Golpe de 1964 e desastroso legado para o Brasil contemporâneo
Golpe de 64 e ‘o sentido do Brasil’
A história do Brasil é fundamentalmente a história de um único ator, a da classe dominante. O ensinamento é de Florestan Fernandes, para quem no Brasil sequer chegamos a uma Revolução Democrática (inclusão social via acesso aos direitos básicos) e Nacional (definição de um projeto econômico livre da subordinação ao capital de fora).
As elites brasileiras nunca permitiram que o povo entrasse em cena. Em sua obra A Revolução Burguesa no Brasil, o sociólogo destaca que a marca impressa a ferro e fogo na sociedade brasileira é o do autoritarismo e da autocracia exercido pelas classes dominantes. Ainda pior. Segundo Florestan, a hegemonia é puxada pelas oligarquias. De acordo com ele na história brasileira sempre foi a oligarquia de natureza agrária e atrasada quem “comboiou os demais setores da classe dominante”.
No Brasil, afirma Florestan Fernandes, diferentemente dos países centrais e mesmo dos Estados Unidos, assistiu-se a um processo de recomposição das estruturas de poder entre a oligarquia e a burguesia emergente, através da conciliação dos interesses dessas duas classes. Tal situação permitiu a associação entre o modelo burguês de dominação e os procedimentos autocráticos e conservadores da oligarquia, o que transformou o Estado brasileiro numa instituição avessa à efetiva participação e inclusão da população em seus destinos.
O DNA que compõe e recompõe a sociedade brasileira é a do seu passado escravocrata, da grande propriedade e da monocultura. É isso que dará sentido ao Brasil e o transforma numa nação inconclusa, como destaca Caio Prado Junior.
No Brasil as transições sempre se deram dentro da ordem, sem rupturas. Assim foi com a proclamação da República, a ‘Revolução’ de 30, as Diretas Já, a Constituinte e (re)inauguração da vida institucional democrática pós-ditadura com a eleição de FHC e de Lula. Ambos para governarem aliaram-se ao que sempre mandaram, às oligarquias rurais associadas à burguesia produtiva-financeira atreladas ao capital transnacional.
O Brasil é uma eterna “construção interrompida” para utilizar um conceito de Celso Furtado. Nas poucas tentativas de ruptura na perspectiva de construção de outro modelo, as elites reagiram com violência. De novo é Florestan que nos ensina que toda vez que a classe dominante se sente ameaçada em seus status quo, mobiliza seus aparatos ideológicos e repressivos para oprimir, coibir e sufocar qualquer possibilidade de ruptura. No limite aceita as mudanças cosméticas, mas jamais aquelas que ameacem as suas vantagens econômicas.
Ditadura: retroalimentou as questões não resolvidas
O evento do golpe civil-militar de 1964 deve ser interpretado nesse contexto. O golpe foi uma resposta às forças de baixo, ao movimento social que lutava por uma Revolução Democrática. A intolerância da classe dominante contra o risco de repartição de seus ganhos mostrou toda a sua agressividade com o golpe de 64.
O golpe foi feito pelos militares, porém, tramado com as oligarquias rurais, a burguesia industrial e com o apoio do capital internacional. O golpe selou a aliança desses setores que passaram de ameaçados a grandes beneficiários do regime autoritário.
O golpe significou enormes ganhos e privilégios para o ‘andar de cima’, já para o ‘andar de baixo’ o golpe foi um desastre, empurrou e revigou o processo de apartheid social resultante das décadas anteriores. Tudo o que ocorreu durante a ditadura militar foi negativo para a sociedade brasileira, afirma o historiador Jorge Ferreira em entrevista à revista IHU On-Line.
O golpe retroalimentou as questões não resolvidas e deixou um desastroso legado para o Brasil contemporâneo. Interpretar as manifestações presentes na sociedade hoje resultantes sobretudo do golpe militar é o que propõe essa análise.
Servimo-nos aqui nessa interpretação do vasto e abundante material publicado no sítio IHU por ocasião da lembrança dos 50 anos do golpe e da publicação, ambas em março, de duas edições da IHU On-line relacionadas ao mesmo tema: A revista nº 437: 1964. Um golpe civil-militar. Impactos, (des)caminhos, processos e a revista nº 439: Brasil, a construção interrompida. Impactos e consequências do golpe de 1964.
A construção interrompida
“O golpe de 1964 é um desfecho trágico para uma geração que sonhou com um Brasil que se modernizasse na economia, mas que também avançasse no ponto de vista democrático e social”, constatava Celso Furtado lembrado por Ricardo Ismael de Carvalho, diretor do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento em entrevista concedida à IHU On-Line.
Essa é a construção interrompida a que se refere Celso Furtado em seu livro Brasil, A Construção Interrompida. Segundo Ricardo Ismael de Carvalho o golpe de 1964 vai aprofundar as desigualdades brasileiras, fraturando o Brasil e impedindo uma maior distribuição de riqueza.
O diretor do Centro Internacional Celso Furtado, afirma que o golpe “vai abortar um esforço que estava começando a surgir, na tentativa de diminuir a distância do desenvolvimento do Nordeste em relação ao Sudeste industrializado. Isto porque uma coisa é você levar indústria para onde já existem indústrias, outra é levar para onde ainda não se tem nada, pois falta infraestrutura, estrada, portos, aeroportos, qualificação de recursos humanos. Isto é, trata-se de uma região muito dependente dos investimentos do governo federal, e que precisava ser pensada em uma perspectiva de longo prazo”. O golpe interrompeu o projeto de Celso Furtado para o Nordeste elaborado por um conjunto de pensadores no interior da Sudene.
O golpe militar de 1964 pôs fim ao debate, que vinha sendo travado até então, sobre o modelo de desenvolvimento econômico a ser adotado pelo país, abraçando uma opção de dependência e associação do capital estrangeiro, constata o economista Fábio de Campos em entrevista especial à IHU On-Line.
Segundo ele, a ditadura “permitiu a conexão dos interesses de valorização das filiais estrangeiras com o sistema financeiro internacional. A reforma da legislação, além de retirar do marco institucional as medidas que impediam as remessas ao exterior a partir de reinvestimentos de lucro, criou novos instrumentos que liberalizavam o acesso da filial estrangeira ao endividamento externo”. Para ele, o golpe selou qualquer possibilidade de “autodeterminação do desenvolvimento nacional e acabou por sacramentar nossa dependência externa e subdesenvolvimento”.
De acordo com Fábio Campos, “a ditadura serviu ainda para garantir a expansão da industrialização pesada dinamizada pelo capital internacional em proveito dos diferenciais do mercado interno, estabelecidos pela elevada concentração de renda que garantia a valorização à custa da superexploração do trabalho”.
Com o golpe, “a economia nacional foi colocada em função das grandes corporações nacionais, ligadas às corporações internacionais e o Estado funcionando como grande financiador e impulsionador deste desenvolvimento, desviando de forma legalizada — com leis feitas para isso — o dinheiro público para a atividade empresarial privada”, afirma o pesquisador Fabio Venturini. Destaca ainda que empresários que apoiaram o golpe de 64 construíram grandes fortunas.
A ditadura “selou aliança entre latifúndio e burguesia industrial”, afirma a professora Larissa Mies Bombardi. Na opinião da professora da Usp “em última medida, o período de 1964 até 1985 serviu para que interesses antes disputados por grupos de poder antagônicos tomassem corpo numa frente ampla: é o caso da aliança entre latifundiários e burguesia industrial na exploração da mão de obra no campo”. De acordo com ela esse pacto apoiou-se “a partir de incentivos fiscais que os grandes capitalistas obtiveram para ocupar produtivamente as terras da Amazônia. Isso determinou que capitalistas se tornassem também grandes latifundiários”.
O golpe abortou a possibilidade de reformas. Na opinião de Pedro Cezar Fonseca, economista, professor da UFRGS em entrevista à IHU On-Line, “as mudanças de Jango visavam, junto com elas, uma distribuição de renda e, por consequência, também, uma redistribuição de propriedade. Era a reforma agrária, a reforma tributária com impostos progressivos (ou seja, que taxava mais os mais ricos), a reforma bancária em relação aos juros e ao capital estrangeiro, entre outras”.
É justamente esse cenário descrito anteriormente que irá acelerar os processos de expulsão e migração de milhares de camponeses do campo para os centros urbanos. O golpe foi responsável por uma gigantesca movimentação humana no interior do país. O não desenvolvimento do Nordeste, a não realização da Reforma Agrária e os incentivos fiscais aos grandes grupos empresariais para exploração de monocultura em grandes propriedades empurraram milhares para os centros urbanos, particularmente o sudeste.
As grandes metrópoles e os seus infindáveis problemas estruturais (moradia, transporte, água potável, saneamento, saúde, educação) têm no golpe militar uma de suas principais causas.
Institucionalização da violência
Uma das piores, mais nefasta e dolorosa consequência do golpe é a institucionalização da violência na sociedade brasileira. Os dispositivos que a ditadura inventou e sofisticou continuam até hoje sendo aplicados, sobretudo contra a população pobre.
A coordenadora da ONG Tortura Nunca Mais, Cecília Coimbra em entrevista à IHU On-Line, destaca que as práticas de prisões discricionárias [primeiro prende, depois investiga], ‘autos de resistência’ que se transformam em execuções, a tortura e a prática de desaparecimentos [caso Amarildo] são tributárias do período militar, época em que “a implantação da tortura foi alçada a instrumento oficial do Estado brasileiro”.
Segundo ela, foi “a ditadura brasileira que inventou uma figura nefasta: a do desaparecido. Esta figura veio da Guerra da Argélia, e a ditadura inaugura isso na história brasileira. Mais do que isso, a partir da década de 1970 ela também a exporta para os demais países latino-americanos. Tanto que teremos na Argentina mais de 30 mil desaparecidos”.
De acordo com Cecília Coimbra, “esta é uma figura das mais perversas, porque a família continua sendo torturada cotidianamente. Como o Estado não assume que perdeu ou que matou, a pessoa fica ‘pairando no ar’. Não está em lugar nenhum. Essa figura hoje ainda é muito utilizada. No Rio de Janeiro temos, nos últimos cinco anos, quase 10 mil desaparecidos. Isso é uma coisa escandalosa que acontece em nosso cotidiano”, afirma.
Ainda mais. Segundo ela, “a grande maioria dos desaparecidos é das populações mais pobres, e são justamente agentes do Estado que produzem esse desaparecimento. Por isso até hoje não temos um número exato de desaparecidos em nossa assim dita democracia”.
Outra coisa, diz Cecília Coimbra, que ainda hoje é utilizada contra a pobreza no sentido de sua criminalização “são os chamados autos de resistência. E o que é isso? É aquele em que você mata, executa e simplesmente notifica ‘morto ao reagir à prisão’. Isso foi muito utilizado durante a ditadura”.
A coordenadora da ONG Tortura Nunca Mais, comenta ainda que “outro grande efeito foi a banalização da tortura”. Segundo ela, “você passa a acreditar que alguns segmentos da população necessitam ser torturados”.
Na opinião de Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), a prática da tortura persiste e grave é o fato de que “a posição favorável à tortura encontra-se disseminada na sociedade brasileira”. Segundo ele, “o Núcleo de Estudos da Violência da USP, em pesquisa de 2011, apontou que 48,5% dos entrevistados admitiam a tortura em determinados casos”.
O historiador destaca que o autoritarismo permeia toda a sociedade brasileira. Segundo ele, “de modo nenhum nossa democracia está a salvo de surtos autoritários. A gente viu agora mesmo nas manifestações de 2013 como políticos de diversos partidos se comprometeram com uma repressão desapiedada sobre o movimento”.
Aarão lembra que “a Polícia Militar mata cotidianamente pessoas no Brasil todo, os índices são demenciais comparados a outros países, e isso está naturalizado. Embora haja críticas muito severas aos black blocs, as críticas à PM são muito moderadas”.
É nesse contexto que devem ser compreendidos as tragédias de Amarido e Claudia Silva Ferreira.
O escritor Marcelo Rubens Paiva comenta que o que aconteceu com Amarildo é semelhante ao que aconteceu com o seu pai.
Diz ele: “Quando a gente lê como foi a prisão do Amarildo vemos que foi igual à prisão do meu pai. Todos os detalhes. Nós morávamos no Leblon, e Amarildo na Rocinha, um bairro vizinho. Amarildo era pedreiro, e meu pai, engenheiro. Amarildo tem cinco filhos, meu pai tinha cinco filhos. Eles foram presos em casa, para uma averiguação. Meu pai foi acusado de ligações com comunistas. Amarildo foi acusado de ligações com traficantes. Meu pai foi torturado atrás do quartel, onde ficava o DOI CODI (que coordenava ações de repressão) do Rio de Janeiro”.
Amarildo, continua Marcelo Rubens Paiva, “foi torturado num container, atrás da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Testemunhas ouviram os gritos dele, militares ouviram os gritos do meu pai. Ambos foram torturados com choques elétricos. Ambos morreram na noite da tortura, ambos os corpos foram retirados durante a madrugada, sumiram com ambos. E criaram uma versão sobre os fatos. No caso do meu pai, de que ele havia fugido, e do Amarildo, que ele não tinha sido preso. E depois, punem a família”.
Segundo ele, “é impressionante que num Estado democrático, a situação se repita com um brasileiro comum. Para nós, isso simboliza muito a nossa luta pela revisão da lei da Anistia. E por que nós somos contra essa lei que perdoa torturadores, e instalou no Brasil esse Estado em que a população está de um lado e a polícia está de outro”.
O caso de Claudia Silva Ferreira é outra herança da ditadura. Uma mulher negra, pobre, trabalhadora, que, ao ir comprar pão com mortadela na padaria para os seus filhos e sobrinhos, foi alvejada por uma bala disparada pela polícia, depois foi levada pelos policiais como se fosse um saco de cimento no bagageiro de um carro, no trajeto a porta abre e ela cai no asfalto, sendo arrastada por um bom tempo pelo carro, já que sua roupa ficou presa na porta.
Claudia foi vítima de uma “bala perdida” desferida por policiais. Os três PMs que a arrastaram somam juntos mais de 62 mortes, a maioria delas justificadas como ‘autos de resistência’. A soma da morte de apenas esses três policiais é superior a todas as mortes cometidas pela polícia de Nova Iorque no ano de 2013.
A concepção de um Estado que vê o cidadão como um inimigo é fruto da ditadura militar. “O padrão é o mesmo da ditadura”, diz Nadine Borges que faz parte da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro. Segundo ela, “a prática não mudou em nada. O que vivemos no último período demonstra que esse legado autoritário continua presente na atuação das forças policiais que são despreparadas para garantir a ordem pública e a integridade das pessoas. Detenções ilegais são práticas de Estados autoritários”.
O impacto “de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, em manifestações, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando ou reprimindo parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A verdade é que não queremos olhar para o retrovisor não por ele mostrar o que está lá atrás, mas por nos revelar qual a nossa cara hoje”, diz o jornalista Leonardo Sakamoto.
A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
(EcoDebate, 23/04/2014) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
[ O conteúdo do EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, ao EcoDebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]
Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta clicar no LINK e preencher o formulário de inscrição. O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.
O EcoDebate não pratica SPAM e a exigência de confirmação do e-mail de origem visa evitar que seu e-mail seja incluído indevidamente por terceiros.
Remoção da lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para ecodebate@ecodebate.com.br. O seu e-mail será removido e você receberá uma mensagem confirmando a remoção. Observe que a remoção é automática mas não é instantânea.