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Artigo

Água: crônicas de uma crise anunciada. A sede do progresso e o progresso da sede, por André Antunes

 

Risco de colapso no abastecimento de água expõe as fragilidades de um crescimento econômico predatório dos recursos naturais

 Calculadora de sonhos” é o nome de um simulador de consumo desenvolvido pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e divulgado no site da empresa em janeiro, no auge da crise da falta d’água no estado. A ferramenta foi uma tentativa de estimular medidas de economia de água entre a população. A ideia é simples: digamos que o cliente tenha um “sonho” de comprar determinado produto; o que a ferramenta faz é calcular quanto de água ele precisa economizar todo mês para juntar dinheiro suficiente para realizar seu “sonho”. Para usar o exemplo do próprio site da Sabesp, um cliente que consuma por mês mil metros cúbicos de água e obtenha uma redução de 20% no consumo vai deixar de pagar R$ 4.122 de conta de água e passar a pagar R$ 2.149, uma economia de quase R$ 2 mil reais por mês.

Digamos então que esse mesmo cliente tenha um “sonho”: economizar o equivalente ao lucro líquido da Sabesp, que em 2013 foi de R$ 1,9 bilhão. Reduzindo seu consumo em 20%, nosso cliente levaria 950 mil anos para arrecadar essa quantia. Não aguenta esperar tanto tempo? O jeito é ser mais humilde: que tal “sonhar” com o total de dividendos distribuídos pela Sabesp aos seus acionistas em 2013? Aí o tempo de espera é mais curto: são necessários apenas 267 mil anos.
Economizar água não é o melhor caminho para juntar essa fortuna, e a própria Sabesp demonstrou isso muito bem. Embora agora incentive os consumidores a adotar um “uso racional” da água frente à crise, a opção da empresa tem sido por empregar sua racionalidade não para preservar as já escassas fontes de água, mas sim para garantir os seus interesses econômicos. Reportagem da Agência Pública mostrou que a Sabesp assinou com empresas paulistas no ano passado 42 contratos de demanda firme, que estabelecem tarifas reduzidas para aqueles que se comprometem a pagar por um determinado volume mensal mínimo. Desses, 30 foram assinados a partir de março, quando a crise já se avizinhava. A reportagem ainda revelou que no último relatório para investidores, a Sabesp argumentou que “este esquema de tarifas ajudará a impedir que nossos clientes comerciais e industriais optem por passar a recorrer ao uso de poços privados”.

A Sabesp é uma empresa de capital misto desde 1994, quando houve o processo de privatização de 49,7% de suas ações, que a partir de 2002 passaram a ser comercializadas na Bolsa de Valores de São Paulo e Nova York. O restante ficou sob controle do governo estadual. De 2003 a 2013, a empresa distribuiu aos seus acionistas mais de R$ 4 bilhões em dividendos. Só que para muitos que observam a crise atual, esse modelo acabou prejudicando a qualidade do serviço prestado. Pesa contra a empresa a falta de investimentos para reduzir a dependência do Sistema Cantareira, que acabou sendo o pivô da crise.

Mas também não dá para colocar a culpa só na Sabesp. O governo do estado, acionista majoritário da empresa, ainda reluta em admitir a gravidade da crise (embora os jornais venham denunciando que em muitos bairros da periferia de São Paulo falte água em vários dias da semana), mesmo depois do vazamento do áudio de uma reunião da direção da Sabesp, em que o diretor metropolitano da empresa deu o tom da gravidade do problema: “Vamos dar férias para 8,8 milhões de habitantes e falar ‘saiam de São Paulo!’. Porque não vai ter água […] Quem puder compra garrafa, água mineral. Quem não puder vai tomar banho na casa da mãe lá em Santos”, disse Paulo Massato. Em janeiro deste ano ele chegou a aventar a necessidade de um rodízio de dois dias com água e cinco sem na região metropolitana.

Essa é apenas uma “pitada” de um ingrediente essencial para a receita da crise hídrica que atingiu em cheio o Sudeste de 2014 para cá: a má gestão dos recursos hídricos. Adicione um pouco de estiagem, com uma das maiores secas da história se abatendo sobre a região; acrescente uma boa dose de descaso com as políticas de recuperação da vegetação de áreas de mananciais e, por fim, o ingrediente final: imobilismo político em ano de eleição (afinal ninguém quer falar de assuntos incômodos como uma crise sem precedentes no abastecimento de água em meio a uma campanha eleitoral). Junte tudo isso, misture bem e está pronto o prato intragável que boa parte da população provavelmente vai ter que engolir a seco ao longo deste ano.

Mesmo com chuvas, reservatórios têm níveis críticos

A situação só não é mais alarmante porque tem chovido. Até janeiro, o nível da maioria dos reservatórios das regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais seguia trajetória de queda. A partir de fevereiro, a seca aliviou, as chuvas vieram e os reservatórios subiram de nível. As notícias sobre a crise sumiram dos noticiários da grande mídia. Mas não se engane: a situação ainda é bastante crítica. No momento em que esta edição estava sendo concluída, o site da Sabesp informava que o nível do Cantareira – que chegou a 5,1% no final de janeiro – residia no patamar de 17,1%. Só que há aí uma “pegadinha”: em maio e outubro de 2014, a Agência Nacional de Águas (ANA), responsável pela coordenação do sistema nacional de recursos hídricos, deu autorização para que a Sabesp captasse, duas cotas do volume morto da represa, a água que fica abaixo do nível das comportas e precisa ser bombeada. Com isso o volume da represa passou de 982 bilhões de litros para 1,269 trilhões, e a Sabesp começou a divulgar o nível de água remanescente a partir desse aumento da capacidade total do sistema. Assim, a empresa pôde divulgar que o nível do reservatório era de 17,1%, quando na verdade, se considerarmos apenas o volume útil da represa, vemos que já foram retirados 119,2 bilhões de litros de água a mais do que o total que o sistema comporta.

E faz diferença? Faz, se levarmos em conta que o volume morto tem esse nome por um motivo: ele não deveria servir para consumo, e sim para evitar que o sistema entre em colapso. “A altura de captação é decidida com base no cálculo de quanto posso retirar para não matar o sistema. Tirar mais dessa água vai começar a matá-lo. Esse é o risco que estamos correndo”, alerta Marussia Whately, coordenadora da Aliança pela Água, movimento formado por diversas entidades que se uniram para cobrar ações de enfrentamento à crise. Para piorar, há indícios de que a água do volume morto pode trazer riscos à saúde. Tanto que o Ministério Público de São Paulo ajuizou duas ações civis públicas contra a Sabesp questionando a captação de água do volume morto no Cantareira e no sistema Alto Tietê, que juntos abastecem mais de dez milhões de pessoas. Isso porque o uso do volume morto ameaça trazer à tona poluentes depositados no fundo da represa, que não são filtrados por sistemas tradicionais de tratamento de água. “Esse tipo de decisão foi adotada pela resistência do poder público em estabelecer medidas de redução de oferta de água ao longo do ano passado, que foi um ano perdido em relação à gestão preventiva”,  critica Marussia.

A situação não é muito diferente no Rio de Janeiro: dois dos quatro principais reservatórios que abastecem o estado a partir da captação de águas do Rio Paraíba do Sul chegaram a utilizar o volume morto em janeiro: o Paraibuna e o Santa Branca. Com as chuvas de fevereiro, os reservatórios subiram de nível, mas ainda estão em situação crítica: o Paraibuna conta hoje com pouco mais de 4% de seu volume útil, sem contar o volume morto; o Santa Branca tem 5,77% de seu volume útil. No total, o sistema que abastece 12 milhões de fluminenses, que conta ainda com os reservatórios Jaguari e Funil, está hoje com 12,88% de seu volume total. No mesmo período do ano passado, a situação era bem melhor: segundo dados da ANA, em março de 2014 o volume total do sistema girava em torno de 40% de sua capacidade.

Já o sistema Paraopeba, que abastece a Região Metropolitana de Belo Horizonte, também encontra-se num nível bem abaixo do esperado para essa época do ano: 35%, metade do nível do sistema no mesmo período de 2014. E o problema vai além. No Nordeste, que junto com o Sudeste concentra 75% da água consumida no país, a situação é parecida. De acordo com o Instituto Nacional do Semiárido (Insa), os 391 reservatórios da região têm hoje dez bilhões de metros cúbicos de água, 28% da capacidade total. Segundo o Insa, 50 reservatórios já entraram em colapso e outros 148 estão em estado crítico, com menos de 10% de sua capacidade de armazenamento. Mesmo se nos próximos meses a região receber um volume de chuvas dentro da média histórica, a previsão é de que a situação dos reservatórios piore ainda mais ao longo do ano.

O mar vai virar sertão?

O que mais apareceu até agora como solução foram as campanhas voltadas para fazer com que a população reduza seu consumo de água. E como mostrou uma notícia veiculada no portal G1 no dia 6 de fevereiro, elas podem ter efeitos desastrosos entre a população. Uma enfermeira da cidade de Araçatuba, no interior paulista, registrou um boletim de ocorrência na polícia contra uma motorista que tentou atropelá-la quando ela lavava a calçada de sua casa. A motorista teria gritado à enfermeira que ela estava “acabando com a água do mundo”. O incidente demonstra o grau de penetração desse discurso que aponta como solução para a crise o comportamento individual. Mas a verdade é que uma redução do consumo doméstico seria de pouco impacto numa crise, por mais que campanhas de estímulo à economia da água possam fazer parecer o contrário. Isso porque o consumo doméstico é responsável em média por apenas 10% do volume de água consumido no Brasil anualmente, segundo a ANA. A maior parte da água consumida no Brasil vai para a agricultura, com 70% em média. Mas é bom especificar: o grosso desse consumo não se dá na agricultura familiar, que produz mais de dois terços dos alimentos consumidos no país, e sim para o agronegócio, que produz as commodities cuja exportação mantém a balança comercial brasileira estável.

Segundo Paulo Petersen, assessor da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, o impacto do agronegócio sobre os recursos hídricos não se dá somente do ponto de vista da demanda, mas  do ponto de vista da oferta também. “Ao mesmo tempo em que consome muita água, o agronegócio degrada o solo, sobretudo aqueles onde estão localizadas as nascentes das principais bacias. Boa parte da água que abastece as maiores bacias hidrográficas da América do Sul vem do Cerrado. Ali é a fronteira de expansão do agronegócio, que vem degradando o solo com enorme velocidade”, diz Paulo. Com a substituição da vegetação nativa por monoculturas, continua, o solo dessas regiões perde a capacidade de armazenar água. “Essa é uma agricultura que consome muita matéria orgânica. Isso para solos tropicais é muito importante, porque eles dependem dela para manter sua estrutura, o que é uma condição para absorver a água da chuva. No momento em que você consome a matéria orgânica, esse ‘efeito esponja’ vai se perdendo, o solo vai ficando compactado e a água que cai, ao invés de infiltrar, escorre, provocando erosão”, explica.

Para quem acha exagero atribuir ao desmatamento do Cerrado a falta de água no Sudeste, saiba que tem muita gente que estuda a fundo a questão e afirma categoricamente que as duas coisas estão relacionadas sim. É o caso do professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Goiás, Altair Barbosa. Em entrevista publicada no site do jornal goiano Opção, Altair explica que é no Cerrado que se localizam grandes aquíferos que alimentam importantes bacias hidrográficas do continente sul-americano. Um exemplo é o aquífero Guarani, que alimenta a bacia do Paraná, que por sua vez contém a maior parte dos rios que banham os estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, incluindo o Pantanal. Esses aquíferos são grandes reservatórios de água absorvida pelo solo. Com a retirada da vegetação nativa para dar lugar às monoculturas e pastagens, esse processo fica comprometido. O efeito dominó que decorre disso traz sérias consequências para os territórios banhados pelos rios que nascem ali: Altair explica que com a redução na absorção da água da chuva, os aquíferos não vêm recebendo água suficiente, fazendo com que em média dez pequenos rios do cerrado simplesmente desapareçam a cada ano. “Esses riozinhos são alimentadores de rios maiores, que, por causa disso, também têm sua vazão diminuída e não alimentam reservatórios e outros rios, de que são afluentes. Assim, o rio que forma a bacia também vê seu volume diminuindo, já que não é abastecido de forma suficiente”, diz. Altair afirma que a vazão dos rios da bacia do Paraná vem diminuindo ano a ano. Para ele, essa é uma consequência direta da ocupação desenfreada das áreas de recargas de aquíferos do Cerrado pelo agronegócio a partir dos anos 1970. “Vai chegar um tempo, não muito distante, em que não haverá mais água para alimentar os rios. Então, esses rios vão desaparecer”, alerta.

Os rios aéreos da Amazônia

Se a água que vem do subsolo está se tornando cada vez mais escassa, o mesmo pode estar acontecendo com a água que cai na forma de chuva. E pelo mesmo motivo: o desmatamento para a abertura de novas fronteiras de expansão agropecuária. Estudos desenvolvidos no bioma amazônico vêm apontando a relação entre a perda de cobertura florestal e as interferências no regime de chuvas em regiões bem distantes dali, como o Sudeste do país. Antonio Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), faz, no artigo ‘Futuro Climático da Amazônia’, uma síntese da literatura científica sobre essa questão. Ele aponta que, desde a década de 1970, estudos mostram que a floresta mantém o ar úmido por mais de três mil quilômetros continente adentro, por um processo que chama de reciclagem de umidade. A água que cai na forma de chuva sobre a floresta é absorvida pelo solo e fica armazenada ali ou mais abaixo, nos aquíferos. Dali a água começa seu caminho de volta para a atmosfera, primeiro por meio das raízes profundas e depois através de tubulações nos troncos que levam a água até a copa. A água é liberada na forma de vapor para a atmosfera por meio da transpiração, processo pelo qual a planta regula sua temperatura interna, absorve gás carbônico essencial para a fotossíntese, ao mesmo tempo em que contribui para devolver à atmosfera vapor d’água misturado a gases orgânicos que cumprem papel fundamental no funcionamento da atmosfera e das chuvas. Segundo Nobre, uma árvore grande é capaz de bombear mais de mil litros de água por dia para a atmosfera. Com bilhões de árvores, a floresta é responsável pela liberação de uma quantidade de vapor maior do que a quantidade de água do rio Amazonas. Ele cita estudo da Revista Nature, que apontou que 90% da água que chega à atmosfera oriunda dos continentes vem da transpiração das plantas. Os processos de transpiração e condensação mediados pelas plantas interferem na pressão e na dinâmica atmosféricas, fazendo com que a umidade vinda do oceano penetre no interior do continente florestado. Boa parte da água que entra como vapor sobre a floresta vinda do oceano não retorna ao oceano por meio do rio Amazonas. A conclusão é que a Amazônia estaria exportando esse vapor para outras regiões do continente e irrigando outras bacias hidrográficas que não a do Amazonas. Análise na água da chuva que precipitou sobre o Rio de Janeiro encontrou indícios de que parte dela vinha não do oceano, mas da Amazônia. A essa massa de água que sai da Amazônia na forma de vapor para precipitar em regiões distantes como o Sudeste, Nobre chama de rios aéreos.

Zerar o desmatamento na Amazônia é, portanto, uma tarefa “para anteontem”, defende Nobre. A floresta, que já perdeu 20% de sua cobertura original, corre o risco de desaparecer se a perda chegar a 40%. Se isso acontecer, a alteração no clima será de tal monta que mesmo as florestas intactas tenderiam a dar lugar a outro tipo de vegetação mais adequada a um clima de savana. A demanda é particularmente importante num momento em que os índices de desmatamento da Amazônia voltaram a crescer, depois de apresentarem queda desde 2005. Segundo dados da Organização Não Governamental Imazon, entre agosto de 2014 e janeiro de 2015 foram desmatados 1,7 mil km² de floresta, 215% a mais do que no mesmo período entre 2013 e 2014.

Mineração: alta demanda por água

Nem só de agronegócio se faz um superávit na balança comercial. Tampouco se produz uma seca tão grave. Outro fator importante nessa equação é uma atividade que também desmata, consome muita água e polui: a mineração, setor responsável por um volume de exportações da ordem de US$ 47 bilhões no ano passado. Mas isso tem um preço: segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), os conflitos pela água aumentaram de forma vertiginosa na última década. De 20 casos em 2003, o número subiu para 104 em 2013, num total de 31 mil famílias atingidas. Um terço dos casos envolvem mineradoras.

A matéria de capa da Poli n° 38 tratou do tema da mineração, e trouxe o relato de um conflito gerado pela Vale na Serra do Gandarela, em Minas Gerais, numa região conhecida como Quadrilátero Ferrífero. Ali é produzido 60% do minério de ferro brasileiro. A serra abriga um enorme aquífero cuja capacidade foi estimada em 1,6 milhão de litros de água potável. Só que para chegar ao minério da Serra do Gandarela, a Vale precisa retirar e descartar uma cobertura de rocha porosa chamada canga, que é justamente a camada que absorve e filtra a água da chuva que vai se acumular no aquífero. Sua retirada inviabilizaria esse processo, colocando em risco o abastecimento de água na região. Organizados em torno do Movimento pela Preservação da Serra da Gandarela, moradores da região vêm desde 2009 lutando contra a instalação da mina.

A mineração utiliza muita água também no transporte, que em Minas Gerais é feito através de quatro minerodutos da Vale que levam o minério das minas até os portos de Ubu, no Espírito Santo, e do Açu, no Rio de Janeiro. “O que é transportado nesses minerodutos é uma polpa de minério e água, que é bombeada da mina até o porto. Quando chega ao porto, essa polpa é desidratada e a água é descartada no mar”, explica o professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Eduardo Barcelos. Segundo ele, os quatro minerodutos em atividade hoje em Minas consomem o equivalente a uma cidade de 1,6 milhão de habitantes. “Não dá para debater a crise da água sem falar dos minerodutos. Por que a gente os elegeu como forma de transporte de minério? Por que não pode ser por ferrovia?”, questiona Eduardo. Segundo ele, em 2012 o Brasil “exportou”, na forma de minérios, soja e grãos em geral, carne bovina e suco de laranja, 112 trilhões de litros de água. “Esse modelo extrativista que temos hoje de extração de recursos naturais e exportação de commodities é um debate que precisa ser incluído na crise da água”, diz.

O problema das barragens: o caso do Guapi-Açu

Dos conflitos pela água listados pela CPT em seu relatório, 46% foram causados pela construção de barragens e açudes. Um exemplo é um projeto que tem tudo a ver com a crise da água: a construção de uma barragem no rio Guapi-Açu, em Cachoeiras de Macacu, no estado do Rio de Janeiro. Ali o governo estadual pretende implantar um reservatório sob a justificativa de abastecer de água o leste metropolitano do Rio. O projeto está em pauta desde 2008, quando foi desenvolvido como uma das condicionantes exigidas pelo governo fluminense para o licenciamento do projeto de implantação do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj) pela Petrobras na cidade de Itaboraí. Com a previsão de que a região receberia um influxo grande de novos moradores e indústrias a partir da instalação do complexo, o projeto foi desenvolvido devido à constatação de que o sistema Imunana-Laranjal, que abastece as cidades de São Gonçalo, Niterói, Itaboraí e a Ilha de Paquetá, seria insuficiente para suprir a demanda.

Em 2013, o governo do estado emitiu decretos desapropriando os 2,1 mil hectares onde será construído o reservatório e também uma área para reassentar as três mil famílias atingidas. A mobilização do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) conseguiu no ano passado a suspensão da análise do licenciamento ambiental da obra junto ao Instituto Estadual do Ambiente (Inea). Este ano, no entanto, com a troca da equipe de governo após as eleições, o projeto voltou à baila. Agora não mais sob a justificativa do Comperj, cujas obras se encontram paradas devido ao escândalo de corrupção na Petrobras revelado pela Operação Lava-Jato, mas sim usando o argumento da crise hídrica. Segundo Eduardo Barcelos, o governo federal já deu sinal verde para a construção da barragem, para a qual serão destinados R$ 250 milhões.

Só que o vale onde se pretende instalar a barragem é dos mais férteis do estado. Um relatório produzido pela Associação dos Geógrafos do Brasil (AGB) sobre o projeto estimou que, com o alagamento da região, deixarão de ser produzidas 55 toneladas de legumes, frutas e hortaliças que abastecem o Ceasa de Irajá, um dos principais entreposto comerciais de alimento da região metropolitana do Rio. “Corremos o risco de um desabastecimento alimentar”, alerta Eduardo. Além disso, ele calcula que a construção da barragem irá desmobilizar uma cadeia produtiva que envolve cerca de 15 mil trabalhadores, do agricultor ao feirante. “Você vai desmobilizar 15 mil empregos diretos e indiretos de uma cadeia de produção de alimentos para gerar de forma temporária 700 empregos na construção da barragem”, destaca.

Para Gilberto Cervinski, coordenador do MAB, a solução passa por políticas de estímulo à recuperação e preservação da vegetação no Guapi-Açu. “O que defendemos é que se crie uma política de apoio a todas as famílias daquela bacia hidrográfica para a recuperação das nascentes, preservação das margens do rio para aumentar a sua capacidade, limpar a água. Isso aumentaria a capacidade de vazão de água de forma permanente”, defende. Eduardo Barcelos concorda. Para ele, o debate sobre a necessidade de recuperação do potencial de oferta de água das bacias hidrográficas tem sido ignorado. “Sabemos que as bacias do Sudeste foram historicamente degradadas por ocupação por pastagens, monocultura de cana e de café. Esses ciclos degradaram as bacias no sentido de remover a vegetação, destruir áreas importantes para reter água”, explica Eduardo. Exemplo disso é o Sistema Cantareira, epicentro da crise em São Paulo: dados da Aliança pela Água dão conta de que o sistema conta hoje com apenas 30% de sua vegetação original. Para ele, é preocupante que o poder público venha focando em soluções para a crise baseadas na construção de grandes obras, como barragens e transposições de rios. “Uma questão que ninguém toca é a ineficiência dos sistemas de abastecimento de água. Na região metropolitana do Rio há em média 35% de perda de água. Nenhuma perspectiva de um programa de redução de perdas foi colocada para  diminuir esses números”, reclama. Em São Paulo esse índice é de cerca de 30%.

Transposição do São Francisco

Diferente do que acontece no Sudeste, a falta de água é um problema crônico no semiárido nordestino. E assim como no Sudeste, o enfoque dado aos grandes empreendimentos domina qualquer debate que possa haver sobre o manejo sustentável dos recursos hídricos e do solo. Ali, a principal solução encontrada para o problema da seca responde pelo nome de Transposição do Rio São Francisco, obra iniciada em 2008 e que deve consumir R$ 8,2 bilhões até o fim de 2015, quando o governo federal prometeu entregá-la. Como explica João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco em Pernambuco, o empreendimento exemplifica bem duas facetas do problema da água dos quais já falamos nessa matéria: a priorização das grandes obras pelo governo e a falta de discussão sobre o uso da água. Ele afirma que embora o projeto tenha sido vendido como solução para o problema do abastecimento das pessoas por conta da seca, na prática o que se viu foi diferente. “Um projeto que retira água do São Francisco através de dois canais projetados para tirar 127 m³ de água por segundo – para você ter uma ideia, o Sistema Cantareira abastece São Paulo com uma vazão de 50 m³ de água por segundo – para proporcionar uma irrigação pesada e o uso pelas indústrias”, assinala João. Segundo ele, um dos locais que devem receber água do São Francisco é a represa do Castanhão, onde foi construído um canal de ligação com o porto de Pecém, no Ceará. “Sabe por quê? Estão construindo uma siderúrgica ali que, sozinha, consome o equivalente a um município de 90 mil habitantes. Para isso a água do São Francisco vai servir, agora para abastecer o povo que hoje está sendo assistido por frotas de caminhão-pipa, não”, reclama.

Outros grandes consumidores da água do São Francisco através da transposição são os chamados perímetros irrigados, grandes fazendas circundadas por canais de irrigação. Nessas fazendas são produzidas frutas para exportação. “Se produz melão, melancia, frutas que são 80% água. Olha que coisa estranha: você vai produzir frutas com uma capacidade de armazenamento enorme de água no semiárido. O uso de água é intensivo, tem que fazer grandes obras hidráulicas, e quem vai consumir isso é a França, o Japão, a Inglaterra. De novo estamos exportando água”, destaca Eduardo Barcelos.

Segundo João Suassuna, o problema do semiárido brasileiro não é exatamente falta de água. A região tem 37 bilhões de metros cúbicos de água represados, o maior volume do mundo em regiões semiáridas. Em 2006, a ANA publicou um estudo chamado Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água, em que propôs que fossem realizadas obras para melhor aproveitar esse volume. A um custo de R$ 3,3 bilhões, o projeto visava ao abastecimento de 34 milhões de pessoas em municípios de até cinco mil habitantes. “A transposição do São Francisco visa ao abastecimento de 12 milhões de pessoas e tem um custo de R$ 8,2 bi. Aí no momento de se elencarem os projetos para serem bancados pelo PAC [Programa de Aceleração do Crescimento], venceu a transposição. Como é possível um negócio desses? Essa é a verdadeira indústria da seca”, ataca.

Déficit de saneamento

O número de pessoas que tem dificuldade em obter água própria para consumo no mundo chega a quase 750 milhões. Um em cada três não tem acesso adequado ao esgotamento sanitário. Essas foram algumas das conclusões de um relatório divulgado pela Unicef no dia 22 de março deste ano, quando se comemora o Dia Mundial da Água. Segundo a entidade, 90% dessas pessoas está em áreas rurais, e são os cidadãos mais pobres e marginalizados que mais sofrem com a privação de água. Segundo o relator da Organização das Nações Unidas (ONU) pelo Direito à Água e ao Saneamento, Leo Heller, o Brasil tem avançado na ampliação dos sistemas de água e esgoto, mas a situação ainda é crítica: 40% da população não tem acesso adequado à água e 60% não tem  esgotamento sanitário.

Para Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz, os números apontam para uma crise ambiental mais profunda em curso, cuja “ponta do iceberg” é a crise hídrica. Ele defende uma abordagem “multiescalar” no enfrentamento do problema. Numa escala maior, está a questão da preservação das bacias hidrográficas que abastecem a população, que hoje enfrenta obstáculos dos quais já falamos nessa matéria, notadamente o avanço da fronteira agrícola que ameaça a integridade de biomas como o Cerrado e a Amazônia, essenciais para a regulação do clima e do regime dos rios.

Em outra escala, está a questão do saneamento. Em 2007 foi aprovada a Política Nacional de Saneamento Básico, que apontou a necessidade de se elaborarem planos de saneamento em nível federal, estadual e municipal. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 71,8% dos municípios não haviam elaborado um plano em 2011. O prazo para que todos os municípios tenham esse plano termina em 2015. “O governo federal não pode se limitar apenas a uma análise burocrática, se recebe ou não o documento. Caso contrário, não se resolvem distorções que já estamos presenciando na execução desses planos de saneamento”, alerta Alexandre. Segundo ele, devido à dificuldade que muitos municípios têm pela falta de corpo técnico para realizar o planejamento nos moldes preconizados pela lei, o que tem prevalecido é a lógica do “copia e cola”. “Você compara planos municipais de municípios diferentes e vê que têm o mesmo conteúdo”, relata. Segundo o IBGE, a grande maioria dos planos municipais contempla apenas um diagnóstico da prestação de serviços de saneamento, e poucos apresentam planos de contingência para eventuais crises. De acordo com o Instituto, no Sudeste, onde está a maior parte dos municípios que possuem um planejamento para a área de saneamento básico, apenas 20% deles apresentaram planos de contingência, que deveriam definir a prioridade para o uso dessa água. A Política Nacional de Recursos Hídricos, que completa 18 anos em 2015, prescreve que a prioridade no abastecimento de água é para o consumo humano. “E na história do país vimos que a prioridade foi para o desenvolvimento industrial”, diz Alexandre.

A ausência de planejamento engendra uma situação em que a população disputa água com as indústrias. Eduardo Barcelos cita um exemplo do Rio de Janeiro, estado onde o uso industrial responde por 37,7% do consumo de água. A Baía de Sepetiba, no oeste da Região Metropolitana do Rio, concentra empreendimentos como o Porto Sudeste, e indústrias como a LLX, Gerdau e Thyssen Krupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA). “Essas empresas foram licenciadas sem a exigência de que buscassem alternativas de fornecimento de água fora da rede. Isso pressiona o abastecimento populacional, porque você não divide o que é uso industrial com determinados mananciais e uso doméstico para outros”, diz. Para Eduardo, isso acaba expondo a fragilidade dos processos de licenciamento ambiental. “É preciso criar diretrizes no licenciamento para que os empreendimentos façam planos alternativos de captação de água que não sobrecarreguem o sistema público: captação de água de chuva, água de reuso do efluente, dessalinização de água do mar. Mesmo que isso custe caro”, diz.

Um dado presente na Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) do IBGE aponta uma outra faceta do problema: 45% dos municípios brasileiros não possuíam rede coletora de esgoto em 2008, o que influencia diretamente na qualidade das águas de mananciais utilizados para abastecimento. É o caso da represa Billings em São Paulo, que recebe água poluída dos rios Tietê e Pinheiros. Diante da crise, o governo de São Paulo discute utilizar água da represa para abastecimento da população. “A Billings é maior exemplo do quanto nosso cuidado com a água está equivocado. É uma represa enorme, próxima da cidade, que poderia ser uma fonte de abastecimento e de lazer mas que não é utilizada porque ainda não conseguimos limpar o Tietê e o Pinheiros e continuamos poluindo a Billings sem priorizar investimentos para limpar”, lamenta Marussia Whately, da Aliança pela Água.

Para Alexandre Pessoa, na raiz do problema está a falta de prioridade para a área do saneamento num contexto em que, em nome de um modelo de desenvolvimento que não dialoga com as necessidades socioambientais da população, o Estado, em conjunto com o grande capital, vem atuando na flexibilização da legislação ambiental brasileira. “A lógica das commodities minerais e agrícolas tem cada vez mais flexibilizado a legislação. Isso foi muito exemplificado nas grandes obras portuárias e logísticas realizadas na orla marítima, na construção e projetos de grandes barragens, na revisão do Código Florestal e também na questão da revisão da lei de mineração no país”, diz. Segundo ele, nesse processo, vários direitos têm sido violados. “Quando governo e setor privado têm interesse em implementar um empreendimento, a capacidade de representação da sociedade civil fica extremamente limitada pela não disponibilidade das informações”, afirma.

Desinformação

Ninguém sofre mais com essa desinformação do que as pessoas que só entraram em contato com o problema da crise hídrica pelo que foi publicado na mídia. O caso de Camila Pavanelli é exemplar: espantada com a falta de informações disponíveis sobre a verdadeira situação do abastecimento de água em São Paulo, ela começou a escrever boletins diários sobre a falta d’água no Facebook, que depois se transformaram em boletins semanais. Ali ela passou a coletar, sistematizar e comentar todas as informações sobre a crise que iam saindo na imprensa. “Uma coisa que me espanta muito é como o discurso oficial passou de ‘não falta água’, no fim do ano passado para ‘não haverá rodízio’, agora que o Alckmin foi reeleito. Primeiro se negava que faltava água quando já faltava água e agora se nega que haverá rodízio quando ele já existe”, resume Camila, fazendo referência a várias reportagens sobre bairros que estão há vários dias sem receber água, como Carapicuíba. Para ela, há uma clara discrepância entre o real tamanho do problema e o grau de indignação da população. “Não é porque o povo é alienado. Isso tem a ver com a cobertura da imprensa e com as informações que o próprio governo e a Sabesp divulgam”, afirma. Foi por conta disso que Camila decidiu encerrar suas postagens com uma recomendação que, segundo ela, serve como um convite para que as pessoas “pensem um pouco no que está acontecendo”. Para aqueles cuja “ficha” não caiu, mesmo depois de ler esta reportagem até aqui, fica a dica da Camila: pode entrar em pânico.

Reportagem publicada na Revista Poli n° 39 , de março e abril de 2015

 

André Antunes – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

Publicado no Portal EcoDebate, 09/04/2015

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Alexa

2 thoughts on “Água: crônicas de uma crise anunciada. A sede do progresso e o progresso da sede, por André Antunes

  • Gostaria de lembrar que a Lei 9.433 autorizou a criação dos comitês de bacia exatamente para resolver conflitos sobre água.
    Entendo que seja muito mais barato conduzir minério por minerodutos que por trem. Entendo também que a água usada pelos minerodutos deve ser recuperada e bombeada de volta.
    Querem ver como isso fica viável? Basta o comitê de bacia multiplicar por 10 a taxa de outorga de água e vamos ver os minerodutos usarem e recusarem a água com o mínimo de danos ao meio ambiente.

  • Excelente crônica!

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