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Injustiças de rotina, artigo de Danilo Pretti di Giorgi

 

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[Correio da Cidadania] Todos sabemos que, todos os dias, nas grandes cidades do Brasil, jovens pobres, pretos e pardos são assassinados sumariamente pela polícia, sejam eles criminosos ou não. Todos sabemos que, todos dias, nas grandes cidades do Brasil, jovens pobres, pretos e pardos são presos e sofrem abordagens e procedimentos ilegais por parte da polícia, sejam eles inocentes ou culpados de algum crime. Nas favelas e periferias, policiais extrapolam sistematicamente suas funções e agem como juízes e justiceiros, decidindo sobre quem vive e quem morre, quem é espancado e quem pode seguir seu caminho ileso, agradecendo e dizendo “sim, senhor”.

Mas parece existir uma espécie de acordo secreto, entre nós da classe média esclarecida, para que ninguém fale sobre isso nem admita a existência de tais fatos (não pelo menos de forma tão explícita e rotineira). E talvez seja por isso que fiquemos tão desproporcionalmente indignados quando essa realidade se materializa na mídia, como se ela chocasse nossa inocência fabricada: são as imagens de câmeras escondidas que mostram menores sendo espancados na Fundação Casa ou que escancaram o frio assassinato cometido pelo policial na ronda noturna. Elas parecem ter o poder de nos tirar, ainda que por alguns momentos apenas, dessa dormência autoimposta.

Dois acontecimentos registrados este ano são bons exemplos disso. A prisão do ator e psicólogo preto Vinicius Romão, em fevereiro, e o assassinato do dançarino pardo Douglas Pereira, conhecido como DG, em abril. No primeiro caso, Vinícius, que já atuou em novelas da Rede Globo, foi preso injustamente por um assalto que não cometeu, por engano da vítima no momento do reconhecimento. O ator teve o infortúnio de estar vestido de forma similar, ser fisicamente parecido com o homem que cometeu o crime e estar na região no momento do assalto (no Méier, Rio de Janeiro).

Seguindo um procedimento padrão equivocado, o policial simplesmente encarcerou o rapaz baseado no depoimento da vitima, que foi assaltada em uma rua escura e não tinha condições de reconhecer com segurança o criminoso. Não houve nenhum tipo de investigação posterior ou direito de defesa para Vinícius, que foi jogado em uma cela em condições de higiene “desumanas”, segundo seu relato, com três beliches para 14 presos, onde ficou por 16 dias. Foi solto apenas porque, filho de pai militar de carreira e tendo curso superior, é um negro que conseguiu galgar seu lugar subalterno na casa grande e sair da senzala, e tem amigos com alguma influência.

O caso de DG é mais triste e curiosamente também envolve o nome da Rede Globo. O jovem de 26 anos era dançarino do programa Esquenta, apresentado pela Regina Casé, e, ao que tudo indica, confundido com traficantes, foi assassinado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (ironia) da favela Pavão-Pavãozinho, na zona sul do Rio de Janeiro.

O caso de Vinicius gerou grande repercussão na Internet, e o Facebook foi invadido nos dias que antecederam sua libertação por posts indignados contra a prisão. Já o assassinato de DG, no dia 22 de abril, foi além e gerou protestos violentos na região da favela onde foi morto após visitar a namorada, com pelo menos mais um morto nos protestos.

Essas fatalidades e a dor das famílias envolvidas poderiam ser revertidas em algo positivo para a sociedade se não fossem encaradas como exceções e sim como a regra, que de fato são. Um estrangeiro chega de fora do país e se depara com as repercussões desproporcionais e individualizadas desses acontecimentos deve ter a impressão de que o assassinato e a prisão injusta de jovens negros e pobres não acontecem diariamente por aqui.

Sabemos que são rotina, mas esses anônimos, que não trabalham na Globo nem têm curso superior, precisam pagar silenciosamente com sua liberdade ou sua vida por crimes que não cometeram sem ninguém a olhar por eles. Casos como esses deveriam servir para alimentar uma reflexão global sobre a grave situação de milhares de pessoas, mas isso curiosamente não acontece.

Uma sociedade na qual o Estado, que deveria ser o guardião da lei e dar bons exemplos de conduta, dá o pior tipo de exemplo possível, como no caso dos pertences de Vinicius no momento da prisão (um tênis e dois celulares), que foram entregues por ele aos policiais com a promessa de serem dados a seus familiares, mas que desapareceram na delegacia. É claro que o delegado afirmou à imprensa que “vai abrir sindicância para averiguar o que ocorreu”.

Assim como a Corregedoria da Polícia Civil “vai apurar se houve alguma irregularidade” na prisão do ator. Da mesma forma, no caso de DG, a PM “abriu um procedimento apuratório” para investigar o caso. O teatro de sempre.

E nós? Nós já esquecemos do Vinícius e do DG, e seguiremos esperando pela próxima notícia que vai chocar por alguns segundos nossas consciências adormecidas.

P.S.: Mais de 550 mil pessoas superlotam o sistema carcerário brasileiro, que conta com apenas 310 mil vagas. Quase 200 mil são presos provisórios, que aguardam julgamento, e calcula-se que pelo menos 30 mil já cumpriram pena e deveriam estar soltos. Mais de 60% deles são pretos e pardos e 66% são analfabetos ou tem o ensino fundamental incompleto.

Entre janeiro de 1992 e junho de 2013, enquanto a população brasileira cresceu 36%, o número de presidiários no Brasil aumentou 403%. O país é alvo recorrente de duras críticas da ONU e entidades internacionais de direitos humanos por conta das atrocidades cometidas no sistema carcerário. As denúncias envolvem tortura e maus tratos, lentidão no julgamento dos presos provisórios e ausência de auxilio judicial para os encarcerados.

* Publicado originalmente na revista Glocal – painel de geopolítica, meio-ambiente, cultura e matemática cotidiana. Disponível em: www.revistaglocal.org.br

Danilo Di Giorgi é jornalista. Mais sobre ele em seu blog http://ddigiorgi.blogspot.com.br/

* Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro editorial do EcoDebate na socialização da informação.

EcoDebate, 01/08/2014


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One thought on “Injustiças de rotina, artigo de Danilo Pretti di Giorgi

  • “Mais de 550 mil pessoas superlotam o sistema carcerário brasileiro, que conta com apenas 310 mil vagas. Quase 200 mil são presos provisórios, que aguardam julgamento, e calcula-se que pelo menos 30 mil já cumpriram pena e deveriam estar soltos. ”

    Sim, pescando no artigo. Essa frase me pareceu o início de uma sugestão de ação concreta.

    200 mil presos provisórios – há alguma estatística detalhando por que são provisórios? O problema é demora em correr o processo? Falta de investigação? Falta de defensoria pública?

    30 mil presos que já cumpriram a pena – ok, esse problema é mais grave, e poderia ser um respiro em um sistema onde faltam 240mil vagas de prisão. Como poderia ser resolvido? Não me parece sequer que seja caso de defensoria pública, parece um problema administrativo (por mais que esteja destruíndo vidas). Será que a informatização dos bancos de dados sobre prisões e penas poderia ajudar? De forma que o sistema (e aqueles que devem executá-lo) soubessem quando é o momento de soltar um preso automaticamente?

    O que se precisa exigir das autoridades?

Fechado para comentários.