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‘Pensar o mundo em que vivemos sem dissociar a história da Terra da história da humanidade’

 

Por Graça Portela, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz)

Com respostas bastante reflexivas, o pesquisador Carlos Saldanha, autor do livro Desenvolvimento Sustentável para o Antropoceno, no qual aborda as mudanças climáticas que estão ocorrendo e que ainda virão, seus efeitos sobre o paneta e o papel da sociedade nesse contexto, fala de suas expectativas em relação à obra e sobre suas análises e compreensão de que estamos em um momento único na história da humanidade, e que é sim momento de agirmos pelo meio ambiente. Sem medos.

O que o senhor espera com o lançamento de um livro que toca em um aspecto ainda pouco discutido no Brasil, que é o conceito do Antropoceno?

Escrevi esse livro pensando nos jovens estudantes. A juventude vem assumindo, desde meados dos anos 1960, relevante papel na vida política mundial. As ações dos jovens, que instituem formas novas de movimentos sociais e de protestos, não obedecem à lógica dos partidos políticos, sindicatos ou associações atreladas às tradicionais estruturas políticas de poder. Com este livro, espero contribuir para a ampliação dos mapas cognitivos e o reforço da potencialidade de transformação desse ator social extremamente relevante para a transformação da vida social. Nesses primeiros 14 anos do século XXI, nós pouco fizemos em relação ao enfrentamento da crise política que paira sobre nós, principalmente no que se refere à necessidade de aprimoramento do processo de democratização da sociedade brasileira, hoje carente de espaços públicos, fóruns e arenas de interlocução entre governantes e cidadãos. Eu diria que se a vida política tem uma ecologia, os jovens são, então, a fonte geradora de sua renovação, acredito que a democracia não é façanha indivíduos solitários, mas de um concerto a várias vozes, de uma polifonia na Era em que vivemos, o Antropoceno.

O mérito desse operador conceitual é o de permitir pensar o mundo em que vivemos sem dissociar a história da Terra da história da humanidade, consequentemente, reconhecer o papel do Homem como força motriz de processos de transformação dos sistemas que sustentam a vida na Terra. Atualmente, é quase um consenso que a Era do Antropoceno foi inaugurada com a Revolução Industrial na Inglaterra, em fins do século XVIII, por ocasião do funcionamento das primeiras máquinas a vapor. Algumas entidades internacionais das áreas das Ciências da Terra estão discutindo quando teria, de fato, começado o Antropoceno. Aliás, é interessante observar que já existe uma previsão de anúncio oficial, em 2016, desse entendimento compartilhado. Se eu tivesse que resumir, sintetizar, as características do Antropoceno, presentes em maior ou menor grau nas sociedades contemporâneas, diria que elas consistem, entre outras importantes determinações, numa Era de transformações climáticas naturais e destruição de ambientes naturais.  Podemos lembrar aqui que o aumento do consumo de combustíveis fósseis, a contaminação dos solos por hidrocarbonetos, a emissão de gases de efeito estufa, o desmatamento e o crescimento das áreas de produção agrícola com uso intenso de fertilizantes e agrotóxicos são apenas alguns exemplos de como a interferência do Homem no ambiente alterou a vida no Planeta. Todas essas transformações são vistas como constitutivas da nossa sociedade, com graus variados, é verdade, de manifestações no ”continente” brasileiro, mas, ao mesmo tempo, questões essenciais que mobilizam cada vez mais os jovens.

Por conta de tais características, o livro não se propõe a percorrer todos os meandros do Antropoceno. Eu quis apresentar um olhar panorâmico, afinal, seria impossível dar conta, empiricamente, de todas as questões que concernem o debate atual sobre as relações entre o homem, a natureza e a sociedade. Neste livro, eu me debrucei prioritariamente sobre os problemas e as soluções jurídicas, com o Direito se formando e se transformando em ações concretas dos homens que fazem, refazem e desfazem, com seu comportamento, as regras de conduta que nos governam. Tais questões se referem, no caso específico do trabalho de pesquisa que eu desenvolvo, aos problemas ambientais enfrentados pela sociedade brasileira.

 

No livro há uma visão ao mesmo tempo otimista, mas que nos leva a sermos mais responsáveis com o que estamos fazendo com o planeta. O senhor acredita que, de fato, o homem pode tentar reverter os problemas que estão sendo causados pelo próprio homem no meio ambiente?

Sim. Não é preciso ser um especialista para se dar conta de que a história humana é contingente. Portanto, não deve ser pensada como um processo no sentido de sucessão temporal, um conceito da Era do Antropoceno que usa o princípio da causalidade, típico das ciências naturais, como seu pressuposto. A história, ainda que fraturada, caótica, pode ser retomada em termos novos para que possamos nos apropriar do sentido. Um sentido que nós podemos assumir com prudência posto que é contingente. Nessa perspectiva, é preciso ater-se aos acontecimentos e aos momentos de ruptura que nos permitem compreender o que é consumado e um novo tempo que se inaugura.

Nessa linha de raciocínio, eu diria que não obstante as características do Antropoceno sintetizadas na pergunta anterior, características emblemáticas e dramáticas dos tempos que se convencionou chamar de modernos, se, por um lado, a submissão a certas condições é o modo pelo qual uma certa existência humana é possível, por outro lado, está sempre ao alcance do homem a liberação dessa sujeição mediante o acesso a uma outra forma de existência expressa através do conceito de desenvolvimento sustentável. Desse modo, a força compulsória de certas condições encontra sempre limites, aqueles da existência específica à qual se relacionam. A presente condição humana é, por exemplo, necessária e inelutável no planeta Terra, mas não o seria em um outro ponto do universo. Ou seja, o homem nunca é inteiramente condicionável, porque é permanentemente capaz de múltiplas formas de existência, isto é, capaz da transcendência das próprias modalidades da existência terrena na teia da vida de um único planeta, inter-relacionado e interdependente, com montanhas vertiginosas, cordilheiras imponentes, vales profundos, ilhas oceânicas, desertos extensos, planícies encharcadas, savanas, geleiras e tundras espaçosas, vulcões adormecidos e furiosos, florestas majestosas e cidades densamente povoadas com veículos automotores e homens dependentes de recursos naturais e de energias externas. Não obstante, no Século XX, tanto as duas grandes ideologias, a liberal quanto a socialista, não souberam lidar com, e nem mesmo contemplaram no seu projeto político, a degradação ambiental em processos industriais, com a geração de fumaça, resíduos sólidos e efluentes líquidos no solo e nos corpos hídricos; muito pelo contrário, ambos, o capitalismo industrialista e o coletivismo industrialista, colocaram em operação um modelo industrial agressivo aos valores ambientais de vida em sociedade. Portanto, a disposição de mudar de ideia e recomeçar oferece aos seres humanos uma condição de liberdade para estabelecer novas relações e novos começos.

Eu acredito que na dinâmica relacional Homem-Terra, o presente só vislumbra a esperança quando voltado para o futuro. Ou seja, a busca da transcendência dos custos ambientais gerados pelo desenvolvimento industrial das sociedades humanas – um traço comum que transcende as particularidades culturais e, portanto, refletem a condição humana – tem sido uma preocupação desde o século XIX, mas, somente a partir do final dos anos 60 do século passado até o presente, que problemas ambientais transnacionais passaram a fazer parte da agenda política dos países à luz dos conhecimentos científicos produzidos, com o reconhecimento de que o ambiente – ar, água, solo, subsolo, flora, fauna, pessoas, espaço sideral e suas inter-relações – é frágil e precisa de proteção legal especial, com justiça social traduzida em estruturas administrativas que promovam o desenvolvimento sustentável, formando um conjunto de instrumentos da ação pública assentado na legislação ambiental e nas práticas jurídicas específicas ao processo de formação de cada sociedade.

 

Como está o Brasil hoje em termos de política ambiental? Muitos alegam que, por sermos um país emergente, essa deva ser uma preocupação secundária. Qual a sua opinião sobre isso?

Em relação a primeira parte da pergunta, eu diria que no Brasil, até o final dos anos 1980, havia apenas preocupações pontuais com o meio ambiente, objetivando a sua conservação e não a sua preservação. As ações estatais estiveram organizadas, primordialmente, para assegurar a integridade física do território, em detrimento da integração social. A proteção jurídica do meio ambiente, explorado de forma desregrada era solucionada por intermédio do Código Civil, de influência nitidamente liberal, atualizado somente 86 anos depois de sua entrada em vigor, em 2002. Por mais de um século e meio, o legislador nacional procurou proteger categorias mais amplas de recursos naturais, limitando simplesmente a sua exploração desordenada. Protegia-se o todo a partir das partes e, de forma fragmentada, tutelava-se somente aquilo que tivesse interesse econômico. Havia, portanto, um conjunto de leis vagas e dispersas, estabelecidas em diversos níveis jurídico-administrativos, que regulavam atividades específicas. No país, as leis não tinham caráter ambiental, pois haviam sido concebidas e eram implementadas no contexto de um modelo de desenvolvimento e de um arcabouço legal que ignorava a questão ambiental, pelo menos nos termos em que já se colocava internacionalmente os problemas de conservação e proteção da natureza. Até 1972, por ocasião da Conferência de Estocolmo, o Brasil defendia a tese de que o principal sujeito da proteção ambiental era o ser humano, já que a “poluição da pobreza” (falta de saneamento básico e de cuidados com a saúde pública, a alimentação e a higiene) e a “poluição da riqueza” (industrial) possuíam um efeito muito mais avassalador do que os danos ao meio ambiente decorrentes do crescimento econômico. Entre os anos 1970 e 1980, os instrumentos legais variavam de estado para estado da federação no que se refere ao controle da poluição ambiental, leis federais específicas se destinavam tão somente a controlar a propriedade e o uso dos recursos naturais por meio do disciplinamento das atividades agroindustriais.

A proteção jurídica integral ao meio ambiente no país só veio a ocorrer a partir de 1981, com a institucionalização da Política Nacional do Meio Ambiente (lei nº 6.938). Os recursos ambientais passaram a abranger “a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora” (lei nº 6.938/1981, artigo 3º, V, com redação dada pela lei nº 7.804/1989). O arranjo institucional previsto para lidar com as questões ambientais foi, então, pensado como um Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), evidenciando a lógica federativa, especialmente por meio da divisão de responsabilidades (órgãos central, seccionais e locais). É interessante observar que, com base em uma concepção de sistema ecológico integrado, essa proteção passou a ocorrer de forma holística. Até esse momento, o desenvolvimento internacional dessa concepção, que vinha desde o final dos anos 1960, objetivava a proteção das partes a partir do todo, enfatizando o relacionamento entre os seres humanos e seus ambientes, bem como os aspectos de ordem teórica e normativa no compromisso com a sociedade por meio de uma relação diferente, responsável e harmoniosa. A partir dos anos 1980 é que se pode dizer que a questão ambiental (ecológica e socioambiental) emergiu efetivamente no interior do Estado brasileiro – ao mesmo tempo que a democracia se afirmava no imaginário da sociedade, na sua luta coletiva e no conjunto dos movimentos sociais –, quando um pensamento jurídico ambiental foi constituído no país.

Em relação à segunda parte da pergunta, eu diria que faz parte do processo de aprimoramento institucional brasileiro a luta para pôr em prática o modelo de desenvolvimento nacional, definido constitucionalmente como sustentável. É um desafio enorme reformar a atual versão do septuagenário modelo desenvolvimentista brasileiro. Em suas várias versões, uma coisa não mudou, ele continua a se basear no uso intensivo de combustíveis fósseis, dependente da exportação de produtos primários, as chamadas commodities, além de estar assentado em um modo de exploração dos recursos naturais que leva à destruição de extensas áreas dos biomas brasileiros. Tampouco, não podemos deixar de mencionar aqui a questão das dificuldades para demarcação das terras indígenas, ou ainda da não realização da reforma agrária.

Deveríamos discutir os ”fins” para os quais nos apropriamos da matéria e da energia disponíveis na porção de Terra onde vivemos. Como membros de uma coletividade territorial e juridicamente circunscrita, nós precisamos definir o que é prioridade para o nosso país em termos de desenvolvimento. Precisamos nos colocar a questão dos graves prejuízos ao patrimônio biológico e genético causados pelo consumo exponencial de agrotóxicos, levando à morte milhares de seres vivos envolvidos direta ou indiretamente com a produção agrícola. Ora, as pesquisas nas áreas das ciências e das tecnociências demonstram, há décadas, que as decisões sobre as políticas públicas em um Estado Democrático de Direito para fazer frente à degradação ambiental e ao uso predatório dos recursos naturais não podem mais ser tomadas apenas por critérios econômicos. É preciso agir de forma responsável em um mundo comum que contemple a todos em direitos e deveres.

Eu gostaria de concluir essa entrevista lembrando que quando a intervenção humana faz falta para modificar o curso das coisas na Era do Antropoceno, e criar o novo, o mundo é ameaçado pela sua própria ação destrutiva. Portanto, não há tempo para pessimismo e crise existencial quando ações individuais e coletivas precisam ser empreendidas se quisermos continuar avançando na construção de uma sociedade sustentável, passando de uma economia que tolera danos ambientais a uma que não tolera.

 

Publicado no Portal EcoDebate, 07/11/2014


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One thought on “‘Pensar o mundo em que vivemos sem dissociar a história da Terra da história da humanidade’

  • A evolução da espécie humana e suas contradições.

    A espécie humana conseguiu sobreviver, em tempos remotos, enfrentando grandes predadores e condições adversas de clima, graças ao desenvolvimento privilegiado de sua inteligência. Neste aspecto, ela é vitoriosa. Se originou no continente africano e, de lá, se expandiu por todo o globo terrestre, lutando pela sobrevivência.

    Mas, essa luta que quase a levou à extinção, fez com que desenvolvesse um instinto de sobrevivência muito aguçado, o qual se expressa em medo. E esse medo instintivo, que garantiu a sobrevivência da espécie, atingiu proporções tão elevadas que impediu que ela agisse em defesa própria, isto é, em defesa de toda a espécie. Ao invés disso, os grupos humanos, à medida que evoluíam, que se tornavam, tecnologicamente, mais capacitados que outros grupos, exterminavam estes menos evoluídos, para tomar posse dos recursos naturais por eles utilizados, ou os escravizavam, para obter vantagens do trabalho que estes eram forçados a realizar, ou, ainda, matavam apenas pelo prazer ou hábito de matar.

    A “evolução” social da espécie humana, embasada em medos e na instabilidade existencial quase constante, motivou a criação de diversas divindades e religiões, as quais tinham a finalidade de proteger o grupo e os indivíduos das dificuldades em vida, entre as quais está a aquisição de alimentos, e de assegurar uma vida eterna, após a morte, visto que a vida real era, quase sempre, muito breve e repleta de sofrimento.

    As atuais condições de vida da espécie humana são um “aprimoramento” das condições primitivas, que nos foram legadas pelos povos antigos e medievais.

    A estrutura psicológica dos povos primitivos, desenvolvida pelo medo, como dissemos antes, levou a espécie humana a se organizar em grupos e, via de regra, a ver qualquer outro grupo de seres humanos como sendo seus inimigos, os quais deviam ser mortos ou escravizados.
    Essa concepção de relacionamento entre grupos de seres humanos levou à formação dos Estados-nação que existem atualmente, os quais mantêm as mesmas características primitivas, ou seja, cada um ver os outros como potenciais inimigos, e, por esse motivo, têm suas forças armadas sempre prontas para os enfrentar.

    Além das guerras em que “os povos inimigos são extrminados”, por motivos os mais variados, inclusive religiosos, há a guerra comercial, na qual cada Estado-nação tenta obter vantagens dos demais, sendo que os menos poderosos, economicamente, quase sempre são vitimados.

    Concluindo, vemos que a espécie humana, na luta pela sobrevivência de indivíduos e de grupos de indivíduos, desenvolveu o medo instintivo, necessário para a fuga e para a luta, e criou divindades e religiões que os protegessem, as quais evoluíram – a primeira há cerca de 4000 mil anos – para religiões monoteístas.

    Temos, hoje, diversos grupos humanos, organizados em Estados-nação e praticando diversas religiões. Os interesses de cada um desses grupos, sejam eles políticos, econômicos ou religiosos, muitas vezes conflitam com os interesses dos outros grupos, fato que sempre motivou, e ainda motiva, a deflagração de muitas guerras. E no futuro próximo, como será?

    Se as camadas mais evoluídas – intelectual, científica, política e economicamente – da espécie humana tiver condição de promover uma auto-reestruturação psicológica e, a partir daí, tornar-se capaz de desencadear uma reorganização estrutural da “sociedade humana, a nível planetário, que permita a unificação desses grupos e a abolição das chamadas crenças religiosas, constituindo, em todo o planeta Terra, um único Estado, no qual, cada ser humano seja defensor de todos os seres da espécie, independentemente de qual região do planeta ele habite e de qualquer outra particularidade, então atingiremos o estágio da pacificação e da convivência pacífica, na qual a espécie humana e as demais espécies terão suas existências condicionadas apenas aos eventos da Natureza.

    Evidentemente, temos consciência de que tudo que dissemos faz parte de um sonho muito difícil de ser realizado, ou mesmo impossível, mas, ao menos, temos um sonho para sonhar.

    Entretanto, acredito existir uma remota possibilidade: se a intelectualidade, os cientistas, os líderes políticos, econômicos e religiosos de todos os países do planeta Terra, tiverem condição de suplantar os condicionamentos psicológicos primitivos e, além disso, se dispuserem a constituir uma organização planetária com a finalidade de formar uma adminisstração única em todo o Planeta, extinguindo, assim, os Estados-nação, a concorrência e a busca do lucro, e formando uma única comunidade humana planetária, na qual predomine a cooperação indiscriminada entre todos os seres humanos, se tudo isto puder ser feito, a espécie humana, juntamente com todas as demais especies vivas, terá oprtunidade de continuar fazendo a sua História por tempo indeterminado.

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