Tema de campanha, redução da idade penal vai contra recomendação da ONU
Defendida por Aécio e rejeitada por Dilma, reforma tem apoio de mais de 90% dos brasileiros. Para especialistas, no entanto, mudança não seria arma eficaz para combater a impunidade no Brasil.
O pedido para que Aécio Neves recuasse na defesa da redução da maioridade penal, uma das principais exigências de Marina Silva para conceder seu apoio a ele no segundo turno da corrida presidencial, não foi decisivo e ficou de fora das negociações.
Ao anunciar seu apoio ao tucano, no domingo (12/10), Marina mostrou estar satisfeita com uma promessa genérica: “A prevenção frente à vulnerabilidade da juventude, rejeitando a prevalência da ótica da punição”, afirma a carta de compromissos de Aécio. O documento é uma resposta a uma série de demandas apresentadas pela Rede Sustentabilidade, partido que a ex-senadora ainda pretende criar.
No Congresso, mais de 50 propostas tratam do tema. A medida foi um dos principais discursos de candidatos ao Legislativo nas propagandas eleitorais e é ponto de discordância entre os dois presidenciáveis. Aécio é favorável à redução da maioridade penal em caso de crimes hediondos, enquanto a presidente Dilma Rousseff é contrária à alteração.
“A proposta tem um apelo popular, e no Brasil foi divulgado que ela pode resolver o problema da criminalidade. Não é verdade, porque, na prática, o menor já fica preso. Isso vem de uma linguagem de endurecimento penal, que sempre se difunde em épocas eleitorais”, opina o jurista Miguel Reale Jr., ex-ministro da Justiça e um dos autores da Parte Geral do Código Penal.
Na contramão da maioria
Segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), 20 deputados federais ligados à área de segurança, eleitos para a próxima legislatura, vão defender mudanças no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, em prol de uma redução da maioridade penal.
Para os defensores da proposta, reduzir a idade penal de 18 para 16 anos, como prevê a maior parte dos projetos de emenda constitucional, é chave para combater a impunidade. E os políticos encontram amparo em parcela expressiva da população. Uma pesquisa de 2013 da CNA mostrou que 92,7% dos brasileiros apoiam a redução da maioridade penal.
“A grande maioria dos jovens, quando é posta em liberdade antes de completar 18 anos, volta a cometer crimes, e até mais bárbaros. Lá dentro eles acabam aprendendo que são verdadeiramente inimputáveis, independentemente do crime que venham a praticar”, argumenta ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro (PP/RJ), deputado federal mais votado no Rio de Janeiro nestas eleições.
Signatário da Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente das Nações Unidas, o Brasil oferece tratamento penal diferenciado a todos os menores de 18 anos, com recolhimento em unidades de ressocialização.
Segundo especialistas, a diminuição do patamar da idade mínima contraria as principais tendências de gestão de justiça juvenil em todo o mundo. E vai de encontro a uma recomendação da própria ONU, que diz que a reforma representaria uma ameaça para os direitos de crianças e adolescentes.
De 54 países analisados pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), 78% fixam a maioridade penal em 18 anos ou mais, como Argentina, França, Espanha, China, Suíça, Noruega e Uruguai.
Na Alemanha, adota-se o sistema de jovens adultos: entre 18 e 21 anos ainda é possível ao infrator receber um tratamento penal diferenciado, relativo à esfera juvenil. Já nos Estados Unidos, país que não ratificou a convenção internacional, a maioria dos estados permite que adolescentes com mais de 12 anos possam ser submetidos à Justiça comum, com possibilidade de aplicação de pena de morte e prisão perpétua. Pesquisas locais, no entanto, apontam que tratar adolescentes como adultos tem agravado os casos de violência.
Como prisões
As unidades de ressocialização, para onde são encaminhados infratores com idade a partir de 12 anos, não têm cumprido o papel de reeducar os adolescentes. Em São Paulo, estado dono da maior população carcerária do Brasil, o Ministério Público de São Paulo (MP/SP) fala em situação de “calamidade e horror” nos centros de acolhimento de menores infratores.
Em uma ação civil pública, o MP aponta casos de superlotação em mais de 90% das unidades para menores no estado, além de um déficit de mais de 1.400 vagas. No documento, o órgão pede uma liminar que obrigue o governo de São Paulo e a Fundação Casa a atender a demanda de vagas e melhorar a infraestrutura, sob pena de multa. A Justiça, no entanto, indeferiu a ação.
Por esse e outros motivos, Tiago de Toledo, promotor da Infância e da Juventude e um dos autores do documento, diz não ser possível discutir com seriedade a questão da maioridade penal no Brasil, uma vez que as regras penais vigentes “não são sequer aplicadas”.
“O Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo não são observados no estado de São Paulo, por exemplo. Nós encontramos todo o tipo de resistência para o cumprimento da lei”, diz.
Dados preliminares do MP mostram que o índice de reincidência no mês de setembro entre os jovens infratores internados em unidades da cidade de São Paulo foi de 58,33%. Mais da metade dos atos infracionais se refere a roubo e tráfico de drogas, enquanto os homicídios representam uma fatia pequena.
Políticas sociais
O período máximo de recolhimento de adolescentes infratores em unidades de ressocialização é de três anos, de acordo com o ECA. Em agosto, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e lideranças do PSDB foram a Brasília pedir que a Câmara dos Deputados acelere a votação sobre alterações do estatuto.
Sob o argumento de dar um “basta à impunidade”, os tucanos sugerem a ampliação do tempo de internação de três para oito anos nos casos de crimes hediondos, a criação de uma ala separada na Fundação Casa para adolescentes que completem 18 anos durante o período de internação e a aplicação de penas mais severas para o maior de idade que usar uma criança ou adolescente para praticar um crime.
O ex-ministro Miguel Reale Jr. sugere que o fim dos três anos de reclusão seja condicionado a um período de experiência fora das grades, nos moldes do regime de liberdade condicional. De acordo com o jurista, o número de menores envolvidos em crimes hediondos é muito menor na comparação com os adultos que estão nos presídios.
“Em parte dos estabelecimentos de recolhimento de menores, as condições são piores do que nas unidades prisionais. A redução da maioridade penal só se justificaria se houvesse uma redução da criminalidade, o que não irá ocorrer. A ameaça abstrata da lei não produz um efeito intimidativo”, argumenta.
O especialista enumera a má aplicação da lei, a falta de políticas sociais e a inoperância policial – o percentual de descoberta de autoria de latrocínios, por exemplo, não passa de 2% – como os principais fatores para o agravamento da violência.
Para Reale, a solução reside em políticas criminais de cunho social, que incluam desde a melhora das condições de vida na periferia, com condições de existência mais dignas, até a regularização imobiliária. “São políticas de longo prazo, mas que surtem efeito na redução da criminalidade. A maioridade penal não se traduz em impunidade, porque os adolescentes já estão sujeitos a medidas repressivas.”
Matéria de Karina Gomes, da Deutsche Welle, DW.DE, reproduzida pelo Portal EcoDebate, 15/10/2014
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