A dimensão humana das remoções no Rio
Rogério Daflon, Martha Neiva Moreira e Camila Nobrega, do Canal Ibase
Marc Ohrem-Leclef nasceu em Colonia, na Alemanha, e costuma dizer que desde pequeno já era “interessado por gente”. Depois de uma passagem profissional na área de saúde, como paramédico, ele resolveu apostar na fotografia. Sorte nossa, que podemos ter acesso on-line a um portfólio de imagens incríveis clicadas por ele de pessoas dos mais diferentes recantos do mundo, muitas delas com seus direitos básicos violados. Este foi o mote para seu último trabalho, o livro ‘Olympic Favela’, lançado ano passado. A publicação traz fotos que revelam a emoção de pessoas de 13 favelas cariocas afetadas pela remoção em virtude dos megaventos esportivos. Além das fotos, a publicação traz artigos contextualizando o tema, como o do jornalista e diretor do Ibase, Itamar Silva. Em “O Rio é nosso”, Itamar identifica o território das favelas como um espaço que, historicamente, se constituiu como sendo de resistência, e nos convida a refletir sobre a importância da diversidade para a constituição de um território verdadeiramente democrático. Nesta entrevista, concedida ao Canal Ibase, Marc conta com foi seu contato com os personagens e especialmente sua emoção ao perceber que embora eles tenham o direito básico à moradia violado, não perdem a garra para construir uma cidade que realmente seja feita para seus moradores.
Canal Ibase: Há diferentes perspectivas sobre as favelas do Rio de Janeiro. O que atraiu seu olhar para fotografar estes espaços?
Marc Ohren-Leclef: Inicialmente, me chamou atenção a questão das remoções forçadas, em função dos megaeventos, durante a preparação para os Jogos Olímpicos de Pequim (na China). A contradição dessa opção de destruir bairros históricos e deslocar os moradores para um evento que, historicamente, se destina a unir as pessoas, foi algo que me impressionou e ficou marcado. Então, quando eu ouvi a respeito de situações semelhantes que ocorrem no Rio, comecei a pesquisar especificamente as políticas de remoções impostas pelo governo e o conceito de “pacificação” das favelas. Tendo visitado o Rio algumas vezes, percebi que, novamente, havia uma conexão direta com os megaeventos e comecei a pesquisar maneiras de realizar o meu objetivo de criar um corpo de trabalho que poderia ilustrar o impacto humano que as remoções estão tendo. Acabei gastando quase todo meu tempo fotografando em favelas, quando estive na cidade. Então, meu desejo era realmente para capturar o impacto de certas políticas implementadas pelo governo, em vez de simplesmente fotografar favelas em si.
Enquanto trabalhava em 13 de favelas do Rio de Janeiro, o objetivo sempre foi retratar os moradores afetados pelas políticas, como pessoas com quem qualquer um poderia se relacionar, se aproximar. Tentei retratá-los de forma bastante honesta e livre de valorações. Esta abordagem determinou minha perspectiva das favelas do Rio – compreendendo que cada comunidade tem uma infinidade de personagens, e cada lugar uma infinidade de representações -, como um artista eu me voltei para a questão das remoções forçadas. Me toca muito e tenho muita compaixão pelo sofrimento dos moradores. Foram eles que realmente permitiram que eu capturasse emoções no meu trabalho, algo que espero que venha a ajudar a desfazer o estigma que moradores de favelas enfrentam no Brasil. Para este propósito, eu estava mais interessado na dimensão humana, para captar como os moradores foram afetados pelas remoções como indivíduos e como pessoas conectadas umas com as outras, com o território e as casas a que se apegam tanto.
Canal Ibase: E o que mudou no seu ponto de vista sobre as remoções e as favelas, após sua experiência nesses territórios e com essas pessoas?
Marc Ohren-Leclef: Minha perspectiva certamente tornou-se mais bem informada e diferenciada, uma vez que passei a trabalhar dentro das favelas. Mas não mudou muito. Ouvindo histórias pessoas que estão trabalhando para resistir aos se virar – às vezes com sucesso, às vezes não – fui compreendendo o formato do meu projeto e seu foco. Essa foi a confirmação de que era importante refletir a questão das remoções forçadas em uma dimensão mais humana, tempos antes e após os despejos sofridos pelas pessoas e também dos protestos de rua, que são regularmente capturados e representados pela mídia comercial.
Uma experiência surpreendente que se repetia foi muito positiva: embora os moradores com quem trabalhei tivessem a sensação de estarem muito ameaçados e inseguros sobre o que o futuro que se reservaria a eles, são pessoas que têm um nível de positividade e otimismo muito bonitos. Isso foi inesperado para mim. Mesmo diante de tanta adversidade, o desejo de aderir ativamente ao planejamento para mudanças em suas comunidades e na cidade como um todo é forte. Ao trabalhar com os moradores e líderes comunitários, isso tudo tornou o trabalho ainda mais gratificante.
Canal Ibase: Após essa experiência, qual é a sua opinião sobre esse processo de preparação para os Jogos Olímpicos de 2016?
Marc Ohren-Leclef: Eu não sou um especialista em megaeventos ou planejamento urbano. Meu interesse era na dimensão humana dos acontecimentos no Rio de Janeiro. Mesmo que eu reconheça a beleza do espírito dos Jogos Olímpicos, no sentido histórico e mais clássico, é difícil não ver os grandes problemas causados pelo fato de uma cidade aceitar sediar o evento. Comitês Organizadores dos Jogos Olímpicos desconsideram questões de direitos humanos locais causados diretamente pelo evento, em favor de ganhos financeiros. Claro que isso não vale apenas para os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro. Foi muito visível em Pequim e mais recentemente em Sochi – e é claro que as comunidades e os governos apreciam, por outro lado, os fatos que cercam megaeventos: Mais recentemente, Oslo seguiu Estocolmo e a Cracóvia, retirando sua candidatura à sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, citando encargo financeiro dos eventos. A discussão pública em torno da Copa do Mundo de 2022 no Qatar mostra que o público em geral está começando a ter consciência dos efeitos negativos que os megaeventos, da forma como eles estão atualmente organizados, trazem para suas cidades e países. É uma vergonha que a pesquisa disponível sobre como fazer mudanças positivas na organização dos eventos não seja implementada pelos organizadores de forma mais ampla – então os eventos poderiam beneficiar uma população muito maior por um longo tempo. Minha esperança é de que o trabalho em OLYMPIC FAVELA ajude a promover a discussão em torno de questões como as remoções e planejamento urbano não-inclusivo, na esteira de sediar um megaevento para os próximos anos. Por enquanto vou continuar a trabalhar no projeto para documentar as vidas tocadas e alteradas no Rio pelos Jogos Olímpicos de 2016.
Canal Ibase: Eu vi que você gosta de fazer retratos de habitantes. Você poderia explicar por que você fez essa escolha?
Marc Ohren-Leclef: Em parte eu respondi a essa pergunta acima, na minha primeira resposta. Gostaria de adicionar algo. Minha ideia de focar meu trabalho em retratos foi baseada em duas motivações: uma era encontrar uma maneira de mostrar pessoas que parecem ter perdido seus direitos mais básicos de cidadania e estão lutando para encontrar um meio de lutar por seus direitos, não excluindo o quão positivas essas pessoas podem ser, dentro dessa adversidade A outra motivação foi lhes dar uma ferramenta para mostrar sua força, coragem e resistência. Por isso escolhi para tocar em representações históricas de libertação. Mas eu também uso o Atlas imagens para ver como diferentes culturas e regiões do mundo entendem e traduzem palavras como “liberdade”, “libertação”, “resistência”, entre outras palavras-chave. Tudo voltou a gestos muito básicos, e a tocha como um suporte representa muito bem em ambos os lados do espectro: urgência e celebração, resistência e libertação. Eu fui advertido por amigos que tochas de iluminação nestas comunidades podem ser perigosas, porque as facções criminosas que até recentemente tinham um controle sobre estes locais usavam fogos de artifício e tiros frequentemente para sinalizar coisas e se comunicar. Mas sempre que apresentei a ideia para os moradores, eles entenderam imediatamente o conceito e apreciaram a oportunidade de serem representados neste momento de força e poder.
Fonte: Canal Ibase.
Publicado no Portal EcoDebate, 10/02/2015
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