‘Cerrado em Pé: a Vida brota das Águas’ – Carta de Correntina
Por ocasião da Semana do Cerrado, reunimo-nos em Correntina-BA, de 07 a 11 de setembro de 2015, em Mobilizações nas Comunidades e Escolas, no IV Seminário e na II Romaria do Cerrado, representantes de comunidades geraiseiras, fundos e fechos de pasto, quilombolas, estudantes, professores, agentes pastorais, sindicalistas, gestores públicos, vereadores, militantes socioambientais do campo e da cidade, de entidades e movimentos populares, do Oeste Baiano e de outras regiões. Contamos no seminário com 82 pessoas, de 21 entidades. Na romaria, cerca de 2.000 pessoas, de 24 municípios.
Trocamos informações e experiências sobre a situação dos Cerrados em que vivemos e que lutamos para defender, e combinamos novas estratégias e ações para avanço desta luta. Visitamos a comunidade geraiseira de Salto, próxima à cidade, e nos animamos com sua defesa do território, com suas matas, águas e tradições culturais e religiosas. Percorremos as ruas da cidade em romaria clamando a Deus e às pessoas de bem pela defesa dos Cerrados que restam. Por esta carta dirigimo-nos às autoridades, aos nossos parceiros e aliados e ao povo geral para dar conta destas atividades e do que elas nos instigaram a denunciar e anunciar. “Se eles se calarem, as pedras gritarão!”, diz o Evangelho de Lucas 19, 40.
Em menos de 50 anos, o avanço do agronegócio nos Cerrados, em especial no Oeste Baiano, consumiu cerca de metade do que a natureza gastou milhões de anos para criar e existia há 65 milhões de anos! É sombrio e angustiante constatar a destruição do bioma mais antigo, central no Brasil, decisivo para a existência dos outros biomas que no conjunto fazem a riqueza natural única e um dos diferenciais deste País. Nossa última esperança era que a crise hídrica atual, pela primeira vez generalizada em todas as regiões, e as mudanças climáticas globais nos levassem a cessar a destruição do Cerrado, berço de nossas águas e de toda vida. Mas não é o que esta Semana do Cerrado nos revelou!
O governo Federal, nessa linha de ataque aos Cerrados, institucionalizou a mais nova fronteira agrícola brasileira, antes denominada MAPITOBA, agora MATOPIBA. Sob o discurso de substituir a pecuária extensiva pela agricultura de alta tecnologia, sem novos desmatamentos e com inclusão das populações locais a se tornarem “classe média rural”, faz o marketing sustentável do definitivo avanço do agronegócio sob os Cerrados que restam nos estados do Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia. Mal disfarçando sua submissão ao setor ruralista capitaneado pela Ministra Kátia Abreu, mais uma vez estará o governo a serviço da acumulação capitalista nacional e global, agora a exportar água embutida em grãos, dando-lhe o suporte financeiro, infraestrutural, tecnológico e legal. Minimizando a população tradicional e camponesa e seus territórios nos Cerrados, considera como tais apenas o que consta nos seus precários registros.
Nessa mesma linha, o governo do Estado da Bahia se entrega aos interesses do agronegócio no Oeste sob a liderança da AIBA – Associação dos Irrigantes da Bahia, engessando os órgãos de licenciamento, outorga de água, controle e fiscalização ambiental (CEPRAM, CRA, INEMA, SEMA), chegando ao extremo de conceder licenças automáticas autodeclaratórias, via internet, a serem posteriormente checadas. Como, se sucateia o aparato ambiental do Estado, algo denunciado publicamente pelos próprios funcionários? Municipaliza licenciamentos, mas corta o poder fiscalizador dos municípios em questões ambientais. Absurdos desmatamentos e outorgas de água têm sido concedidos sob a autoridade do Secretário de Meio Ambiente do Estado, Eugênio Spengler, um inimigo do Cerrado e do meio-ambiente, cuja permanência no governo, que se diz de “esquerda”, só o desabona e desacredita.
90 % das licenças concedidas no Estado da Bahia, em 2015, foram no Oeste, justamente no nascedouro e áreas de recarga dos rios que abastecem a população da região e perenizam o São Francisco, à míngua a olhos vistos. Por outro lado, ignora e se omite diante dos numerosos casos de grilagem de terras públicas de posse centenária de comunidades camponesas, com jagunçagem e violências que lembram os anos 1970/80, quando a Bahia tinha dos piores índices de violência no campo.
Some-se a isso a quantidade imensa de barragens e PCHs – Pequenas Centrais Hidrelétricas projetadas em praticamente todos os rios do Oeste, com conflito já estabelecido com as populações ribeirinhas, além de parques eólicos gigantescos em topos de morros, muitos em áreas tradicionais de fundos e fechos de pasto, e usinas termoelétricas à base de biomassa, no município de São Desidério. Para que e para quem tanta energia e a que custo social e ambiental para quem pagar?
Os casos mais escabrosos aqui na Bacia do Rio Corrente são os das Fazendas: Mizote, que postula o desmatamento de 25.000 hectares nas margens do Rio Santo Antônio; Sudotex, que já perfurou 19 poços de alta vazão que abastecerão 10 piscinões com capacidade de 190.000.000 (cento e noventa milhões) de litros cada para irrigação agrícola; AgroBrasil, que se autodeclara o maior laticínio do País, com o confinamento de 200.000 (duzentos mil) vacas leiteiras importadas para a produção de 1.000.000 (um milhão) de litros de leite por dia. Este abuso dos mananciais contrasta com os cuidados que as crises hídrica e ambiental exigem e que até o Papa Francisco propõe.
Em consequência destes desmandos, comunidades que há séculos convivem em interação com o Cerrado estão fragilizadas, cercadas pelo avanço destes projetos econômicos baseados na supressão de matas e sucção de águas, justos os elementos imprescindíveis para a existência delas e do bioma tão vital. Indignação e revolta é o sentimento diante da percepção de que o Estado é o facilitador e financiador de muitos destes projetos de morte. Nossa débil democracia ainda mais se deslegitima diante desta perversão do sentido do Estado, nos vários poderes e níveis enredado em corrupção e troca de favores.
Em nome desta gente que fala e entende a língua das matas, das águas, dos bichos, do tempo, dos ventos, da gente que ama o Cerrado e o protege, conforme demostrado exaustivamente nestes dias, propomos às pessoas de bem e às organizações sociais, politicas, educacionais, religiosas, profissionais UMA ALIANÇA EM DEFESA DO CERRADO, a conter este avanço predatório eco e genocida sobre ele.
Propomos que o sistema educacional adote orientação ambiental, condizente com o bioma em que está inserido, desde o primeiro ingresso do aluno até a conclusão da sua formação, que o transforme em cidadão/ã socioambiental consciente e ativo no seu meio. Quanto ao professorado, que sua formação continuada o capacite para esta tarefa, com garantia profissional e trabalhista, parte de seu contrato, sem cortes salariais ou outras penalizações.
Precisamos vencer a verdadeira “guerra da informação” instalada, com uso criativo dos meios disponíveis, inclusive a internet e suas cada vez mais presentes “redes sociais”, contra o monopólio da mídia empresarial a serviço do agronegócio, indispondo a opinião pública contra as comunidades tradicionais e os trabalhadores/as do campo e da cidade e suas organizações representativas e os movimentos sociais.
Projetos de Leis carecem urgentemente serem propostos e aprovados em todos os níveis legislativos para proteger as nascentes e áreas de recarga dos rios do Cerrado, impedindo que seja desmatada sua vegetação nativa e sugados seus aquíferos. Do mesmo modo, temos que empatar os retrocessos legais em tramitação no Congresso Nacional contra o meio-ambiente e os povos tradicionais que o protegem.
Com apoio da sociedade, os fundos e fechos de pasto dos Cerrados e das Caatingas precisam superar os retrocessos da Lei Estadual No 20417/2013, que reconhece o direito territorial destas comunidades, mas através de “concessão real de uso” e não como “propriedade coletiva”, que é o que praticam há séculos, e ainda lhes impõe o exíguo prazo de auto-identificação até 2018. Somos testemunhas que estas comunidades são vitais e estratégicas para a sobrevivência dos Cerrados.
O que está em curso hoje nos Cerrados é um ecocídio e, por decorrência, um genocídio, contra o Povo dos Gerais, que deles dependem para existir e nisto o defendem como podem – do que também tivemos vários exemplos nas atividades desta Semana. Denúncias desta situação precisamos levá-las em nível internacional, uma vez que não conseguem repercussão suficiente em nosso próprio País.
Conclamamos à luta pessoas e entidades parceiras e aliadas, do Oeste Baiano e dos outros estados que têm o privilégio e a responsabilidade dos Cerrados. De modo especial, nos agregamos às forças progressistas nos estados do Maranhão e Piauí e Tocantins para dizer não ao MATOPIBA. Dispomo-nos a fazer o que for preciso para que a vida que ainda brota das águas dos nossos Cerrados em pé continue a deles fluir. Jamais valerá a pena transformar tanta vida em capital de uns poucos. Deus está conosco!
Correntina, às margens do Rio Correntina, 11 de setembro de 2015, Dia do Cerrado.
Colaboração de Ruben Siqueira [sociólogo, Comissão Pastoral da Terra / Bahia, Articulação Popular São Francisco Vivo], in EcoDebate, 15/09/2015
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Nós que lemos diariamente o EcoDebate somos testemunhas do empenho do Ruben Siqueira na defesa do meio ambiente. Parabéns por mais este artigo!
Gostaria, no entanto, de fazer uma observação. Ele critica a água virtual usada pelo agronegócio.
O agronegócio é uma atividade que muito tem ajudado o país nesses meses de crise. Afinal, é o setor que mais vem contribuindo para que a recessão não se manifeste de forma ainda mais cruel.
Como qualquer outra atividade, o agronegócio necessita de água. No entanto, a quantidade a ser outorgada é competência do comitê da bacia em que o empreendimento esteja localizado.
Gostaria que o Ruben esclarecesse a questão da outorga de águas que, segundo ele, é feita pelo secretário do Meio Ambiente do Estado. Afinal, a Lei 9.433 é muito clara ao definir que a outorga de água é competência do respectivo comitê de bacia.
Ao povo de Correntina, BA.,
Considero de grande importância o Seminário e as mobilizações ocorridas, mas devo dizer que, se existe um Deus que possa influir na qualidade climática e ambiental do planeta Terra e, particularmente, do cerrado brasileiro, esse Deus não está a serviço do meio ambiente e da vida, ou seja, não devemos contar com ele para proteção do cerrado, pois ele deve está a serviço do capitalismo, o qual, desde a Revolução Industrial, ocorrida na segunda metade do século XIX, vem devastando o planeta Terra, e, há evidências de que ele seguirá seu rumo de destruição até quando ocorrer o colapso total, que impossibilite a permanência da vida na Terra.
O desenvolvimento do agronegócio, como todo o desenvolvimento econômico capitalista, corresponde à devastação do meio ambiente, com todas as consequências que lhe são inerentes: desflorestamento, morte de rios, alterações climáticas, poluição das terras, das águas e do ar, etc.
Meu caro Valdeci,
Embora você tenha demonstrado não ser do tipo religioso, vou citar uma parábola evangélica: é preciso separar o joio do trigo.
O agronegócio é absolutamente necessário ao progresso do país. Não se deve confundir o agronegócio com um latifúndio improdutivo.
A propósito, como gostam de dizer os agrônomos, é difícil saber o que causa mais males à sociedade: o latifúndio ou o minifúndio.
Continuo insistindo com o Ruben: Por que os comitês de bacia da Bahia não estão se responsabilizando pela concessão de outorgas para uso da água?
Paulo Afonso,
Este não se trata de um artigo meu, mas da Carta de Correntina, resultante da Semana do Cerrado (Mobilizações nas Comunidades e Escolas, no IV Seminário e na II Romaria do Cerrado), acontecida lá entre de 07 e 11 de setembro de 2015.
O agronegócio, que avança se beneficiando da crise e de maciço apoio do Estado (financiamento, rolagem da dívida, pesquisa, infraestrutura, isenções etc.), salva a quem da crise? Não emprega mão-de-obra, não produz comida, mas commodities, e domina as decisões políticas, que se não fossem submissas aos seus interesses poderiam realizar soluções mais reais e eficientes e menos danosas para a crise que tem muito de fabricada! Cuidado para não aderir, por desconhecimento, à “marcha dos insensatos”:
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/Agronegocio-a-marcha-dos-insensatos-ate-2025/3/34493
Cuidado com a crítica ao minifúndio, pois é a agricultura familiar que produz o que comemos:
http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2015/07/agricultura-familiar-produz-70-dos-alimentos-consumidos-por-brasileiro
Quanto a quem dá outorga de água é a ANA – Agência Nacional de Águas para os mananciais de domínio federal e os órgãos estaduais de recursos hídricos no caso dos mananciais de domínio estadual. Veja: http://www.inema.ba.gov.br/atende/outorga/
Os comitês de bacias hidrográficas, compostos (em desequilíbrio!) pelo estado, usuários e sociedade civil, decidem os critérios e os preços das outorgas.
Boa sorte!