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27/01, Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto – Sobrevivente brasileiro relata memórias do campo de Auschwitz

 

Auschwitz. Foto: Jewish Virtual Library

 

 

Aleksander Laks, sobrevivente do Holocausto, tornou-se um defensor da tolerância.
Aleksander Laks, sobrevivente do Holocausto, tornou-se um defensor da tolerância. facebook.com/aleksanderhenryk.laks
Lúcia Müzell

A Europa celebra os 70 anos do fim de um marco trágico da história recente, o campo de concentração de Auschwitz, onde pelo menos 1,1 milhão de pessoas foram exterminadas. Apesar da idade avançada, os sobreviventes do Holocausto não cansam de relatar os horrores vividos no local, que se transformou em um dos museus mais importantes sobre a Segunda Guerra Mundial.

Depois de ser obrigado a andar quilômetros sob a neve, nas chamadas “marchas da morte” dos nazistas, um dos sobreviventes refez a vida no calor do Brasil. Aleksander Henrik Laks hoje tem 86 anos e tem dupla nacionalidade, polonesa e brasileira. Ele afirma que não sabe como sobreviveu – mas sabe para que está vivo: para contar às gerações seguintes até onde pode ir a crueldade humana, na esperança de evitar que os crimes cometidos pelo regime de Adolf Hitler um dia se repitam. Por telefone, Laks contou a sua história para a RFI Brasil.

As lembranças dos campos de concentração permanecem vivas na sua memória?
É algo que nunca pode ser esquecido e eu não consigo esquecer. Tudo que eu faço e eu vivo é sempre relacionado com esse passado. Mesmo quando vou comer alguma coisa, eu lembro da pouca comida que eu tinha lá e penso na que posso comer agora. É algo que nunca sai da minha mente.

Do que o senhor mais se lembra?
Eu lembro de tudo. Nasci na cidade de Lodz, na Polônia, em uma família judaica. Vivi bem até os 11 anos, quando começou a Segunda Guerra Mundial. Eles logo invadiram a minha cidade, criaram um gueto para os judeus, para onde fui levado. As pessoas morriam de fome, de frio, de doenças provocadas pela falta de condições de higiene. Fiquei ali até 1944, quando tudo piorou. Um dia, os alemães chegaram à minha escola e avisaram que, no dia seguinte, todas as crianças eram obrigadas a estar presentes. Eu cheguei a pensar que a gente ganharia alguma comida diferente. Ao chegar em casa, contei isso para os meus pais e o meu pai disse que eu não iria à escola e me levou para a casa da minha avó, onde me escondeu. No dia seguinte, a escola inteira foi levada para o primeiro campo de extermínio da história da humanidade, o de Chelmno. Eu fui o único sobrevivente.

Como foi a sua transferência para um campo de concentração?
O gueto foi desfeito. Nos disseram que iríamos para a Alemanha, mas acabamos em Auschwitz-Birkenau, em um dos últimos trens enviados para lá. A pessoa pode viver 1.000 anos e não vai ver o que eu vi ao chegar em Auschwitz. Arrancavam crianças dos colos das mães, jogavam elas contra a parede, chutavam. Corriam de um lado para o outro mandando homens de um lado, mulheres de outro. Meu pai não teve tempo de se despedir da minha mãe. Ela foi levada e morreu em uma câmara de gás, e depois foi cremada em um crematório de Auschwitz, em 1944. Eu só sobrevivi por acaso. Simplesmente não sei como sobrevivi, mas eu sei para que eu sobrevivi: para testemunhar e avisar que isso nunca mais pode acontecer com ninguém. Sobrevivi para isso.

Como foi a sua saída de lá?
De Auschwitz, eu e o meu pai fomos vendidos para uma empreiteira para fazer fortificações para o exército alemão, no campo de Gross-Rosen. Eu tinha 15 anos. Nunca esqueço que eles me arrancaram um dente para ver se eu conseguia não gritar, e como eu gritei, me arrancaram mais um. Um soldado da SS também quebrou o meu nariz com a arma, e até hoje eu não consigo respirar de um lado. Logo depois disso, nós fomos levados para as marchas da morte. Éramos 800 escravos judeus andando sem rumo, na neve, por quilômetros e mais quilômetros. Quem se encostava em outro era fuzilado. Não podíamos parar para urinar e acabávamos urinando nas calças, mas aquilo congelava e impedia de andar. E quem não conseguia andar, levava tiro. Nos deixavam dormindo ao relento, vestindo apenas um uniforme. No dia seguinte, tinha mais congelados do que vivos. Em pouco tempo, fomos reduzidos a menos de 80. Não entendo como não congelei. Até hoje não entendo.

E o seu pai? Sobreviveu?
Na marcha ele ainda estava comigo e um dia me disse: “Você está vendo? A Alemanha está no final. E se não formos todos fuzilados, talvez você sobreviva. E se sobreviver, quero que você nunca deixe os outros esquecerem do que fizeram conosco, sobre como um homem pode cair tão baixo e fazer tudo isso com outro homem, a troco de nada”. E eu prometi a ele que cumpriria. Então ele me disse que não aguentava mais e que iria se sentar. Eu não queria viver sem ele e estava decidido a sentar com ele. Então um amigo nosso disse ao meu pai que se ele quisesse que eu sobrevivesse, ele tinha que continuar, nem que fosse apoiado em nós dois. Aí aconteceu um milagre: os nazistas nos levaram para uma estação de trem e entramos em um vagão. Todos coubemos em apenas um vagão, no qual nos levaram para o campo de Flossenbürg. Esse foi o pior campo em que estive. Parecia um manicômio: matavam as pessoas a pancadas, por todos os lados. Além disso, havia uma epidemia de disenteria nesse campo, e o meu pai pegou. Havia um galpão imundo onde as pessoas faziam as necessidades e onde iam para escapar do relento, mas os soldados não nos deixavam entrar. Percebi que eu não estava mais vendo o meu pai por perto. Entrei naquele galpão e lá estava ele estendido, todo ensaguentado, em meio a essa sujeira e as fezes. Cheguei perto dele, mas ele não me reconheceu. Meu pai foi assassinado dentro de uma latrina em Flossenbürg. A gente não podia nem chegar perto dos cadáveres, mas assim mesmo eu pedi para puxá-lo e retirá-lo daquela sujeira. No dia seguinte, meu pai foi queimado em uma pira, em 1945. Esse foi o fim dele, aos 45 anos: foi assassinado só porque era judeu.

Neste momento, o senhor não tinha mais ninguém? Nenhum familiar?
Não sobrou ninguém. Os nazistas estavam me levando em um trem para ser afogado em um rio, porque Heinrich Himmler ordenou que nenhum prisioneiro caísse nas mãos dos aliados. Mas o trem foi bombardeado, e muitos de nós morreram. Nós conseguimos ir para uma cidade, Immendingen, e lá conseguimos entrar em um trem de passageiros. Eu estava muito inchado e não conseguia nem sentar. Eu sabia que estava morrendo – não sentia frio, fome, sede, nem medo. Até que veio uma pessoa, que até hoje não sei quem foi, e me deu um copo de leite. Acho que foi o que me salvou a vida. Saí do vagão e todo mundo começou a correr, dizendo: “estamos livres!”. Fui libertado pelos franceses, mas nós fomos deixados como se fôssemos lixo. Ninguém fez nada por nós. Ganhávamos duas sopas por dia e um pedaço de pão, de vez em quando – o que era muito pouco. Eu pesava 28 quilos com 17 anos. Não enxergava, estava com os dentes soltos, não tinha pais, amigos, roupas, dinheiro, pátria nem perspectiva para o futuro. Mas eu disse para mim mesmo: já que sobrevivi, eu vou viver. Virei garoto de rua por alguns meses, na Alemanha. Passei por todas as zonas de ocupação, americana, francesa, britânica e russa. Até que parei em um campo de refugiados perto de Frankfurt, e lá era muito bom. Ganhamos comida, roupas, higiene, e a vida começou a voltar ao normal. Fiquei dois anos lá, quando começaram a acabar com os campos de refugiados. Foi quando decidi que queria sair da Europa.

Como surgiu a oportunidade de ir ao Brasil?
Nós podíamos ir para os Estados Unidos, Canadá, África do Sul ou Austrália. Escolhi os Estados Unidos, onde morei pouco tempo. Lembrei que quando nós estávamos saindo do gueto, o meu pai disse que tinha uma irmã no Rio de Janeiro, no Brasil. Ele disse que se fôssemos separados, eu encontraria lugar para ficar no Brasil, na casa da minha tia. Eu então escrevi uma carta e, por acaso, essa carta chegou às mãos dos meus tios. Eu era o único sobrevivente na Europa de uma família de 60 pessoas. Os meus tios queriam muito me ver. Me mandaram passagem e eu vim como turista para o Rio de Janeiro, com 20 anos. Sou um dos poucos que conseguiu reconstruir a vida. Trabalhei muito, casei – mas já sou viúvo há 11 anos -, tenho dois filhos e três netos e sou o presidente da Associação Brasileira dos Israelitas Sobreviventes do Nazismo.

O senhor já retornou a algum dos campos onde esteve preso?
Sim. Na primeira vez, eu era delegado do Brasil no encontro dos ex-prisioneiros em Tel Aviv. Quando saí da Europa, eu disse que jamais pisaria de novo na Polônia ou na Alemanha. Mas estando ali perto, tive a necessidade de ver novamente onde eu nasci. Isso foi em 2004. Chorei muito. E em 2005, participei da Marcha da Vida, que são excursões de escolas principalmente a Auschwitz e depois para Israel. Quando entrei lá, se a terra me engolisse, eu ficaria muito grato. Olhava muito para todos os lados. Entrei e saí várias vezes no portão principal. Até que alguém me perguntou por que eu estava fazendo aquilo, e eu respondi que quando eu entrei pela primeira vez, eu achava que jamais iria sair. E naquele momento, eu entrava e saía quando quisesse.

Matéria da RFI, reproduzida pelo Portal EcoDebate, 27/01/2015


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