Os Protestos e as Eleições: Até Aqui, Cassandra Está Ganhando, análise por Rodrigo Nunes
“O sintoma, por um lado, de um desencanto crescente com o PT por parte de um público de perfil progressista. Seguro de que a ameaça de ‘volta da direita’ sempre bastaria para reter o voto cativo da esquerda, o governo Dilma abriu mão de pautas caras a este público, esquecendo-se que, se dificilmente uma delas sozinha decidiria uma eleição, derrotas seguidas em várias (o retrocesso no Ministério da Cultura, Belo Monte, ‘kit gay’, Código Florestal, remoções, demarcação de terras indígenas…) provocariam perda de confiança. A fatura política deste erro foi paga nas ruas em 2013; a fatura eleitoral, nas urnas em 2014, pelo menos no primeiro turno.” O comentário é de Rodrigo Nunes, professor de filosofia da PUC-Rio em artigo publicado por Brasil Post, 17-10-2014.
Eis o artigo.
Ouviu-se bastante na última semana que as eleições de 2014 marcariam uma virada conservadora na política brasileira cuja causa seria o ciclo de protestos iniciado em junho do ano passado. Dizendo isto, contudo, apenas registra-se dois fatos – houve protestos, cresceu o voto da direita – sem oferecer explicação. O que seria preciso estabelecer é a relação causal entre manifestações e comportamentos eleitorais, o que chavões como “a direita saiu do armário” não fazem. Do que exatamente estamos falando: que parte da direita votava no PT, mas deixou de fazê-lo? Que os manifestantes teriam se tornado eleitores da direita? Que graças às manifestações, parte da população brasileira se descobriu de direita? Se sim, porquê?
Desde antes de junho de 2013 já se invocava no Brasil as lições e advertências de Egito (a vitória da Irmandade Muçulmana e o golpe militar), Espanha (a derrota do Partido Socialista e o retorno do Partido Popular) e Grécia (o fim do social-democrata Pasok e o crescimento da Aurora Dourada): grandes mobilizações de massa provocam guinadas à direita. Não se pode negar que a tese parece ter evidências que a corroborem; se quiséssemos ir mais longe, poderíamos citar as eleições francesas pós-Maio de 68 francês. Mas dado que nunca se chega a dizer porque isto ocorre, não estranha se os mais novos tratarem a ideia como uma crendice que os mais velhos repetem – como não nadar depois do almoço ou não comer melancia com leite.
Crises de projeto e crises de representação
Encontrar as causas destas “guinadas” exigiria analisar cada caso isoladamente para descobrir o que pode ser generalizado. Explicar o bicho-papão, contudo, tira dele um pouco da aura de tabu cuja quebra implica castigo. Tomemos o caso egípcio. Somente a ignorância justifica que se diga que o golpe militar “puniu” a temeridade de quem foi às ruas contra um regime opressivo há 30 anos no poder, ao fim do qual somente um partido de oposição (a Irmandade Muçulmana) tinha base e estrutura para ganhar as eleições e as forças armadas eram o grupo de interesse mais poderoso do país. O que teriam feito nossos especialistas de fim-de-semana – aconselhado as multidões que começavam a ocupar a Praça Tahrir que voltassem para casa, se contentassem com a ditadura que já tinham e esperassem que ela caísse por seu próprio peso?
De Espanha e Grécia, por outro lado, é possível tirar lições – embora não necessariamente do tipo que se espera. Em ambos países é inexato falar em “ascensão da direita”; o que ocorreu, mais exatamente, foi uma queda da esquerda. Isto é, menos que uma migração de votos da esquerda para a direita, ocorreu uma queda súbita do apoio à “esquerda oficial”, expressa imediatamente no aumento de abstenções e votos inválidos e no crescimento gradual de alternativas menores.
Mas como “derrota da esquerda” e “vitória da direita” podem não ser sinônimos? Aí justamente está a questão. Aqueles que abandonaram a esquerda oficial o fizeram por entender que esta – de quem se esperaria, diante da crise financeira, assumir a luta pela regulação do mercado de capitais e contra as políticas de austeridade – havia abdicado de seu papel. Para estes, a polarização “oficial” entre esquerda e direita deixara de representar as polarizações realmente existentes; o que havia era uma crise de representação.
Abrem-se aí duas perspectivas incomensuráveis. Para quem segue dentro das coordenadas do sistema representativo, “derrota da esquerda” necessariamente quer dizer “vitória da direita”, porque “esquerda” e “direita” seguem significando o mesmo: a esquerda oficial e a direita oficial. Para quem deixou de se sentir representado, as opções oficiais “esquerda” e “direita” se tornaram suficientemente indistintas para que a possibilidade de vitória da “direita” lhes pareça menos importante que o desejo de alterar as próprias coordenadas.
Crises de representação em geral são provocadas por crises de projeto político, mas não se confundem com elas; caracterizam-se pelo aumento da rejeição das coordenadas do sistema de representativo, o que se traduz em fragmentação do eleitorado e crescimento do não-voto (abstenções, brancos e nulos). Além disto, os dois tipos de crise têm temporalidades distintas.
Enquanto as crises de projeto podem se resolver com a alternância no poder, a resolução de crises de representação tende a ser mais lenta que os ciclos eleitorais, retardada pela inércia própria das instituições, o espírito de corpo da classe política e o tempo que leva para que novas alternativas se tornem viáveis. Este último fenômeno, aliás, é o que parece começar agora na Espanha (com o Podemos e diferentes experiências municipais) e já vem acontecendo na Grécia com o Syriza (que, nossos especialistas não dizem, só ficou atrás da coalizão entre PASOK e direita em 2012 porque teve todo o establishment europeu jogando contra).
Embora o resultado imediato seja o mesmo – o sucesso eleitoral do “outro lado” -, aqueles para quem há uma crise aguda de representação podem preferir assumir este risco pelo tempo que for necessário até a consolidação de uma nova alternativa. Tornaram-se imunes à ameaça porque, para eles, a responsabilidade pela derrota não é dos que deixaram de confiar, mas sim dos que deixaram de merecer confiança.
Ascensão da direita e/ou queda da esquerda
O que aconteceu então nas eleições deste ano – ascensão da direita ou queda da esquerda? A resposta é: ambos.
Há uma reação conservadora em curso no país desde quando o PT foi eleito e suas políticas sociais começaram a surtir efeito. À medida em que ex-sindicalistas se tornavam ministros e pobres tinham acesso a possibilidades antes restritas de consumo, uma parte da sociedade brasileira tornou-se cada vez mais acesa e explícita em seu ódio de classe e raça. (Convém notar, portanto, que não são somente protestos de esquerda que atiçam e radicalizam a direita, mas governos de esquerda também; de onde talvez se devesse concluir que o único jeito seguro de não fortalecer a direita seria não ser de esquerda.) Guardadas as devidas proporções, o crescimento do discurso e da bancada do preconceito e do conservadorismo social no Brasil seria comparável aos efeitos da Aurora Dourada na Grécia, diminuindo o espaço para uma centro-direita “moderna” (socialmente liberal) e puxando o centro de todo o debate mais à direita.
Mas este fenômeno não foi criado por junho: ele vem de antes e está, inclusive, entre as causas que explodiram nos protestos. Ele chega às eleições de 2014 seguindo uma curva linear ascendente que há uma década se alimenta do denuncismo seletivo, dos ataques da mídia e do desgaste natural de 12 anos de poder – bem como de todas as alianças e conciliações que o governo fez com forças como religiosos e ruralistas. As manifestações certamente provocaram uma nova onda de exacerbação retórica; mas isto se deu justamente na medida em que, pela primeira vez, compensou-se a lenta deriva à direita dos últimos anos com uma nova polarização à esquerda.
O impacto realmente decisivo dos protestos sobre as eleições não estaria, portanto, na subida da direita, mas na queda da esquerda oficial. Dilma Rousseff chegou ao segundo turno com quase 5% a menos que na eleição anterior, enquanto Aécio Neves ganhou apenas 1% a mais que José Serra em 2010.. Enquanto isso, abstenções e inválidos cresceram 2,25%, ficando à frente do candidato do PSDB, e eleitores históricos do PT migraram para as candidaturas de Marina Silva, Luciana Genro e opções menores à esquerda. Fragmentação dos votos e aumento do não-voto – possíveis indícios, como vimos, de uma crise de representação – bastam para explicar a oscilação negativa de Dilma e ajudam a entender a queda do PT no legislativo.
Entre causa e sintoma
Não é preciso negar tudo que as manifestações tiveram de conflitante e incoerente para enxergar os limites da narrativa segundo a qual junho teria “tirado a direita do armário”, e que isto bastaria para entender as eleições. Não apenas, como vimos, porque ela não oferece uma verdadeira explicação, mas porque simplifica drasticamente o fenômeno complexo que começou em junho de 2013.
Primeiro, reduzindo arbitrariamente os treze meses de mobilizações que se seguiram à luta pela redução das tarifas (protestos contra as remoções da Copa, manifestações de movimentos sociais tradicionais e sindicatos, ocupações de câmaras municipais, protestos em favelas contra a violência policial, rolezinhos, greves selvagens e oficiais, movimentos contra a especulação urbana…) àqueles dez dias em que a mídia corporativa e setores anti-petistas, vendo uma oportunidade de desestabilização, tentaram apropriar-se do que se passava. Segundo, reduzindo apressadamente ao rótulo “direita” toda a multidão que desceu às ruas neste curto momento, cuja maioria era composta por pessoas de inclinação política pouco definida, mas que estiveram entre os mais beneficiados pelas administrações petistas.
Em ambos os casos, elege-se um elemento temporal e numericamente menor como “a verdadeira face” de um acontecimento com muitos aspectos. Em ambos os casos, o recorte facilita a conclusão de que um processo que teve entre suas principais consignas a qualificação dos serviços públicos, a mobilidade urbana, o direito à cidade, o fim da violência policial e os direitos humanos – pautas progressistas, mesmo quando não conscientemente de esquerda – tendeu eminentemente para a direita. Com isso, confunde-se duas tendências dos últimos anos que deveríamos absolutamente saber separar: uma radicalização ideológica da direita e um desejo difuso de mudança. Aqueles poucos dias de “direita nas ruas” a que se tenta reduzir junho de 2013 manifestaram o primeiro; o processo que vai de antes da Copa das Confederações até a final Copa de 2014 expressou majoritariamente o segundo.
Acima de tudo, esta interpretação parece ser incapaz de explicar a propagação e adesão massiva aos protestos, que aparecem ou como inexplicável relâmpago em céu azul, ou como súbita emergência de uma até então insuspeita maioria de direita. Curiosa assimetria: as manifestações, que bastariam para explicar as eleições, seriam elas mesmas inexplicáveis. Evita-se assim a pergunta mais difícil, mas também mais importante: do que aquilo que se inicia em junho é sintoma?
Ascensão conservadora e desejo de mudança
Foi sintoma, por um lado, de um desencanto crescente com o PT por parte de um público de perfil progressista. Seguro de que a ameaça de “volta da direita” sempre bastaria para reter o voto cativo da esquerda, o governo Dilma abriu mão de pautas caras a este público, esquecendo-se que, se dificilmente uma delas sozinha decidiria uma eleição, derrotas seguidas em várias (o retrocesso no Ministério da Cultura, Belo Monte, “kit gay“, Código Florestal, remoções, demarcação de terras indígenas…) provocariam perda de confiança. A fatura política deste erro foi paga nas ruas em 2013; a fatura eleitoral, nas urnas em 2014, pelo menos no primeiro turno.
Mas assim como certamente não foram só “de direita”, os manifestantes não foram só gente que já se identificava como “de esquerda”, mas também “batalhadores” sem experiência prévia na política, garis, sem-teto, motoristas de ônibus, favelados… Percebe-se aí o que há de politicamente desastroso em confundir crescimento da direita e desejo de mudança. Se a esquerda oficial passa a tratar toda expressão de um desejo de mudança como de direita, acaba por assumir a defesa daquilo que existe como o melhor que poderia existir, obscurecendo a diferença entre mudanças progressivas e regressivas e entregando o monopólio da representação deste desejo à direita. Neste sentido, a ideia de “ascensão conservadora” tem um elemento de profecia autorrealizada: quando desejos legítimos e potencialmente progressivos são desqualificados como “de direita”, abre-se o caminho para que de fato assim se tornem.
A brecha à esquerda aberta pelos protestos poderia ter servido ao PT para, mesmo após doze anos de governo, assumir a bandeira da mudança e ressituar-se na polarização com a direita, tomando a iniciativa de propor a radicalização de reformas que lhe permitissem caracterizá-la como obstáculo a ser vencido. Notavelmente, porém, sua propaganda eleitoral talvez tenha sido a que menos invocou os protestos. Aliás, desde o programa de reformas anunciado pela presidenta, imediatamente sabotado e abandonado mesmo pelo PT, até o primeiro turno de 2014, preferiu-se polarizar com a esquerda, jogando com a chantagem do “ou nós ou a direita”. O papel de interlocutor entre sociedade e instituições foi trocado pela inércia e o espírito de corpo da classe política.
O risco de perder as conquistas dos últimos doze anos talvez seja suficiente para trazer de volta eleitores perdidos no primeiro turno, garantindo a reeleição. Ainda parece haver suficiente diferença entre esquerda e direita oficiais para que a crise de representação não chegue ao limiar crítico atravessado em Grécia e Espanha. Não havendo correções de rumo, contudo, a tendência é que esta crise cresça; chegará o dia em que as diferenças terão se tornado suficientemente pequenas para o medo do retrocesso deixar de funcionar.
Pode haver correções de rumo? Não é somente a reação pós-junho que deixa poucas esperanças. Se há verdade nestas hipóteses, estas eleições poderiam ser disputadas pela esquerda, mas pouco se fez neste sentido além de reforçar a redução de um dos projetos mais ricos e generosos da história da esquerda mundial à pobre fórmula rica “crescer a todo custo e incluir pelo consumo”. Tornou-se comum ouvir declarações de voto em Dilma dizerem não esperar mais que mais do mesmo, tanto no que isso ainda pode ter de bom quanto no acentuamento das tendências ruins (falta de diálogo, desenvolvimentismo desenfreado, violação de terras e direitos indígenas, flexibilização da agenda ambiental e de direitos humanos, fortalecimento das bancadas rural e religiosa, acordos com construtoras, mineradoras, oligopólios de mídia…).
Talvez disto, sobretudo, junho tenha sido sintoma: o grande paradoxo de doze anos de governos petistas não é a radicalização da direita, mas o fato que hoje o PT tem menos, não mais, condições de promover grandes reformas. Tendo feito o que podia nas condições que encontrou, mas pouco tendo feito para transformar estas condições, ele não apenas vê seu espaço de manobra cada vez mais reduzido, como cada vez mais se compromete a afirmar a inevitabilidade do status quo ao qual vai se adaptando. Isto não afeta apenas a possibilidade de seguir avançando, mas também, a médio prazo, de manter o que já feito; não afeta apenas as sensibilidades de um eleitorado progressista, mas eventualmente também aqueles que se beneficiaram das últimas décadas. No momento em que a conjuntura torna impossível a continuidade do bem-sucedido “pacto lulista” – crescimento acelerado com distribuição de renda, em que os ricos ficam mais ricos e os pobres, menos pobres -, que força e disposição terá o governo para criar uma repactuação em que a corda não arrebente do lado mais fraco?
De forma mais ou menos consciente, os ex-petistas e “batalhadores”, anarquistas e professores públicos, ciclistas e favelados, ambientalistas e afetados pela Copa, garis e midialivristas que estiveram nas ruas no último ano anunciavam que, nas atuais condições, não somente a energia de transformação do atual projeto está se esgotando, como ele começa a fortalecer o seu contrário. Foram tratados pelo sistema político, pelo próprio PT, como os troianos trataram a princesa Cassandra: incoerentes, irrazoáveis, ignoráveis. É cada vez mais evidente, porém, que “mudar mais” ou “seguir mudando” dependerá, nos próximos anos, daquilo que se saiba conquistar nas ruas, com ou sem o apoio da esquerda oficial. Por isso, é provável que ainda veremos mais do ciclo de protestos aberto em 2013.
Embora certamente possa trazer retrocessos, esta eleição dificilmente pode, por si só, trazer avanços. Neste sentido, qualquer que seja o resultado final das eleições, até aqui é Cassandra que está ganhando.
(EcoDebate, 20/10/2014) publicado pela IHU On-line, parceira editorial do EcoDebate na socialização da informação.
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Concordo completamente com esse artigo. Direita e esquerda no Brasil são uma coisa bizarra, e dizer que o governo Dilma é de esquerda é mais bizarro ainda.
Por exemplo, o governo Dilma, se fosse de esquerda, deveria defender os direitos humanos e a isonomia das pessoas perante a lei, independente de vontades políticas.
Aí a senhora Presidenta da República edita a MP 657, que permite aos Delegados de Polícia Federal superpoderes, incluindo chefiar todos os cargos dentro da PF… e assim, poder mandar “refazer” Laudos de Perícia com os quais não concorde.
Imaginem um Delegado de Polícia poder dizer que aquele exame de DNA não vale, ele quer que façam outro, e dessa vez, com o resultado “certo” , tá? Parece defesa de direitos humanos?
E quem vai tentar corrigir isso? Um deputado de esquerda, claro, pois é a esquerda que acredita em defender os direitos humanos, certo?
Bem, coloquem o DEM na esquerda aí. Até agora, o Deputado que se levantou contra essa loucura foi o Deputado Efraim Filho, do DEM da Paraíba.
Muito obrigado ao Deputado Efraim Filho por isso por sinal. Que bom que ele se reelegeu, e estará na Câmara por mais uma legislatura.