proprietários da região seguiram em carreata para a sede da Fazenda Fronteira, como se pode ver neste vídeo obtido pelo repórter Renan Antunes de Oliveira e divulgado em matéria especial da Agência Pública. O ânimo dos fazendeiros pode ser resumido por um comentário do deputado Mandetta. Ele teria publicado em uma rede social que “na fronteira a chapa é quente”, apagando depois a mensagem, conforme denunciaram entidades ligadas à causa indígena em nota pública. No confronto desigual entre índios e fazendeiros, Simão Vilhalva, de apenas 24 anos, foi morto com um tiro na cabeça. Na tentativa de desacreditar os guarani kaiowá, os fazendeiros alegam que os indígenas “plantaram” o cadáver para incriminá-los. No dia seguinte, o acampamento dos indígenas foi atacado e, nos dias subsequentes, várias ações de milícias armadas feriram indígenas em ocupações como as de Antônio João. Diante da multiplicação de investidas armadas contra as comunidades indígenas, a Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul tomou uma atitude: instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), mas contra o Cimi. A iniciativa da deputada Mara Caseiro (PTdoB) demonstra a força da bancada ruralista no estado.
Retrocessos no Judiciário
“Todo mundo está de olho no Legislativo, no Executivo, e o Judiciário está escondido. Tem muita terra judicializada, terra que espera décadas para o Supremo dar uma resposta. Isso também é uma violência contra os povos indígenas”, observa Lindomar Terena, da coordenação nacional da Apib. A TI Ñanderú Marangatú é um exemplo disso. A homologação por decreto em 2005 foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. Desde então, se desenrola uma batalha em que liminares de reintegração de posse são aceitas e suspensas, mas nenhuma conclusão aparece no horizonte. “Vivemos hoje a judicialização dos processos de demarcação. Essas terras estão sendo contestadas no Brasil inteiro. No Mato Grosso do Sul há aproximadamente 900 processos em andamento em alguma instância do Judiciário”, diz o assessor jurídico do Cimi, Adelar Cupsinski. “Há um grande desconhecimento por parte do Judiciário do que foi a ruptura operada pela Constituição de 1988 no que diz respeito à concepção plural de sociedade, modos de vida e categorias jurídicas”, afirma Deborah Duprat, para quem as decisões quase sempre partem de uma “perspectiva hegemônica do que é posse, do que está em disputa, quais os atributos de propriedade sem reconhecer que há outro lado que trabalha com outras categorias e percepções”.
Um divisor de águas foi o julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, localizada no norte de Roraima. A decisão gera polêmicas e diferentes interpretações até hoje e parece ser a base para o anulamento cada vez mais frequente de portarias e decretos do Executivo. Raposa foi delimitada pela primeira vez em 1998. Ao longo dos anos, muitos fazendeiros foram se instalando no interior da TI e as comunidades indígenas foram ilhadas em porções desse território. Isso provocou a revisão dos limites em 2005, quando o Executivo decidiu pela demarcação contínua, ou seja, que os não índios deveriam ser indenizados pelas benfeitorias e sair. Um fazendeiro questionou e a decisão foi parar no Supremo, que validou a tese do Executivo após julgamento realizado em 2009. Contudo, elementos dovoto do relator do processo, o ex-ministro Carlos Ayres Britto, e o julgamento em 2013 dos embargos de declaração – último recurso possível de uma decisão do STF – nublaram ainda mais o já conturbado cenário demarcatório do país.
O primeiro desses elementos é conhecido como marco temporal. Em seu voto, Ayres Britto entendeu que a Constituição Federal “trabalhou com data certa” – 5 de outubro de 1988 –, que estabeleceria um “marco objetivo que reflete o propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena”. Há duas interpretações contrastantes sobre o sentido do marco temporal. Uma delas, que contempla o lado dos proprietários rurais, entende que para ter direito a um território, as comunidades indígenas precisariam estar fisicamente nele em 5 de outubro. Pelo lado dos indigenistas, prevalece a visão de que o marco temporal precisa ser contextualizado em relação a outras partes do voto e não visto como um fim em si mesmo. Isso porque “se não estavam na terra em 5 de outubro é porque foram expulsos”, argumenta Adelar. Nesse sentido, o conceito de posse apresentado no voto serviria para relativizar a objetividade do marco temporal. “Ele fala de uma posse que não é só a física, porque para os indígenas estar numa terra tem o sentido anímico, mesmo porque a forma de ocupação é diferente, há áreas sagradas, que não podem ser habitadas”, explica Cupsinski. Deborah Duprat esclarece que o voto trabalha com o conceito de “ocupação” que não implica a exigência de uma construção indígena no local, mas entende que “pequenos atos de resistência, estratégias para se fazer presente naquele território, como o ingresso para caça e pesca” se aplicam para determinar a tradicionalidade de uma área.
Ainda durante o julgamento, o ex-ministro Carlos Alberto Menezes Direito apresentou um voto que influenciou bastante a Corte e se transformou nas polêmicas “19 condicionantes” de Raposa. Na avaliação de Deborah Duprat, junto com o marco temporal, elas fizeram da decisão “um péssimo precedente para a questão indígena no Brasil” ao estabelecer, por exemplo, que as Forças Armadas e a Polícia Federal possam atuar em território indígena sem consultar previamente a comunidade – como determina a Constituição e a Convenção 169 da OIT –, e principalmente, ao proibir que uma terra indígena já demarcada seja ampliada. Na época, o Ministério Público caracterizou as condicionantes como aleatórias e criticou a Corte por extrapolar suas funções, já que regras desse tipo deveriam partir do Legislativo e não de um julgamento do STF.
Por fim, Raposa se tornou um verdadeiro ‘cisma’ jurídico. A dúvida era: a decisão vale para casos semelhantes? A resposta foi negativa, “mas nem tanto”. Isso porque apesar de Raposa não ter se transformado em súmula vinculante, ou seja, não precisar ser seguida pelo judiciário e pelo poder público, segundo Deborah Duprat, ela vale como precedente, criou jurisprudência e é isso que, desde então, tem levado diversos tribunais a ampliar para outras terras indígenas seus efeitos. O Cimi tem leitura diversa. “O Supremo nos embargos diz que a decisão só vale para Raposa, que se trata do caso concreto e que isso não deve ser ampliado para outras TIs”, afirma Cupsinksi. Por isso, o Conselho tem feito barulho contra três recentes decisões do STF.
Em 2014, a 2ª turma do STF anulou atos administrativos do Poder Executivo, de demarcação das terras Guyraroká, dos guarani kaiowá, e Limão Verde, do povo terena, ambas no Mato Grosso do Sul, e Porquinhos, dos canela-apãniekra, no Maranhão. Segundo a Corte, esses territórios não seriam tradicionalmente ocupados por indígenas. O caso mais sério, na opinião de Adelar Cupsinski, é Limão Verde. “A TI foi homologada e registrada em cartório, os índios receberam através de oficial de justiça a posse e os não índios já foram indenizados. De 27 fazendeiros, somente um entrou com ação. O Supremo optou pelo que se chama de uma decisão além do pedido. Isso porque um fazendeiro pode pedir para a sua parcela e não para as 26 restantes. Mesmo assim, o STF disse que a terra não é tradicional no todo”, diz. “Para piorar, os índios não foram citados e ouvidos. Isso fez com que os documentos que mostravam a posse e a tradicionalidade da terra não fossem anexados ao processo”. As decisões estão sendo contestadas pelo movimento indígena, pelo Ministério Público e também pela União.
A perspectiva dos produtores
“A demarcação aqui está fadada ao fracasso porque não há terras que estavam ocupadas por indígenas em 1988”, sentencia Gustavo Passarelli, advogado da Famasul, a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul. Segundo ele, depois do julgamento de Raposa Serra do Sol “o posicionamento jurisprudencial tem dado alento” aos proprietários rurais, principalmente porque o marco temporal “trouxe um delineamento muito claro e objetivo”. “Imagine o nível de insegurança jurídica caso se pretendesse demarcar aldeias indígenas em territórios urbanos?”, compara. Durante a entrevista, Passarelli traçou diversos paralelos entre os proprietários de títulos incidentes em territórios reclamados por indígenas e os brasileiros em geral. “Se retrocedermos aos períodos mais pretéritos da nossa história, obviamente que todos, enquanto sociedade, somos responsáveis porque aqui eles [indígenas] estavam quando os colonizadores chegaram”, argumentou, concluindo: “O discurso de que é importante [demarcar] deve ser situado em um cenário de apego à realidade”.
E a realidade para a entidade de produtores ligada à Confederação Nacional da Agricultura (CNA) se resume a um corolário: os direitos indígenas não podem se sobrepor ao direito à propriedade privada no Brasil. Mesmo que um retorno ao passado demonstre que o título de propriedade em questão teve origem em graves violações. “No Mato Grosso do Sul os indígenas foram deslocados de seus territórios pelo próprio poder público”, acata o advogado que, contudo, localiza esses fatos no longíquo século 19, logo após a Guerra do Paraguai [1864-1870]. “Havia um intento governamental de povoar as fronteiras do país. Aqui, especificamente, a ocupação não pode ser vista como esbulho de posse indígena porque foi fruto de um movimento provocado pela própria União”. Seguindo essa linha de raciocínio, Passareli expressa a “perplexidade” dos fazendeiros do Mato Grosso do Sul que “em pleno século 21” veem sua “situação documental sendo questionada por laudos antropológicos com base exclusivamente em relatos de indígenas”.
A fala do advogado é uma amostra da estratégia do agronegócio: a desqualificação de tudo que se refere ao procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, instituído em 1996 pelo decreto 1.775. Lá estão previstas todas as etapas de um processo que se inicia na Funai, com a contratação do antropólogo, profissional responsável pela elaboração do laudo que deve apresentar os dados que embasam a reivindicação de que uma determinada terra é tradicionalmente habitada por um ou mais povos indígenas. A esse trabalho, realizado por meio de visitas ao território, levantamento bibliográfico, entrevistas com indígenas, dentre outros, se soma o levantamento fundiário, que mostra a chamada “cadeia nominial” dos imóveis afetados pela demarcação e teria a função de apontar, por exemplo, se uma determinada fazenda é fruto da grilagem de terras. Tudo isso gera o relatório circunstanciado, que traz as informações sobre os limites de demarcação da terra indígena e deve ser assinado pelo presidente da Funai.
A partir daí, no mundo ideal das leis, uma decisão governo federal deveria ser tomada em menos de 200 dias. Isso porque o decreto estabelece uma série de prazos para os órgãos e envolvidos no procedimento, Funai e Ministério da Justiça. Cabe ao ministro aprovar ou rejeitar a proposta de demarcação. Caso a resposta seja afirmativa, é publicada uma portaria declaratória que determina a demarcação da terra indígena. Sem prazo estabelecido, a última etapa do processo é a publicação do decreto de homologação pelo presidente da República. A partir daí, a terra indígena é registrada na Secretaria de Patrimônio da União e no cartório da comarca onde se localiza a área.
Hoje, nenhuma das fases do procedimento escapa à contestação dos fazendeiros que inundam o Judiciário com pedidos de liminares e reintegrações de posse. “A Funai quer entrar na minha fazenda para fazer uma investigação, mas eu não concordo com isso porque acho que minha terra não é indígena. Eu vou confiar no processo administrativo da Funai ou eu vou discutir na Justiça?”, provoca Passareli, que resume as críticas: “O processo administrativo da Funai é realizado aos olhos da parte contrária [aos proprietários] com pouca transparência e com resultados que invariavelmente levam à demarcação”. A pressão dos ruralistas, por fora e por dentro do governo federal, tem levado a um emparedamento da Funai por todos os lados.
Paralisação e morosidade no Executivo
A judicialização dos atos administrativos que sustentam o processo demarcatório é hoje o principal argumento do Executivo contra as acusações de “morosidade” e “paralisia”. Pesa sobre o governo Dilma Rousseff a menor média anual de homologações do período democrático. São 2,7 decretos publicados por ano, contra dez de Lula, 18 de Fernando Henrique, nove de Itamar Franco, 56 de Collor e 13 de Sarney. Em 2013, por exemplo, não houve uma homologação sequer. “Antes, o governo dizia que não dava para prosseguir com alguns processos porque decisões judiciais impediam o procedimento. É legítimo o Executivo não se contrapor a decisões já tomadas. Mas hoje o governo faz mais do que isso. Não prossegue porque supõe que o Judiciário vá caçar sua decisão. Ou seja, o governo está se antecipando a uma ação que pode vir a acontecer”, afirma Cleber Buzatto.
O assessor especial do ministro da Justiça para a questão indígena, Flávio Chiarelli, rebate: “Os procedimentos não serão supostamente contestados na Justiça; eles já estão sendo e a maioria das áreas conta com decisões judiciais que paralisam ou anulam o procedimento. Vide Ñanderú Marangatú. O processo foi finalizado pelo Executivo em 2005 e há dez anos está paralisado por decisão do STF”, respondeu por e-mail. Buzatto lembra que as decisões judiciais não impedem que o Executivo “dê seguimento àquilo que é de sua responsabilidade”. “O que não pode é o governo jogar a responsabilidade no colo do Judiciário para tentar legitimar sua posição política de não prosseguir com os procedimentos de demarcação”, critica.
Hoje, existem 32 processos encaminhados pela Funai que aguardam decisão do Ministério da Justiça e da Casa Civil. E pelas contas da Apib, são mais de 300 pedidos de demarcação parados na Funai sem nenhuma providência. “O MJ está promovendo a análise técnica dos processos encaminhados pela Funai, de modo que a edição de portaria declaratória não seja invalidada pela Justiça. Vale ressaltar, nesse sentido, que a penúltima terra indígena declarada pelo ministro da Justiça (Jaraguá), em maio de 2015, apesar de todo o cuidado levado a efeito pelo Executivo, já foi alvo de três liminares que suspenderam os efeitos da portaria declaratória. Essa situação, se replicada às demais áreas, não garantirá a efetivação dos direitos constitucionais dos indígenas à terra”, afirmou Chiarelli.
Medidas insuficientes frente à crise
Após os últimos ataques no Mato Grosso do Sul, o ministro José Eduardo Cardozo anunciou duas medidas, consideradas insuficientes pelas fontes ouvidas pela reportagem. Em 10 de setembro, criou um Grupo de Trabalho que, no prazo de três meses, deve apresentar um relatório. Segundo Flávio Chiarelli, o grupo não pretende aproveitar estudos já realizados pela Funai. “A ideia é analisar o contexto geral, não um caso específico”. Também não foi estabelecido um cronograma de trabalho, pois segundo o assessor, será uma agenda “dinâmica” de acordo com a disponibilidade dos participantes. Também foram criadas cinco mesas de negociação, referentes aos territórios Cachoeirinha, Taunay Ipégue, Arroio Korá, Potrero Guaçu e Ñanderú Marangatú. “As mesas consistem em reuniões com os diretamente afetados pelas demarcações e com as comunidades indígenas interessadas”, informa Chiarelli, que esclarece que os critérios de escolha levam em consideração “o tempo dos procedimentos e não só o grau de conflito, mas a possibilidade real de solução da questão”.
O movimento indígena aponta que essa resposta do Ministério da Justiça se repete após cada conflito que ganha mais espaço na mídia, mas sempre com resultados inócuos. “No nosso entendimento, esses grupos de trabalho e essas mesas de diálogo instaladas pelo governo federal são apenas uma forma de protelar. É uma farsa para dizer que está se tentando resolver, buscar alternativas. As informações todo mundo já tem, todo mundo já sabe. O certo seria pegar a demanda da terra demarcada e assinar as portarias, assinar o decreto, isso sim resolveria o problema. Mas isso não acontece porque há uma decisão do governo federal de não demarcar terra indígena. Isso é fato, já está mais do que claro e comprovado. Eles estão cedendo à pressão dos setores econômicos, dos produtores, do agronegócio, dos latifundiários, dos fazendeiros. Está clara a aliança forte entre o poder político e o poder econômico”, critica Sônia Guajajara. O procurador Marco Antonio Delfino também caracteriza como “protelatórias” as mesas de negociação instituídas pelo Ministério da Justiça no auge dos conflitos fundiários. “Essas iniciativas já foram tomadas, não levaram a lugar nenhum e não vão dar certo de novo. O pressuposto é protelar quando o necessário é decidir. Pessoas vão continuar morrendo e o clima de tensão vai permanecer”.
Retomadas
Em agosto de 2014, José Francisco Santos, da etnia tupinambá, foi morto numa emboscada no município de Ilhabela, Bahia, na área conhecida como Serrinha. Em abril, não muito longe dali, Chicó Tupinambá havia sido vítima de um ataque cometido de madrugada contra sua aldeia. Morreu dormindo, perfurado por mais de 20 tiros. O que liga esses crimes a todos os outros descritos nessa reportagem é a opção política pela retomada de territórios tradicionais. “A retomada é o último recurso do índio quando não tem mais o que fazer. Há um ‘esboçamento’ do poder governamental de levar a questão indígena aos extremos para ver se [nos] desestimula a cobrar nossos direitos. É um processo monstruoso que leva toda a sociedade envolvente a ficar com ódio das comunidades indígenas. O governo faz de uma forma que as pessoas odeiem quem luta por direitos”, lamenta Babau Tupinambá, cacique da Serra do Padeiro, uma das várias aldeias que integram a Terra Indígena Tupinambá de Olivença. Com processo demarcatório iniciado em 2004 e concluído em 2009 pela Funai, a declaração da TI aguarda decisão do ministro da Justiça, que segundo os últimos dados da Funai, só recebeu o relatório em maio de 2014.
Não por acaso. Em fevereiro daquele ano, “prevenir o agravamento do conflito” entre fazendeiros e indígenas justificou uma medida extrema da presidente Dilma Rousseff, que decretou Estado de Exceção. A escalada das tensões, no entanto, foi resultado da opção por ‘resolver’ a contenda pela via da militarização. Em janeiro, depois de cumprir reintegração de posse em uma fazenda localizada na Serra do Padeiro, a Polícia Federal e a Força Nacional montaram uma base no interior do território tradicional, o que resultou em diversos relatos de violações contra os indígenas. De 2004 até agora, foram 75 assassinatos entre os tupinambás. Segundo babau, os relatos são os mesmos: chegam homens encapuzados à noite, matam e incendeiam as casas. “São realmente grupos de extermínio que atuam para intimidar a luta do povo. O que chama atenção é que a Polícia Federal não quer investigar. Num raio de 23 quilômetros, foram 18 pessoas assassinadas em quatro meses. Teoricamente seria fácil rastrear quem são os assassinos. Mas a polícia nunca convocou ninguém daquela região nem para depor. Só mandou buscar os cadáveres e pronto. É a omissão do Estado generalizada. Não querem prender os assassinados e querem deixar os índios como culpados da sua própria morte por terem feito retomada”, critica.
“O povo cansa. Todo mundo já está no limite do diálogo, da espera, de tudo. Daí a decisão da retomada. O lema é: se vamos morrer pela falta da terra, é preferível morrer lutando por ela”, diz Sônia Guajajara. Ela explica que por trás dessa deliberação, há um sentimento disseminado de que “os órgãos públicos só enxergam quando há uma situação a ser resolvida”. Ao lado da vigília permanente em Brasília, com revezamento de delegações prontas a protestar no Congresso, na Esplanada ou em frente à sede do Supremo, as retomadas são vistas como estratégias locais de mobilização. “Se muitos povos hoje estão na terra, foi conquista da retomada. Se esse é o meio para se conseguir, é isso que os povos decidiram fazer”.
Além de Brasília, o movimento indígena tem denunciado à comunidade internacional as graves violações aos direitos cometidas pelo Estado com o intuito de expor o governo brasileiro, acusado de vender lá fora uma imagem falsa. Em setembro de 2015, também lançaram a campanha pedindo o boicote aos produtos do agronegócio do Mato Grosso do Sul, onde “21 milhões cabeças de gado ocupam 20 milhões de hectares, enquanto os 46 mil Guarani Kaiowá se espremem em 35 mil hectares”. A mensagem é clara: um boi vale mais do que uma vida. Perguntado sobre como tem ânimo diante de tantas ameaças simultâneas, Lindomar Terena, da Apib, deu o seguinte recado: “A gente não vai parar. Historicamente nunca houve um momento em que se pudesse dizer ‘está maravilhoso para os povos indígenas’. Sempre foi difícil e não será diferente daqui para frente. É claro que hoje temos a perspectiva de um grande retrocesso. Mas a gente acredita que os povos indígenas já resistiram por cinco séculos, e continuarão resistindo por mais cinco. A tentativa de que no ano 2000 não existisse mais povos indígenas no Brasil fracassou. Foi um engano. Está aí a população indígena com 305 povos, 274 línguas diferentes e nós vamos continuar lutando”.
Maíra Mathias, Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV / Fiocruz
in EcoDebate, 05/01/2016
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