Projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná: ‘uma irracionalidade’. Entrevista com Débora Calheiros
“70% do potencial de produção de energia da bacia do Alto Paraguai – BAP já está em Operação. Em ecologia sabe-se que, se ultrapassarmos a capacidade de suporte de um ecossistema, ameaçamos os seus processos ecológicos, seu funcionamento e geramos uma degradação muitas vezes irreversível”, adverte a bióloga.
Foto:grupoconscienciaviva.com |
O Projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná – HPP, criado no início dos anos 1990 para implementar uma hidrovia industrial que garantisse a navegação 24 horas por dia na região, apesar de ter sido interditado diversas vezes por conta de suas implicações à sustentabilidade do Pantanal, está sendo retomado pelo governo brasileiro e consta nas obras a serem realizadas pelo PAC 2, informa Débora Calheiros à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. Segundo ela, o Ministério dos Transportes, a Marinha e a Administração de Hidrovia Paraguai-Paraná – AHIPAR “já discutem a implantação de um porto industrial na localidade denominada Porto de Morrinhos – Cáceres/MT, num trecho do rio Paraguai muito frágil (muito meândrico e estreito, acima de Corumbá e abaixo de Cáceres), próximo a uma Unidade de Conservação (Estação Biológica da Ilha de Taiamã – MT)”. A professora da Universidade Federal do Mato Grosso – UFMT diz que o empreendimento foi barrado em 2000 pelo Procurador Federal Pedro Taques, quando a Justiça decidiu que intervenções não seriam feitas no rio sem um estudo completo de todo o sistema. Contudo, assinala, a Justiça Federal de São Paulo liberou os licenciamentos na região, com a alegação de que o Brasil já tem “legislação ambiental suficiente e que os empreendedores e os órgãos gestores já a utilizam, e que isso, portanto, bastaria para conservar o Pantanal, já que o país precisa de energia”. E acrescenta: “Ou seja, tentaram em 1990, em 2000, e agora tentam novamente. A ideia ainda mais absurda do IIRSA é juntar as bacias dos rios Orinoco (Venezuela), Amazonas e do Prata numa hidrovia para se navegar de Norte a Sul pela América do Sul. Um projeto do II Império que sempre volta a ser ideia de nossos políticos. Imagine a degradação biológica e ecológica de se juntarem três bacias desse porte. Uma irracionalidade!”.
Débora Calheiros reitera ainda que a bacia do Alto Paraguai – BAP “já oferece 70% de sua capacidade de produção de hidroeletricidade ao país”, o que implica em problemas ambientais e sociais. Fornecer os demais 30% de seu potencial hídrico, pontua, “seria colocar todo o sistema BAP/Pantanal em risco, pois barrando-se cada rio se altera a vazão, o pulso de cheias e secas (pulso de inundação) de cada rio e, gradativamente, dos demais rios de uma sub-bacia, como já ocorre na sub-bacia do rio Cuiabá (o principal afluente da BAP que já tem todos os seus principais rios barrados: Rios Manso, Casca, Itiquira, Correntes, São Lourenço) e nas dos rios Jauru e Sepotuba (todos em MT, sendo o norte da bacia responsável por cerca de 70% da água de todo o Pantanal)”.
Débora Calheiros é graduada em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo – USP, mestre em Engenharia Civil na área de Hidráulica e Saneamento pela mesma universidade, onde também cursou doutorado em Ciências (Energia Nuclear na Agricultura). É pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, no Pantanal.
Confira a entrevista.
Foto: www.cpap.embrapa.br |
IHU On-Line – Quando e em que contexto surgiu o Projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná? Por que o projeto foi barrado pelo Estado em 1996 e pretende ser retomado com as obras do PAC2?
Débora Calheiros – O Projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná (HPP) surgiu no começo da década de 1990 por meio de um projeto do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID com apoio dos cinco países da Bacia do Prata para que se implantasse uma hidrovia industrial (com obras de engenharia para garantir navegação 24 h/dia, 12 meses ao ano, desde Cáceres – MT, rio Paraguai até Nueva Palmira – Uruguai, rio da Prata) a ser coordenado ou promovido pelo CIC Plata com base no projeto IIRSA (atualmente COSIPLAN) com apoio do BID (US$ 11 bilhões para um estudo EIA/RIMA de todo o tramo) e que, infelizmente, está sendo retomado novamente pelo governo brasileiro uma vez que consta no PAC 2 do governo federal.
À época, ONGs (Coalizão RIOS VIVOS) e cientistas do mundo todo se posicionaram veementemente contra, colocando o governo brasileiro em situação constrangedora (por exemplo, FHC era questionado quando viajava ao exterior, com manifestações em frente ao local onde ele se encontrava). Aí o então Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, negou o projeto em 1996 para o trecho Cáceres-Corumbá, no coração do Pantanal, onde o sistema é muito frágil — o rio Paraguai é muito estreito e cheio de curvas (meandros). No projeto de 90 (conforme documento da ANTAQ), previa-se: 1) retificação de curvas, ou seja, deixar o trecho reto; 2) derrocamentos, isto é, tirar as formações rochosas que existem no leito do rio Paraguai, que quando afloram na fase hidrológica da seca impedem a navegação. Estas rochas funcionam como “rolhas” em vários trechos do rio e são um fator importante para que o fluxo de água no Pantanal seja relativamente baixo, pois o rio fica praticamente “preso” nestes trechos de afunilamento, fluindo mais devagar, formando áreas alagadas acima, tanto no Brasil quanto no país Paraguai; 3) dragagens, porque há trechos que sempre são assoreados, prejudicando a navegação, mas com as dragagens muda-se a hidrodinâmica nestes trechos e, como ultimamente o assoreamento é maior devido ao mau uso do solo no planalto adjacente (desmatamento sem respeito às Áreas de Preservação Permanentes – APPs, em solos frágeis, predominantemente arenosos), as dragagens têm de ser mais frequentes e em maior número de trechos. Assim, todas estas intervenções promovem o aumento das vazões (fluxos) de água no rio, drenando o Pantanal de forma mais rápida do que o normal, em especial na seca, alterando, portanto, seu funcionamento hidroecológico.
|
“Há toda uma série de Resoluções da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, além da legislação na época do apagão de 2001, que favorecem a privatização do setor elétrico no país” |
Atualmente, o Ministério dos Transportes, a Marinha e a Administração de Hidrovia Paraguai-Paraná – AHIPAR já discutem a implantação de um porto industrial, na localidade denominada Porto de Morrinhos – Cáceres/MT, num trecho do rio Paraguai muito frágil (muito meândrico e estreito, acima de Corumbá e abaixo de Cáceres), próximo a uma Unidade de Conservação (Estação Biológica da Ilha de Taiamã – MT). Tal empreendimento foi barrado em 2000 pelo então Procurador Federal Pedro Taques, atualmente senador por MT. A decisão da Justiça Federal foi a de que nenhuma intervenção seria feita no rio sem um estudo de todo o sistema. Ou seja, tentaram em 1990, em 2000, e agora tentam novamente. A ideia ainda mais absurda do IIRSA é juntar as bacias dos rios Orinoco (Venezuela), Amazonas e do Prata numa hidrovia para se navegar de Norte a Sul pela América do Sul. Um projeto do II Império que sempre volta a ser ideia de nossos políticos. Imagine a degradação biológica e ecológica de se juntarem três bacias deste porte. Uma irracionalidade!
IHU On-Line – A senhora menciona em artigo recente que a criação de 147 empreendimentos no Pantanal, sendo que 44 já estão em operação e representam 70% do potencial de geração hidrelétrica da bacia do Alto Paraguai. Quais as implicações desse processo para o bioma?
Débora Calheiros – A bacia do Alto Paraguai – BAP já oferece 70% de sua capacidade de produção de hidroeletricidade ao país, e isso já implica graves problemas ambientais, que, por conseguinte, resultam em graves problemas sociais. Fornecer os demais 30% de seu potencial hídrico seria colocar todo o sistema BAP/Pantanal em risco, pois barrando-se cada rio, se altera a vazão, o pulso de cheias e secas (pulso de inundação), de cada rio e, gradativamente, dos demais rios de uma sub-bacia, como já ocorre na sub-bacia do rio Cuiabá (o principal afluente da BAP que já tem todos os seus principais rios barrados: Rios Manso, Casca, Itiquira, Correntes, São Lourenço) e nas dos rios Jauru e Sepotuba (todos em MT, sendo o norte da bacia responsável por cerca de 70% da água de todo o Pantanal). Se isso ocorrer nas demais sub-bacias importantes que formam a planície pantaneira, a hidrodinâmica (pulsos de inundação) da região vai mudar significativamente, o que alterará toda a ecologia da região, afetando em especial a pesca (onde há barragem os peixes migratórios não sobem o rio para reproduzir), que é muito importante para a socioeconomia, a segurança alimentar e a cultura regional. Onde há usinas (UHEs) com reservatórios grandes, ou uma sequência de PCHs (reservatórios pequenos), a água sobe e desce no rio em questão de horas (devido à demanda de energia do país, já que o setor é interligado – SIN/ONS) e não mais de meses (seca e cheia), além de diminuir as vazões na cheia e aumentar na seca. Isso acarreta perda de nutrientes e sedimentos, ambos muito importantes para o funcionamento da planície, bem como afeta a cadeia alimentar e, portanto, a biodiversidade aquática (incluindo peixes), afetando também aves e répteis que dependem dos peixes para se alimentar. Diminui também a formação de praias e exposição de barrancos na seca, que são utilizados por aves e répteis para postura de ovos. O Pantanal é considerado Patrimônio da Humanidade e Reserva da Biosfera por ser um refúgio de várias espécies ameaçadas de extinção em outras regiões do país, como as onças, o cervo do pantanal, a ariranha, a lontra, a arara azul, o tamanduá, etc.
IHU On-Line – A senhora diz ainda que as Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs têm uma legislação diferenciada, que facilita os seus licenciamentos. Em que consiste a legislação acerca das PCHs e, nesse sentido, como ela se diferencia em relação à construção de grandes barragens?
Débora Calheiros – Há toda uma série de Resoluções da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, além da legislação na época do apagão de 2001, que favorecem a privatização do setor elétrico no país e, em geral, as PCHs só precisam de um Plano e não de um EIA/Rima que, ainda, deveria implicar na avaliação dos impactos em nível de bacia e não apenas da área de influência direta e indireta de cada empreendimento em separado, como se faz atualmente nos licenciamentos, indo de encontro à Resolução CONAMA 1/1986 e à Lei de recursos Hídricos.
IHU On-Line – Qual é a atual situação da bacia do Alto Paraguai?
Débora Calheiros – Como dito, 70% do potencial de produção de energia da BAP já está em Operação. Em ecologia sabe-se que, se ultrapassarmos a capacidade de suporte de um ecossistema (sua resiliência ou sua capacidade de se restabelecer após um impacto negativo), ameaçamos os seus processos ecológicos, seu funcionamento e geramos uma degradação muitas vezes irreversível.
|
“Se a sociedade brasileira, e em especial os tomadores de decisão, querem realmente conservar a região, devem suspender todos os usos dos recursos naturais da região” |
IHU On-Line – Em que consiste o Plano de Bacia a ser realizado pela Agência Nacional das Águas – ANA?
Débora Calheiros – É um Plano, não um estudo. Isto implica que, com base em toda a informação já existente sobre a bacia, serão acordados objetivos e metas a serem alcançados para que realmente se conserve a região e se promova maior sustentabilidade no uso dos seus recursos naturais. Ou seja, trata-se de um plano para que se use racionalmente a água, o solo, a biodiversidade, se ordene a produção agropecuária, a geração de energia e a navegação, o lançamento de esgotos, apontando, por exemplo, restrições de uso. Como a BAP não tem Comitê de Bacia Federal, como o rio São Francisco ou o Paraíba do Sul, o CNRH fez uma Resolução sobre bacias que deveriam ter Plano para que se pudesse, em tese, ordenar seu desenvolvimento.
IHU On-Line – Em 2012 o Ministério Público Federal entrou com uma Ação Civil Pública solicitando uma suspensão dos licenciamentos até que fosse feita uma avaliação ambiental estratégica. Essa avaliação foi feita?
Débora Calheiros – Não. O Ministério do Meio Ambiente – MMA não aceitou esta recomendação do MPF, e a decisão agora está com a Justiça Federal, uma vez que o MPF entrou com uma Ação Civil Pública.
Por outro lado, com a articulação da sociedade civil junto ao MMA, ANA e CNRH, conseguiu-se este Plano de Bacia, previsto na Lei de Recursos Hídricos.
IHU On-Line – Por quais razões o Tribunal Regional da Justiça Federal em São Paulo concedeu, em maio de 2013, uma liminar para o setor elétrico liberando os licenciamentos?
Débora Calheiros – A Justiça Federal de SP liberou os licenciamentos em maio de 2013 e, segundo a decisão judicial, a Desembargadora alega que já temos legislação ambiental suficiente em nosso país e que os empreendedores e os órgãos gestores já a utilizam, e que isso, portanto, bastaria para conservar o Pantanal, já que o país precisa de energia.
IHU On-Line – Como os pesquisadores dos países que compartilham a planície do Pantanal, Argentina, Paraguai, Bolívia e Brasil têm discutido essa questão?
Débora Calheiros – Nós realizamos um Workshop com pesquisadores, ONGs, pescadores e ribeirinhos do Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina em novembro de 2013 e como resultado temos a grande preocupação de todos com esta questão, uma vez que o Brasil detém a maior parte do Pantanal e em sua parte superior, ou seja, o que fizermos aqui se reflete em todo o sistema rio abaixo, o Sistema Paraguai-Paraná de áreas úmidas.
IHU On-Line – Como o barramento dos rios irá alterar o ciclo de cheias e secas? Quais são as evidências de alterações nos ciclos até o momento?
Débora Calheiros – A vazão fica menor nas cheias (pois os reservatórios retêm a água) e maior na seca (em geral 1 m), pois os reservatórios liberam água. Isso altera a hidrografia (gráfico da variação das vazões x tempo) e a variação sazonal das vazões ao longo do ano, variando o nível, a vazão e a área de inundação em cada rio barrado. As PCHs não têm reservatório ou têm reservatórios pequenos, o que, em tese, não alteraria a vazão e a sazonalidade (a água que entra seria a água que sai da barragem). Contudo, eles utilizam o arranjo em cascata (várias PCHs associadas a UHEs ou apenas várias PCHs num mesmo rio), o que, em conjunto, altera a quantidade e também a qualidade, alterando o fluxo de nutrientes, organismos e sedimentos da água. Os rios já barrados apresentam variação de nível e vazão diários (Vide vídeo no final da minha matéria no site do VIOMUNDO), tendo como consequência a perda de produção pesqueira e deixando as comunidades ribeirinhas sem assistência alguma, nem do poder público nem das empresas.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Débora Calheiros – Se a sociedade brasileira, e em especial os tomadores de decisão, querem realmente conservar a região, devem suspender todos os usos dos recursos naturais da região, os licenciamentos de desmatamentos, o aumento da área de agricultura e pecuária, tanto no planalto (onde nascem os rios formadores do Pantanal) quanto na planície, bem como suspender os licenciamentos de hidrelétricas e de ações da hidrovia, até o Plano de Bacia ficar pronto com a anuência da Comissão de Acompanhamento (tripartite, nos mesmos moldes de um Comitê de Bacia, prevista na Resolução CNRH de dez/2013) e, posteriormente, a anuência do plenário do CNRH, promovendo até então projetos de recuperação de nascentes e matas ciliares, de áreas degradadas e ações de saneamento básico nos municípios pantaneiros e peripantaneiros.
(EcoDebate, 23/06/2014) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
[ O conteúdo do EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, ao EcoDebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]
Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta clicar no LINK e preencher o formulário de inscrição. O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.
O EcoDebate não pratica SPAM e a exigência de confirmação do e-mail de origem visa evitar que seu e-mail seja incluído indevidamente por terceiros.
Remoção da lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para ecodebate@ecodebate.com.br. O seu e-mail será removido e você receberá uma mensagem confirmando a remoção. Observe que a remoção é automática mas não é instantânea.
O estudo de contrastes que está aparecendo em artigos recentes do Ecodebate (entrevista com um apoiador de se construir mais hidrelétricas e esta excelente entrevista, explicando qual o problema de hidrelétricas mal pensadas, artigos sobre o novo anteprojeto da biodiversidade, um extremamente crítico, outro explicando decisões tomadas no projeto) está magnífico!
Parabéns pelo trabalho!
Não se deixe enganar, precisamos de energia eletrica!!! Neste momento, desde meados de 2013, todas as termicas brasileiras estão em funcionamento. Não há planos de desliga-las, mesmo sabendo que são mais caras e poluentes que as hidroeletricas.
Quanto o transporte por hidrovia, é muito mais barato e muito menos poluentes que as rodovias, modelo adotado pelo Brasil.
Temos que achar soluções para reduzir o impacto das hidroeletricas e hidrovias e não sair por ai criticando, pois nosso sociedade está sempre consumindo mais energia por habitante e cada vez mais aumenta o numero de habitantes.
abraços