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MPF denuncia ação etnocida do Estado brasileiro e pede intervenção judicial em Belo Monte

 

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Depois de extensa investigação, procuradores concluem que o projeto de desenvolvimento do governo brasileiro promove a destruição da organização social, costumes, línguas e tradições de povos indígenas

O Ministério Público Federal iniciou processo judicial na Justiça Federal em Altamira em que busca o reconhecimento de que a implantação de Belo Monte constitui uma ação etnocida do Estado brasileiro e da concessionária Norte Energia, “evidenciada pela destruição da organização social, costumes, línguas e tradições dos grupos indígenas impactados”. A ação etnocida comprovada por longa investigação do MPF acaba por ser potencializada com a recente permissão de operação, por conta do descumprimento deliberado e agora acumulado das obrigações de todas as licenças ambientais que a usina obteve do governo.

Por isso, a ação do MPF pede também a decretação de intervenção judicial imediata, por meio de uma comissão externa, sobre o Plano Básico Ambiental do Componente Indígena de Belo Monte, o chamado PBA-CI, ou Programa Médio Xingu, que foi aprovado pelos órgãos licenciadores mas está sendo implementado de maneira totalmente irregular pela Norte Energia. A intervenção, de acordo com a proposta do MPF, promoveria a readequação dos programas e funcionaria como uma auditoria externa independente para garantir a transição da situação atual, de ilegalidade e ação etnocida (onde deveria haver mitigação e compensação), para uma situação em que o dinheiro público que financia a obra seja efetivamente usado em benefício dos povos afetados por ela.

O Comitê Interventor, ou Comitê de Transição para o Programa Médio Xingu “deve ser custeado pela Norte Energia e composto por equipe multidisciplinar, com membros indicados pela FUNAI, pela ABA (Associação Brasileira de Antropologia), pela SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), pelo CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), por entidades indigenistas e da sociedade civil, com participação paritária de indígenas e acompanhamento do Ministério Público Federal”. Além disso, a Norte Energia terá que comprovar que tem como garantir os recursos necessários para implementar o programa durante os 35 anos do contrato de concessão de Belo Monte.

No total, a ação do MPF faz 16 pedidos liminares à Justiça para mudanças na condução de Belo Monte, incluindo estudos complementares para os novos impactos causados pelas ilegalidades do licenciamento e a obrigação de arcar com medidas de reparação por perdas sociais e culturais, assim como pelos abalos causados aos povos indígenas impactados. A Justiça pode determinar perícias antropológicas em todas etnias afetadas para determinar que tipo de reparação é necessária para cada povo.

A ação judicial foi concluída após longa investigação em que estiveram envolvidos procuradores da República e peritos do MPF em várias áreas. No total, o processo tem 50 volumes de documentos e dados que comprovam os efeitos trágicos de Belo Monte sobre os povos indígenas afetados e demonstram como, em vez de ser protegidos, eles foram violados em suas tradições culturais e enfrentam a possibilidade concreta de desaparecimento, pela forma como o licenciamento ambiental foi conduzido, mesmo que tais riscos e danos já estivessem indicados no Eia-Rima e expressamente mencionados no licenciamento.

Para o MPF, a ação etnocida suportada pelos nove povos indígenas afetados por Belo Monte foi causada de um lado pela falta de rigor do governo no licenciamento da usina: sob o manto do interesse nacional, as obrigações foram postergadas ou modificadas de acordo com a conveniência da empresa responsável pelo empreendimento, a Norte Energia S.A. Por outro lado, o próprio governo, ao deixar de cumprir as suas obrigações – como fortalecer a Funai e o Ibama e retirar invasores de terras indígenas – contribuiu diretamente para a destruição cultural das etnias.

A ação do MPF afirma ainda que a forma como até agora a Norte Energia e o governo brasileiro conduziram a implantação de Belo Monte viola frontalmente o sentido da Constituição de 1988, porque evidencia a manutenção de políticas assimilacionistas, que forçam a destruição cultural de grupos indígenas, mesmo que tais práticas já tenham sido proibidas pela legislação brasileira. “O que está em curso com a usina de Belo Monte é um processo de extermínio étnico, pelo qual o governo federal dá continuidade às práticas coloniais de integração dos indígenas à sociedade hegemônica”.

Essas práticas, lembra o MPF, foram banidas do ordenamento jurídico em 1988, porque, “respaldadas num positivismo evolucionista, naturalizaram o processo de integração dos silvícolas à sociedade hegemônica como uma trajetória linear de um suposto melhoramento sócio-moral de grupos arcaicos, detentores de um estado sociopolítico e cultural transitório, que necessariamente deveria se extinguir e se incorporar à civilização superior”.

Em um resumo das irregularidades demonstradas pela investigação, o MPF afirma que “a usina de Belo Monte conclui seu ciclo de instalação sem que os territórios indígenas estejam protegidos, sem a estruturação do órgão indigenista para cumprir sua missão institucional, com a fragmentação e revisão unilateral do PBA-CI e sem a criação do Programa Médio Xingu, que garantiria ao PBA a capacidade mitigatória necessária para tornar esse empreendimento viável”.

Além de todas as falhas, o MPF aponta como especialmente trágico o Plano Emergencial aplicado pela Norte Energia nas terras indígenas do médio Xingu entre 2010 e 2012, com a distribuição indiscriminada de mercadorias entre os índios, que se configurou como uma política de pacificação e silenciamento em tudo similar aos momentos de maior violência da colonização do território brasileiro. (veja vídeo do MPF sobre o plano emergencial)

“Resta amplamente demonstrado que a usina de Belo Monte põe em curso um processo de eliminação dos modos de vida dos grupos indígenas afetados, ao não impor barreiras às transformações previstas e acelerar ainda mais a sua velocidade com ações homogenizantes e desestruturantes”, conclui a ação enviada pelo MPF à Justiça.

O processo ainda não tem numeração.

Íntegra da ACP

Irregularidades encontradas na investigação do MPF
O que deveria ter sido feito de acordo com as licenças e qual é a situação hoje
Proteção territorial indígena
Foi prevista como ação essencial para evitar invasões, roubo de madeira e outros recursos florestais, além de proliferação de doenças e perdas culturais previstas com a implantação da usina. Deveria ter sido implantada em 2012, antes do início das obras. A Norte Energia até hoje não implementou nada. Há entrada indiscriminada de não-índios em todas as terras indígenas. Como resultado, houve uma explosão do desmatamento ilegal em terras indígenas, sendo que a TI Cachoeira Seca é considerada a mais desmatada do Brasil atualmente.
Fortalecimento do órgão indigenista
Deveria ser prévio ao início das obras. Em vez disso, em 2012, pouco antes do começo de Belo Monte, foram retirados os postos da Funai de todas as aldeias indígenas. O MPF tem ação judicial específica sobre esse tema na Justiça, que pede a reestruturação física e a contratação de pessoal, mas o governo nunca cumpriu a decisão liminar. Como resultado, a Funai hoje tem 72% menos funcionários para atuar com os nove povos indígenas afetados. Em 2011 eram 60 servidores, hoje são meros 23. Com isso, a Norte Energia tratou diretamente com os índios durante toda a obra, o que evidencia a promiscuidade entre público e privado no licenciamento, já que a empresa tem interesses diretamente antagônicos aos direitos dos povos afetados.
Regularização fundiária de Terras Indígenas
A obrigação de regularizar as terras dos povos afetados por Belo Monte figura como condicionante da obra desde a primeira licença em 2010. Até hoje, quase nada foi cumprido. Todas as medidas dependem única e exclusivamente do governo brasileiro: a homologação e extrusão (retirada de invasores) da Terra Indígena Cachoeira Seca; a extrusão e demarcação física da Terra Indígena Paquiçamba; a conclusão do processo de extrusão da Terra Indígena Arara da Volta Grande, a garantia de acesso dos Juruna da T.I. Paquiçamba ao reservatório de Belo Monte.
Plano Emergencial
“O que vulgarmente ficou conhecido como ‘Plano Emergencial’ foi um caminho à margem das normas do licenciamento, definido longe dos espaços legítimos de participação e protagonismo indígena, por meio do qual o empreendedor obteve o êxito de, ao atrair os indígenas aos seus balcões, mantê-los longe dos canteiros de obras de Belo Monte, mesmo sem cumprir condicionantes indispensáveis. Uma política maciça de pacificação e silenciamento, que se fez com a utilização dos recursos destinados ao etnodesenvolvimento. E que, dos escritórios da Eletronorte aos balcões da Norte Energia, rapidamente atingiu a mais remota aldeia do médio Xingu”, com danos nem sequer dimensionados, mas já presentes.
Assim o processo do MPF descreve o Plano Emergencial, que deveria ter implementado ações voltadas ao etnodesenvolvimento, para sustentabilidade alimentar e econômica dos povos indígenas afetados, de acordo com as características culturais próprias e o tempo de contato com a sociedade envolvente. No lugar disso, foi estabelecido um balcão de negócios na cidade de Altamira, sob controle direto e exclusivo da empresa Norte Energia, onde eram distribuídos todos os meses, R$ 30 mil para cada aldeia, em mercadorias.
Como resultado, índios que muitas vezes nunca tinham estado na cidade foram obrigados a se deslocar com frequência até Altamira, muitos pararam de plantar e pescar, as aldeias ficaram entupidas de lixo, houve proliferação de várias pestes por causa do lixo, doenças como hipertensão, obesidade e diabetes começaram a surgir com a modificação da alimentação tradicional, a mortalidade infantil disparou, assim como o alcoolismo, o consumo de drogas e a prostituição, o atendimento à saúde foi inviabilizado – nem vacinas os profissionais conseguiam distribuir nas aldeias vazias por conta da necessidade de deslocamento contínuo para Altamira.
Barracos
Fora das normas do licenciamento e com a Funai sem pessoal suficiente para fiscalizar, a Norte Energia passou a construir casas sem nenhuma adequação às culturas indígenas nas aldeias do médio Xingu. Foram dezenas de casas – barracos de madeira cobertas com telhas de fibrocimento, assemelhadas às casas de favelas urbanas – construídas sem nenhuma fiscalização nem da Funai nem do Ibama.
O saldo da construção irregular de dezenas de casas nas aldeias é considerado pelo MPF como de extrema gravidade. Há um caso de uma índia de 17 anos, grávida de operário que não tinha autorização para ingresso em Terra Indígena, utilização de mão de obra indígena sem contrato formal, desorganização das atividades produtivas nas aldeias, despejo de resíduos de construção, derrubada de madeira sem autorização. A própria Funai emitiu relatório em que considera que “a execução inadequada das ações provocou, em algumas terras indígenas, impactos mais severos e significativos que o próprio empreendimento”.
PBA-CI-PMX (Plano Básico Ambiental – Componente Indígena – Programa Médio Xingu)
Diante do caos gerado pelo plano emergencial e tendo necessidade de obter a Licença de Instalação, em 2012 a Norte Energia S.A apresentou o chamado PBA-CI-PMX (Plano Básico Ambiental – Componente Indígena – Programa Médio Xingu). Construído por uma equipe de profissionais com experiência com povos indígenas, o PBA foi aprovado pelos órgãos licenciadores – Ibama e Funai e foi base essencial para a concessão da Licença de Instalação.
“Com o Programa Médio Xingu, a Norte Energia pretendeu fazer prova de que seria possível a implementação viável da hidrelétrica, num conjunto de obrigações do agente público e do agente concessionário, em que ações de Estado seriam executadas com aporte de recursos provenientes do financiamento da hidrelétrica”, lembra a ação do MPF. Mas foi só até a obtenção da LI. Logo depois, concluiu a investigação do MPF, o PBA foi corrompido e fragmentado por ação deliberada da Norte Energia, tornando-se fonte de novos conflitos, com risco real de não haver mitigação nenhuma dos impactos de Belo Monte.
A Funai aprovou o PBA e deu 30 dias para que a Norte Energia apresentasse um plano operativo com cronograma para instalação do PBA. Em vez disso, a empresa apresentou um plano que suprimiu projetos atividades e ações, além de reformular objetivos, o que é irregular. O plano apresentado nem sequer contava com um responsável técnico, como é obrigatório. Por conta disso, a Funai teve que passar um total de 9 meses pressionando a Norte Energia para que adequasse o plano operacional ao que tinha sido aprovado como PBA. Mesmo assim, na última versão apresentada, a empresa se sentiu livre para reduzir, por sua conta e risco, as obrigações que tinha. A Funai acabou aprovando o plano operacional com ressalvas, para evitar que as ações continuassem paralisadas, o que só agravava a situação de etnocídio.
São vários exemplos de ações previstas e que a Norte Energia se recusou a cumprir no plano operativo. No caso da educação escolar indígena, a empresa reduziu propositalmente suas obrigações a apoiar as secretarias de educação e elaborar materiais didáticos. No caso da saúde indígena, a concessionária de Belo Monte respondeu ao Ministério da Saúde, mais de uma vez, que não cumpriria determinada ação “por entender que não era de sua competência” ou “por não estar contemplada no plano operativo”.
Em análise do corpo de peritos do MPF comparando o PBA aprovado pelas autoridades e o plano operativo feito pela empresa, 37 ações de saúde indígena foram apagadas unilateralmente pela empresa.O resultado foi que até agora (dezembro de 2015), concedida a Licença de Operação para Belo Monte, as ações de saúde indígena mal foram iniciadas, apesar da gravidade dos impactos já registrados, desde aumento da mortalidade infantil até o surgimento de doenças como alcoolismo, hipertensão e DSTs, que nunca tinham sido registradas em áreas indígenas.
Para o MPF, a Norte Energia conseguiu reescrever, de acordo com a sua conveniência, o Plano Básico Ambiental que tinha sido aprovado, no que dizia respeito aos indígenas. O governo brasileiro não teve capacidade nem demonstrou interesse de coibir a ilegalidade dessa situação. O MPF diz ser evidente que ao apresentar o Plano Básico Ambiental, a empresa queria obter a autorização para iniciar as obras. Mas nunca teve intenção de cumpri-lo. “A nova roupagem (o plano operativo) da concessionária é, em verdade, uma forma ilegítima e deliberada de reduzir gastos – desta que é a obra mais cara aos cofres públicos da história do Brasil – economizando nas ações socioambientais”, diz a ação judicial.

Informações do Ministério Público Federal no Pará, in EcoDebate, 11/12/2015

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