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Outras faces da corrupção, artigo de Maíra Mathias

 

Para além dos esquemas de apropriação indébita de dinheiro público, a corrupção sinaliza a forte presença de interesses privados no Estado.
  O Instituto Datafolha realizou um levantamento durante o protesto que reuniu mais de 200 mil pessoas na Avenida Paulista em São Paulo no dia 15 de março deste ano. O objetivo era apontar os principais motivos que levaram as pessoas à manifestação, a maior entre as várias que aconteceram em diversas capitais do país na data. O resultado? Quase metade dos manifestantes respondeu que estava ali para protestar contra a corrupção. Outra pesquisa, também do Datafolha, divulgada pouco antes das eleições de 2014, apontou que a corrupção era vista como o principal problema do país para 27% dos entrevistados, à frente de temas como a educação e o desemprego. Não é à toa. Hoje é impossível ligar a TV ou abrir um jornal sem se deparar com algum escândalo de corrupção. Cartéis formados por empresas para fraudar licitações, superfaturamento de obras, pagamento de propinas, lavagem de dinheiro, contas secretas mantidas em paraísos fiscais. A cobertura jornalística das investigações de casos de corrupção coloca no primeiro plano o desvio e apropriação indébita de recursos públicos. Mas será que as consequências da corrupção são unicamente financeiras?  E, indo mais longe: o que chamamos de ‘esquemas de corrupção’ não podem ser interpretados como manifestações concretas da presença permanente dos interesses privados no Estado?

No Brasil, a funcionalidade da corrupção vai além da dimensão econômica. Uma rápida retrospectiva permite revelar que o tema se prestou a projetar novas lideranças políticas e desestabilizar governos. O político e jornalista fluminense Carlos Lacerda se serviu da imagem do “mar de lama” da corrupção para virar a opinião pública contra o então presidente, Getúlio Vargas. Anos mais tarde, Jânio Quadros seria eleito para o cargo mais alto da República porque se propunha a “varrer a corrupção”. O combate ao comunismo e à corrupção foram os argumentos dos militares para o golpe de 1964 e o primeiro presidente eleito por voto direto após a ditadura, Fernando Collor, foi escolhido para “caçar os marajás”, embora ele próprio tenha acabado “cassado” pelo povo sob denúncias de corrupção.

“Se por um lado o tema da corrupção é apropriado, conduzido e discutido de uma forma extremamente conservadora, é inegável que consegue mobilizar as pessoas de maneira impressionante. É uma pena porque acho que o termo ‘corrupção’ é falho, atrapalha mais do que ajuda, empobrece mais do que explica, mas a apropriação do Estado por entes privados merece uma discussão por parte da esquerda”. A análise, do historiador Pedro Henrique Campos, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), é um dos pontos de partida dessa matéria.

No centro do palco, os empresários

O cientista político Fernando Filgueiras, Coordenador do Centro de Referência do Interesse Público da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), relata que os primeiros estudos sobre a corrupção datam dos anos 1950. A abordagem funcionalista, que predominou por duas décadas, relacionava a corrupção a práticas políticas típicas de sociedades tradicionais, como o clientelismo, o nepotismo e o fisiologismo. De acordo com Filgueiras, como o problema central era o “atraso” de alguns países, o importante era entender se a corrupção era um entrave ou fazia parte do processo de desenvolvimento. “O que os autores dessa abordagem apontam é que a corrupção pode ser funcional ao desenvolvimento, por poder ‘azeitar’ as relações políticas entre o governo e os empresários e pacificar as clivagens sociais, contribuindo, assim, para estabilidade política”, diz ele.

A partir de 1980, há o predomínio de uma abordagem essencialmente econômica, de viés neoliberal, que seguiu um receituário conhecido: a corrupção estaria ligada ao tamanho do Estado, grande demais, e seria decorrente da “ineficiência” da administração pública. A receita seria menos Estado, que deveria passar a se pautar pela lógica privada, e mais mercado. O panorama da América Latina ou da Rússia na década de 1990, quando foram levadas a cabo privatizações de diversos setores, seria o melhor contra-argumento na opinião de Filgueiras, que ressalta que os estudos sobre corrupção ainda “estão engatinhando”. “Não há ainda dados empíricos concretos. Temos que partir da premissa de que os esquemas de corrupção ocorrem em segredo e, o que vem a público, na forma de escândalo, são esquemas que deram errado. Como não conhecemos o real tamanho da corrupção e sua abrangência, é difícil não apenas medi-la, mas também relacionar sentidos de causalidade”.

Jogar os holofotes sobre agentes públicos e políticos corrompidos é uma tradição de longa data que, durante muito tempo, deixou na coxia empresários e agentes privados corruptores em geral.

Na manifestação do dia 12 de abril, ficou cristalizada a imagem de um cartaz que dizia que “sonegação não é corrupção”. A opinião comum de que o empresário brasileiro é obrigado a sonegar impostos se não quiser fechar as portas se choca com informações reveladas por duas grandes investigações em curso. A primeira delas ultrapassa muitos territórios: trata-se do vazamento de informações sobre contas secretas abertas na filial suíça do banco HSBC. Os documentos revelaram que a instituição financeira atraiu 106 mil clientes, entre suspeitos de sonegação e de diversos crimes (incluindo traficantes e terroristas) em 203 países entre os anos de 1988 e 2007. A quantia somada chegou a 100 bilhões de dólares. Nomes de 8.667 brasileiros estão na lista, dentre eles, donos de empresas que constantemente se dizem deficitárias, como o empresário Jacob Barata, conhecido como o “rei dos ônibus” no Rio de Janeiro.

A segunda investigação é a Operação Zelotes, realizada pela Receita Federal, Polícia Federal, Ministério Público Federal e Corregedoria do Ministério da Fazenda, que examina a sonegação em processos que somam 19 bilhões em tributos. Destes, pelo menos R$ 5,7 bilhões foram desviados, segundo os investigadores. O esquema atuava no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão da Fazenda que julga recursos contra tributações aplicadas pela Receita. Lá, empresas de consultoria que tinham como sócios conselheiros ou ex-conselheiros do Carf vendiam “serviços” de redução ou desaparecimento de débitos. As propinas eram usadas para manipular o resultado dos julgamentos. Entre seus clientes, grandes empresas como Santander (R$ 3,3 bilhões), Bradesco (R$ 2,7 bilhões), Gerdau (R$ 1,2 bilhão), incluindo na lista a afiliada da Rede Globo, RBS, com R$ 672 milhões de impostos perdoados sob suspeita. “A sonegação no Brasil é muito maior do que a corrupção. Esse grupo que foi à rua nas manifestações de 2015, pelo seu perfil socioeconômico, estaria dentro dessa composição social potencialmente sonegadora. Essas pessoas acham que não estão sendo corruptas, mas o Estado, sim, é visceralmente corrupto e violento”, observa Francisco Fonseca, professor do curso de Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo.

A percepção do Estado como algo à parte, separado da sociedade, é o primeiro obstáculo para uma compreensão mais abrangente da corrupção. O historiador Pedro Henrique Campos lembra que o entendimento comum de que o Estado se pauta por uma lógica diferente daquela que existe na sociedade não tem nada de óbvio. Ao contrário, faz parte da leitura e do projeto de mundo de tradições teóricas como o liberalismo. “O Estado é fruto da sociedade, foi criado por ela para mediação social. Nesse sentido, ele reproduz a lógica dominante na sociedade e é atravessado pelas dinâmicas e contradições sociais que o conformam”, afirma.

Um exame mais detido sobre a configuração histórica que dá as bases da relação entre Estado e sociedade, portanto, é tarefa fundamental para avançar no debate de problemas como a corrupção. Marcela Pronko, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), ajuda a entender: “Numa perspectiva marxista, compreendemos que o Estado capitalista é um estado de classes e tem, acima de todas as funções, que assegurar e reproduzir a dominação de classe. Isso implica resguardar os interesses da classe dominante, que são continuar dominando, mas também reproduzir as condições que favorecem essa dominação, portanto, reproduzir as condições de obter sempre maiores lucros”.

Se o Estado no capitalismo tem como principal tarefa garantir a acumulação de capital — em outras palavras, apropriação por poucas pessoas dos recursos resultantes do trabalho de muitas —, a corrupção pode ser compreendida como um dentre diversos mecanismos que facilitam esse processo. “Entre os empresários, e o caso do Carf está mostrando isso, vigoram práticas de corrupção, sonegação de impostos, todos mecanismos para ampliar as margens de lucro em detrimento da arrecadação pública e do fundo público”, observa Pedro Henrique. Nesse sentido, a corrupção seria estrutural: “Existem várias formais legais de corrupção, diversos mecanismos de apropriação de recursos públicos por entes privados. A corrupção não é uma exceção, não é um caso à parte, embora seja tratada pela imprensa na forma de ‘escândalos’. Se ampliamos um pouco o que entendemos por ‘corrupção’, constatamos que a lógica capitalista está prevalecendo tanto nos casos ilegais, quanto nos casos legais”, avalia o historiador.

 Mitos da corrupção

A corrupção pode ser estrutural, mas ela não é natural. “Boa parte dos autores que estuda corrupção no Brasil relaciona a corrupção ao atraso, ao patrimonialismo, a uma confusão entre público e privado latente na sociedade brasileira”, diz Pedro Henrique. A percepção de que circulam no país um conjunto de falsas explicações para a corrupção que tendem a empobrecer o debate público impulsionou o cientista político Francisco Fonseca a fazer uma lista dos ‘mitos’ mais recorrentes. “Esses mitos cumprem a função de encobrir o entendimento da corrupção como fenômeno político, mascaram a desigualdade social histórica no país e a utilização do Estado pelas e para as elites”.

Uma linhagem de mitos repousa em questões étnicas e culturais. A corrupção no Brasil teria começado com o próprio Brasil, ou seja, seria fruto da colonização portuguesa, essencialmente patrimonialista. Essa ‘herança maldita’ explicaria nosso ‘atraso’. Ao contrário, a colonização anglo-saxã teria legado um espírito mais comunitário. No fundo, ressalta Fonseca, um argumento que se baseia na suposta inferioridade da cultura e dos povos ibéricos. De forma semelhante, a corrupção endêmica estaria ligada à ‘cultura’ brasileira. De acordo com essa visão um tanto eugenista, a miscigenação de vários povos teria como resultado a cultura do ‘jeitinho’, que não separa a esfera pública do espaço privado.

Outros mitos sustentam que a corrupção é um problema essencialmente moral. Há o moralismo seletivo, que atribui a determinados grupos que chegam ao poder deformidades de caráter incorrigíveis, enquanto outros estariam “a salvo” desse “mal”. Segundo o cientista político, há ainda outra interpretação mais generalista, de que o poder corrompe sempre. Os eleitores estariam separados das pessoas que elegem, problema com implicações semelhantes à separação entre Estado e sociedade.

Outro mito é o de que a corrupção seria consequência da falta de educação ou de uma educação de má qualidade. Quem frequentou ‘boas’ escolas, portanto, estaria vacinado e até mais apto para votar, o que, segundo Fonseca, “contrasta com inúmeros padrões educacionais elitistas”. “Achar que a instituição escolar será a vanguarda da sociedade é uma ingenuidade que a pedagogia já superou há muito tempo. É claro que a escola é um lugar privilegiado de reflexão, mas depende fundamentalmente de como está organizada, quais são os valores predominantes. E, mesmo assim, nada garante que será diferente da sociedade”.

O mito da ‘terra de ninguém’ fecha a lista de Francisco Fonseca. O Brasil seria um país sem lei ou instituições capazes de fiscalizar e punir os casos de corrupção. Esse mito desconsidera os avanços institucionais que aconteceram no país desde 1988. “É importante notar o novo papel do Ministério Público, com poderes inéditos na história brasileira; a recente criação das Defensorias Públicas estaduais, que contribuem para a melhoria do acesso à Justiça pelos mais pobres; as funções fiscalizatórias da Corregedoria Geral da União; as revisões no papel dos tribunais de contas, entre tantas outras instituições e marcos legais organizados em torno dos conceitos de controles internos, externos e sociais”, afirma.

Saudades da ditadura: vai passar?

A pesquisa Barômetro das Américas aponta uma tendência que vem se acentuando nos últimos anos. Os dados mais recentes, de 2014, revelam que em países como Paraguai, México, Peru e Colômbia, assim como no Brasil, mais de 45% dos entrevistados acreditam que existe justificativa para golpe militar diante de muita corrupção. Quem acompanhou as manifestações que aconteceram em diversas cidades do país nos dias 15 de março e 12 de abril certamente não teve dificuldades em identificar cartazes estampados com pedidos de “intervenção militar constitucional” ou “SOS” dirigidos ao exército dos Estados Unidos. “No Brasil, em 1964, a justificativa para o golpe de Estado e para o estabelecimento de uma ditadura cruel e autoritária foi o combate ao comunismo e à corrupção”, lembra Fernando Filgueiras, que observa que o mesmo ocorreu em toda a América Latina, onde, segundo ele, perdura “uma mistura entre oportunismo de elites políticas, que trazem o tema da endemia da corrupção para o centro do discurso visando vitórias eleitorais, com uma baixa estruturação dos procedimentos democráticos”.

No caso brasileiro, a transição política “lenta, gradual e segura” que, com a Lei da Anistia, isentou o regime de responder legalmente pelos assassinatos, desaparecimentos e torturas, também teria deixado intocada no imaginário popular a versão de que os militares combatiam a corrupção. “A ditadura militar brasileira teve um impacto muito grande, sentido ainda nos dias de hoje em vários sentidos. Do ponto de vista das instituições políticas, ela rebaixou o poder civil e o manteve tutelado, desestruturou completamente os órgãos de fiscalização do Estado, foi um regime profundamente corrupto mas que não se deixava mostrar”, afirma Francisco Fonseca.

O caso das empreiteiras ontem, na ditadura, e hoje, na democracia, pode ajudar a derrubar o mito e entender de que maneiras a corrupção é indissociável da dinâmica capitalista. No livro ‘Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar’, Pedro Henrique Campos recuperou a teia de relações constituídas entre empresas e os vários ministérios e agências estatais, principalmente nos setores de transportes, energia e habitação. O título faz referência à música ‘Vai Passar’, gravada em 1994 por Chico Buarque, em que o compositor fala das “estranhas catedrais” erguidas no país das “tenebrosas transações”.

Segundo o livro, é a partir da década de 1930, e, principalmente, no governo Juscelino Kubitschek [1956-1961], que as empreiteiras tomam novo porte e passam a atuar em todo território brasileiro. Elas também passam a desenvolver parcerias e se organizar no âmbito da sociedade civil. Fazem um sindicato da construção pesada, uma câmara brasileira da construção e passam a atuar coletivamente de maneira política combinada junto ao Estado e à sociedade. Segundo ele, essa atuação tem papel decisivo nos anos subsequentes.

Baseado em farta documentação, o trabalho mostra que a transformação de agências públicas em “feudos” de determinadas empresas era fato notório, denunciado inclusive por firmas concorrentes que se sentiam prejudicadas, como no caso da Companhia Elétrica do Estado de São Paulo (Cesp), que em contratos de grandes hidrelétricas — como Jupiá e Ilha Solteira, que, antes de Itaipu, eram as maiores do país —, favoreciam as construtoras paulistas, em especial, a Camargo Corrêa. O mesmo acontecia em Minas Gerais, que durante décadas favoreceu a mineira Mendes Júnior. Outro episódio lembrado é a chegada de Antônio Carlos Magalhães à presidência da Eletrobrás, o que garantiu boas condições para a fundação da OAS, de propriedade do genro do político, César Matta Pires, que arrebatou uma série de contratos de miniusinas.

Ilegalidades trabalhistas, com mortes e acidentes de operários nos canteiros de obras, se somavam a outros tipos de manobras. Uma fonte anônima citada pelo livro afirma que o “bom empreiteiro” é aquele que cria a necessidade da obra e, na fase da construção, a transforma num bom negócio, o que significa fazer aditivos que podem superar em centenas de vezes o valor inicial do contrato. “A lógica é a mesma do capitalismo: maximizar lucros, neutralizar a concorrência e dividir seus frutos com os agentes públicos e privados que se dispusessem a viabilizá-la ou acelerar seu pagamento”, reforça Pedro Henrique.

Se já falamos que a transição ‘lenta, gradual e segura’ foi boa para os militares, o mesmo pode ser dito em relação aos empresários. “É uma transição feita do alto, com tentativa de limitar ao máximo a participação popular”, afirma o historiador, que destaca que para manter a posição privilegiada, as empreiteiras se adaptaram à nova lógica do sistema político brasileiro: “Se elas eram sócios da ditadura, agora financiam as eleições e partidos políticos, coordenam bancadas nos legislativos, assegurando apoio para aprovação de projetos favoráveis, recursos de emendas parlamentares, dentre outras ações”.

O nó do financiamento empresarial

As doações de empresas privadas para campanhas eleitorais foram proibidas em 1965 pela Lei Orgânica dos Partidos Políticos. Em 1971, os militares proibiram esse tipo de doação a partidos e, em 1974, a compra de espaço na televisão e no rádio foi vetada tanto a partidos quanto a candidatos. Ao longo da abertura política, as primeiras eleições diretas para governos estaduais (1982), prefeituras das maiores cidades (1985) e presidência (1989), em tese, deveriam ter seguido essas regras. Não foi isso o que aconteceu. O escândalo que levou ao impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello revelou como as empresas, a despeito da proibição, colocavam dinheiro nas candidaturas de sua preferência. Pouco tempo depois, em junho de 1993, foi a vez de Paulo Maluf: a Receita Federal descobriu que o político recebeu doações de empreiteiras para campanhas ao governo do estado, em 1990, e à prefeitura de São Paulo, em 1992.

Mas, como sabemos, o debate sobre a mudança no financiamento do sistema político tomou o rumo do mercado. As doações foram liberadas em 1995, quando o Congresso Nacional aprovou a nova Lei Orgânica dos Partidos. Em 1997, a Lei das Eleições estabeleceu alguns limites para essas doações: 10% do que foi declarado ao Imposto de Renda no ano anterior para pessoas físicas e 2% do faturamento, no caso das empresas. Dependendo do porte da companhia, contudo, esse percentual pode significar centenas de milhões de reais, caso das maiores doadoras de campanhas.

Os dados parciais das doações realizadas por empresas para as eleições de 2014 revelam uma assimetria difícil de ser rompida pelo voto do cidadão. Metade dos valores veio de 19 empresas. A maior doadora foi a JBS, dona da marca Friboi, que desembolsou R$ 113 milhões. Ainda no setor de alimentação, a Ambev, dona das marcas Brahma, Skol e Antarctica, doou R$ 41,5 milhões, a quarta maior quantia. O setor financeiro tem dois representantes no ranking das dez maiores doadoras: o Bradesco e o BTG Pactual, que doaram, respectivamente, R$ 30 milhões e R$ 17 milhões. O setor da construção foi o que mais doou: juntas, as grandes empreiteiras foram responsáveis por R$ 300 milhões em doações, 30% do total. Entre elas, as principais foram OAS, com R$ 66,8 milhões, Andrade Gutierrez, com R$ 33 milhões, a UTC Engenharia, R$ 29 milhões. Queiroz Galvão, com R$ 25 milhões, e Odebrecht, com R$ 23 milhões doados.

Da mesma forma que a lei não estabeleceu limites fixos para as doações, tampouco as campanhas têm um teto e, a cada eleição, vão ficando mais caras. Segundo o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCEE), em 2002 os gastos totais de campanhas somaram R$ 800 milhões. Em 2010, o valor saltou para R$ 4,9 bilhões. Em comparação, na França – país que proíbe a doação empresarial –, campanhas para presidência e legislativo somaram 30 milhões de dólares em 2013. Voltando ao Brasil, os cálculos do MCEE mostram que a eleição de um governador custa, em média, R$ 23,1 milhões; um senador, R$ 4,5 milhões; um deputado federal, R$ 1,1 milhão – sem contar com o caixa dois. “Quem tem mais dinheiro vai formatar melhor aquele produto para vender e isso é um paradoxo da democracia representativa. As elites econômicas e políticas percebem a soberania popular unicamente como um instrumento, o voto, para legitimar seus espaços de poder. Não temos mecanismos de democracia direta e participativa para dar limite a isso, o que resulta em um processo democrático altamente elitizado, robotizado, localizado no momento da disputa eleitoral através de estratégias de marketing”, observa José Antônio Moroni, um dos coordenadores da Coalizão pela Reforma Política Democrática e do Instituto e Estudos Sócio-Econômicos (Inesc).

Ao mesmo tempo em que aprovou as doações privadas, a nova lei dos partidos também criou o Fundo Partidário, montante de recursos públicos definido pelo Congresso anualmente. Contudo, o fundo também traz embutido um desequilíbrio: 95% dos recursos são distribuídos de acordo com a porcentagem de votos nas últimas eleições para a Câmara dos Deputados, sendo apenas 5% divididos igualmente entre os 32 partidos que existem hoje, o que penaliza os partidos menores que não são contemplados com financiamento empresarial, além de perpetuar a lógica de que o partido que foi melhor na eleição passada tenha que ser priorizado no próximo pleito. Em 2015, em meio ao ajuste fiscal do governo federal, repercutiu mal a decisão dos parlamentares de triplicar o repasse ao Fundo. Serão R$ 867,5 milhões contra R$ 289,6 milhões em 2014.

Os recursos do fundo, por maiores que sejam no caso dos grandes partidos, têm participação insipiente no financiamento das campanhas. Desde 2002, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) disponibiliza as informações enviadas por partidos e candidatos para prestação de contas. As últimas estatísticas consolidadas, de 2010, revelam que 75% dos recursos doados nas eleições foram provenientes de pessoas jurídicas.

As “doações ocultas” são outro aspecto que deve ser levado em conta quando se fala do impacto do financiamento de empresas na política. É assim chamado o dinheiro doado a partidos por empresas que não querem ser associadas diretamente aos candidatos que financiam. O partido recebe a doação e aplica os recursos na candidatura de preferência da empresa. A manobra inviabiliza estudos que cruzam doações e decisões parlamentares, como o divulgado pela última Poli em relação aos planos de saúde. Segundo levantamento do site Congresso em Foco, em 2012, as campanhas para as prefeituras das capitais somaram R$ 212,5 milhões. Desse montante, R$ 158,9 milhões foram contabilizados como doações ocultas, o que corresponde a R$ 75 de cada R$ 100 doados.

Outro aspecto importante é a relação entre financiamento privado e sucesso nas eleições. O MCEE mostra que dos 513 deputados federais eleitos em 2010, 72% foram os que mais gastaram nas campanhas nos seus estados (em média 12 vezes mais do que o restante dos candidatos não eleitos, mas, em alguns estados, até 30 vezes mais). Outro estudo que analisou o período entre 2002 e 2006 mostrou que 320 parlamentares receberam doações de apenas 5% das empresas que financiaram campanhas, revelando que, além da desigualdade entre candidatos, outra faceta da influência das empresas nas eleições é a formação das “bancadas”, grupos de parlamentares que defendem determinados interesses, como aqueles das empresas privadas da área da saúde ou do agronegócio. O retorno desse investimento para as empresas foi calculado pelo Instituto Kellogg Brasil: a cada real investido na eleição de um político, a empresa obtém R$ 8,50 em contratos públicos.  “A política é feita da disputa de interesses, sobretudo, no capitalismo. Assim como as empresas, através de entidades como a CNI [Confederação Nacional da Indústria], pautam o Executivo e o Legislativo, também os trabalhadores procuram pautar seus interesses. Se esse é o pano de fundo, há que se reconhecer uma grande assimetria. O poder de determinados grupos é infinitamente maior do que o de outros”, afirma Francisco Fonseca, dando como exemplo a entrada dos transgênicos no país e, mais recentemente, a regulamentação da terceirização. José Antônio Moroni concorda: “O financiamento privado faz com que a política se submeta à lógica do interesse privado de várias formas. Isso não se dá unicamente, como às vezes se pensa, durante as eleições, no financiamento das campanhas e dos partidos. Essa é a porta de entrada para os interesses privados, que vão se plasmando em determinadas políticas públicas desde sua concepção até a implementação”, argumenta.

Ainda segundo Moroni, outra consequência do financiamento empresarial é fechar a porta dos espaços de poder para determinados segmentos da população. “O fato de o Congresso ser formado, em sua maioria, por homens, brancos, proprietários, heterossexuais, cristãos tem a ver com a apropriação privada do espaço público da política. E o que dá sustentação a isso é o financiamento empresarial de campanha que favorece que, nos espaços de poder, a maioria pertença a uma determinada classe social, a um determinado grupo. Isso inviabiliza a representação das mulheres, dos negros, dos homossexuais, dos indígenas, etc”.

Reforma contra a política

Quando se trata da reforma política, há um consenso de que a mudança com maior potencial de emperrar as engrenagens da corrupção seria o fim do financiamento empresarial para campanhas e partidos. O Instituto Internacional pela Democracia e Assistência Eleitoral (Idea, na sigla em inglês) constatou uma tendência mundial nessa direção: ao todo, 39 países, incluindo França, Canadá e Portugal, proíbem essas doações. Por aqui, o Congresso Nacional tem empenhado suas forças na direção oposta. Esta edição foi fechada durante a votação do projeto que vem sendo chamado de contrarreforma política. Trata-se da Proposta de Emenda à Constituição 182, defendida com unhas e dentes pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que, dentre outras coisas, pretende tornar cláusula pétrea a participação de empresas no financiamento do sistema político brasileiro. Nem que, para isso, seja preciso votar duas vezes, como foi o caso. No dia 26 de maio, a proposta não passou por 44 votos (mudanças na Constituição exigem um mínimo de 308 votos). No dia seguinte, 27, a pressão do presidente da Câmara fez com que 71 deputados mudassem seus votos e a proposta fosse aprovada, com uma mudança no texto que causou outra trapalhada: ficou decidido que a doação de empresas vai exclusivamente para partidos políticos e os candidatos só poderão receber doações de pessoas físicas. Como os partidos são pessoas jurídicas, eles teoricamente ficariam impedidos de repassar as doações ocultas. Um grupo de 63 deputados entrou com mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal contra a mano-bra de Cunha que resultou na votação da mesma matéria duas vezes. Eles pedem a suspensão da votação da PEC até que o mandado seja julgado.

A Câmara rejeitou o distritão, defendido por Eduardo Cunha, que tornava majoritária a eleição de todos os parlamentares, ou seja, os mais votados seriam eleitos, acabando com o voto de legenda e a solidariedade entre membros do mesmo partido. Ficou mantido o sistema proporcional, que considera a votação do candidato e da legenda. Também ficou mantida a regra atual que permite coligações nas eleições proporcionais. No rol das mudanças aprovadas, consta a proposta que acaba com a reeleição de prefeitos, governadores e presidente da República, que só terão direito a um mandato de quatro anos, e a cláusula de barreira, proposta que retira o direito a tempo de televisão e recursos do Fundo Partidário de legendas que não elejam ao menos um deputado federal ou senador, o que vai impactar partidos programáticos de esquerda, como PSTU, PCO e PCB.

A reforma propõe ainda unificar o calendário eleitoral. Ou seja, do presidente da República ao vereador, todos os cargos seriam eleitos no mesmo dia. Especialistas apontam que, embora pareça mais simples, a unificação do pleito tende a concentrar a atenção dos eleitores nos cargos mais importantes, não sobrando muito espaço para o debate em torno das propostas das eleições municipais, por exemplo.

Um dos pontos mais controversos do projeto é a instituição do voto facultativo. Na análise de Francisco Fonseca, a medida está de mãos dadas com a lógica privatista e elitista de excluir os pobres da política. Ele acredita que o que está em jogo é a formalização da ‘plutocracia’, conceito que define um sistema político em que o poder se concentra na mão dos mais ricos. “É a plutocracia no sentido mais fiel dessa palavra. Se isso acontecer, estaremos retroagindo todas as lutas políticas brasileiras”. Para ele, em um país onde historicamente a população não confia nas instituições e no sistema político, o voto facultativo é a bala de prata: “A plutocracia fecharia o círculo: pela origem, via capital privado, e pela dinâmica, por meio do voto das classes médias e dos ricos”.

Se por enquanto a disputa do sentido da reforma política pende para o lado conservador no Congresso, mais de cem entidades da sociedade civil ainda batalham nas ruas a inclusão de outros critérios na pauta legislativa. O projeto de lei de iniciativa popular da Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas,  além de proibir a doação de pessoas jurídicas, a proposta limita a R$ 700 as contribuições de pessoas físicas, estabelece teto para os gastos de campanha e amplia o aporte de recursos públicos para o financiamento do sistema político. Além disso, propõe o voto em lista em dois turnos, um sistema que fortaleceria os partidos, que deveriam apresentar propostas para conseguirem votos no primeiro turno. No segundo turno, os eleitores escolheriam um candidato entre vários apresentados em uma lista do partido. O texto também propõe a paridade entre homens e mulheres nas listas partidárias e o fim das coligações proporcionais. O movimento já conseguiu coletar 700 mil assinaturas para o projeto de lei, que foram entregues a Eduardo Cunha em ato realizado no dia 20 de maio. Na prática, para a proposta ser formalizada no Congresso, são necessárias 1,5 milhão de assinaturas. Para Moroni, que é um dos coordenadores da Coalizão, a corrupção precisa começar a ser pensada a partir de uma reflexão sobre os espaços de poder. “As estratégias de combate à corrupção não podem ser centradas no indivíduo, pois a corrupção tem relação com as formas como a sociedade constrói seus espaços de poder e as formas de exercício desse poder. Portanto, a corrupção também é captura de um poder que deveria ser exercido sobre interesses públicos”.

Reportagem publicada na Revista Poli nº 40, de maio e junho de 2015

Maíra Mathias – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

Publicado no Portal EcoDebate, 22/06/2015

[cite]


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2 thoughts on “Outras faces da corrupção, artigo de Maíra Mathias

  • Sonia
    Quando descobrimos que um problema não tem solução, devemos abandonar pois só trás revolta.
    Pelo que estou podemos perceber, esta operação Lava _Jato é uma coisa bem dirigida para um setor da economia e pretende-se com esta investigação acabar com o setor de infraestrutura do pais e substituir por empresas multinacionais. as outras operações estão paralizadas como o BSBC, Heliciptero que pousou com 500 kg de cocaina na fazenda de Aecio, fraudes na receita federal etc. Veja este artigo e vamos discutir filosofia que tem algum valor para nós. Um abraço. joelcio

  • adir de jesus cardoso

    Sim, a corrupção brasileira se iniciou com o descobrimento do Brasil e suas Capitanias Hereditárias. Inciava-se o triste patrimonialismo. De pai para filho sempre. Mesmo desmobilizadas o costume permanece até hoje. Contam que na construção de Brasília, caminhões com mercadorias para as obras, passavam mais de uma vez com mesma carga e recebendo por cada entrada.

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