‘Em nome de’, artigo de Montserrat Martins
[EcoDebate] O Brasil perde mais vidas humanas que países em guerra: 50 mil homicídios por ano, o maior número de mortes em números absolutos em todo o mundo. Quase 600 mil presos dos quais cerca de 70% até 29 anos de idade, quase meio milhão de jovens em presídios. Se é que mais de 30 milhões de brasileiros foram tirados mesmo da “linha da miséria” e incorporados socioeconomicamente à sociedade, porque isso não refletiu nos índices de criminalidade? Qual o diagnóstico, qual a solução?
“A gente não quer só comida”, letra dos Titãs, é uma pista. Do que mais o ser humano precisa, além de não passar fome? Esse foi um dos temas que surgiram no projeto “Artinclusão”, no qual os jovens internados na FASE se expressam através da arte e suas obras são expostas, com eventos em que ocorrem esses diálogos.
A arte dá pistas, vemos isso nas letras também do Mv Bill, Racionais MC e no livro “Cabeça de Porco” (de MvBill, Celso Athayde e Luiz Eduardo Soares). Profissionais que trabalham com esses jovens buscam pistas, a começar pelo professor Aloizio Pedersen que é o autor do Artinclusão e vê na possibilidade deles se expressarem livremente – o que a arte facilita – uma condição indispensável para que eles se sintam incluídos.
Compartilhei, nestes diálogos, que ouço dos jovens internados da FASE que roubaram carros para passar na frente de garotas e serem notados. O evento tinha o sugestivo nome de “O mito de Narciso” e a psicóloga Fernanda Bassani comentou o fato de que a arma os faz romper o “círculo da invisibilidade” social. Autora de “Diálogo através das grades do cotidiano”, Renata Guadagnin aponta a importância da rede de vínculos na luta contra a exclusão. Oriana e Celso, do Observatório de Juventudes, falaram em “desalojar a academia” – sobre o divórcio do mundo acadêmico com a realidade das ruas – e questionaram o falar “em nome de”.
O jovem Lucas Fonseca, terapeuta ocupacional, foi quem fez a pergunta que não quer calar: o que tem de ser feito, na prática, para estancar essa guerra civil disfarçada que mata 50 mil brasileiros por ano?
Sim, há uma questão socioeconômica inegável que tem de continuar a ser enfrentada, o Brasil é campeão em desigualdades sociais. O que os primeiros avanços nessa área mostram é que eles não são suficientes por si só. Além do resgate da cidadania há uma auto-estima a ser resgatada e isso não pode ser feito “em nome de” alguém, de modo tutelar. O país já teve seu “pai dos pobres”, Getúlio Vargas, uma etapa essencial do desenvolvimento nacional já cumprida há 60 anos. Ainda vivemos hoje em uma cultura essencialmente tutelar, na chamada “democracia representativa”, onde os eleitos falam “em nome” dos que os elegeram. Daí para a criação de camadas burocráticas na gestão pública é um passo. Como “abrir” esse processo de participação, para que ela seja mais direta e autêntica? Uma nova percepção que vem se formando é a de que além de conhecedores profundos sobre o fenômeno da violência – dos quais foi citado o Luiz Eduardo Soares – é preciso saber ouvir mais.
O jovem Pablo falou ao final das falas dos convidados, nos diálogos do Artinclusão e sua fala foi a mais aplaudida de todos. Num linguajar poético, mostrou a importância de se expressar livremente e ser ouvido, experiência que ele e seus colegas tiveram através da arte. Por mais ricos que tivessem sido todos os diálogos, o mais importante foi o recado dos próprios jovens, pois os presentes não estavam ali para ouvir alguém falar “em nome de”.
Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.
Publicado no Portal EcoDebate, 29/09/2014
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Eu discordo de uma das premissas básicas desse artigo: que a pobreza seja fator de risco para criar assassinos, e que portanto, a redução da pobreza extrema deveria ter reduzido o número de assassinatos.
Sim, existem mais assassinos pobres na cadeia do que assassinos ricos. Essa diferença ocorre por dois motivos: primeiro, há mais pobres que ricos na população, segundo, independente do crime cometido ou não, se a pessoa tem condições de pagar advogados melhores ela tem menos chances de ser presa.
Mas ainda assim, quando se olham as estatísticas, o número de assassinatos cometidos por réus pobres e o número de assassinatos cometidos por réus ricos não é tão destoante do número de ricos e pobres da população geral.
Pobreza é um problema por muitas razões, mas ela não obriga ninguém a ser um assassino.
Com a segunda premissa do artigo, a de que assassinos têm problemas em relações sociais e a tendência a se sentirem frustados e ignorados, com essa eu concordo, até porque, ela é amplamente corroborada por outras estatísticas também.
Instilar o espírito de comunidade em pessoas, fazer com que elas se sintam parte de um todo e não como párias, diminui a chance de que ocorram assassinatos propositais exceto se: 1. se disfarçar a situação como uma guerra de nós contra eles (por exemplo “pobres” contra “ricos”) o que despersonaliza os “eles” e torna admissível sua morte, 2. se a pessoa for psicopata (a doença), o que diminui a sua empatia o suficiente para que todos à sua volta sejam despersonalizados e matá-los seja ok.
E esse é o meu segundo problema com o artigo: ele estimula o “1” a dar a subentender que há uma guerra civil entre pobres e ricos.