Desobediência civil: Forma de protesto joga luz sobre as contradições entre legalidade e legitimidade
Manifestação na Avenida Paulista dia 20 de junho de 2013. Foto: Marcos Santos/USP Imagens
No dia 1° de dezembro de 1955, a costureira Rosa Parks ia para o trabalho de ônibus na cidade de Montgomery, capital do estado americano do Alabama, onde então vigorava uma lei de segregação racial no transporte público municipal. A lei dizia que as primeiras fileiras de assentos dos ônibus que circulavam pela cidade eram reservadas a passageiros brancos. Os negros eram obrigados a sentar-se na traseira dos veículos. Negra, Rosa Parks ocupava um assento no meio do ônibus quando foi abordada pelo motorista da condução, que pediu que ela e mais três passageiros negros desocupassem seus assentos para dar lugar a quatro passageiros brancos que haviam acabado de entrar no ônibus. Ao negar-se a ceder seu assento, Rosa foi presa e fichada. Seu ato, porém, entraria para a história do movimento pelo fim da segregação racial nos Estados Unidos, ao servir de estopim a um boicote organizado pela população negra aos ônibus urbanos de Montgomery em protesto contra a lei injusta, que acabaria sendo revogada pela Suprema Corte americana no final do ano seguinte.
Hoje, é praticamente impossível encontrar quem conteste a legitimidade da atitude de Rosa Parks ao infringir a lei de segregação racial nos ônibus de Montgomery. Seu ato ajudou a chamar a atenção para as injustiças sofridas pela população negra dos Estados Unidos, em uma época em que o racismo era amparado na lei. Ao negar-se a cumprir uma lei injusta, e ser presa por isso, Rosa fez uso da chamada desobediência civil, forma de protesto que joga luz sobre as contradições muitas vezes existentes entre legalidade e legitimidade no campo jurídico.
E a desobediência civil tem raízes profundas na história. No livro ‘O que é desobediência civil’, o professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) Evaldo Vieira lembra que no rol das personagens históricas que desafiaram a ordem vigente por meio do descumprimento de determinadas leis figuram nomes como o do filósofo grego Sócrates, que viveu no século 5 a.C. Sócrates preferiu a morte ao exílio depois de ser julgado por um tribunal de Atenas que o acusou de subversivo, por pregar ideias contrárias às tradições e crenças religiosas dos atenienses de então.
No entanto, escreve Evaldo, o conceito ganhou forma a partir das revoluções liberais do século 18, que consagraram ideais que estão na base dos Estados nacionais modernos. Entre eles está a ideia de que todos os cidadãos são iguais perante a lei – expressão da vontade geral – e de que todos têm direito de participar de sua formatação, seja diretamente ou por meio de representantes eleitos. Consubstanciados nos textos das constituições de diversos países – inclusive na do Brasil – e em inúmeros acordos internacionais de direitos humanos, esses ideais servem muitas vezes de parâmetro para definir quando é legítimo desobedecer a uma lei, ainda que seja impossível estabelecer em um texto jurídico a desobediência civil, já que ela pressupõe o descumprimento da lei. No artigo ‘A desobediência civil como defesa da Constituição’, Maria Garcia, professora de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), conceitua a desobediência civil como “a forma particular de resistência ou contraposição, ativa ou passiva do cidadão, à lei ou ato de autoridade, quando ofensivos à ordem constitucional ou aos direitos e garantias fundamentais, objetivando a proteção das prerrogativas inerentes à cidadania”. Para a professora, a desobediência civil é “um instrumento ativo do cidadão no exercício do poder e, portanto, instrumento da democracia”.
Exemplos de desobediência civil
E é com base na Constituição Federal de 1988 que o professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Marcelo Carvalho Rosa legitima a ação de movimentos sociais que têm, historicamente, se utilizado da desobediência civil como forma de reivindicar direitos. É o caso das ocupações de terra promovidas pelos movimentos que lutam pela realização de uma reforma agrária no país, que problematizam o direito à propriedade da terra. “A relação das ocupações com o direito constitucional fica clara quando percebemos que os números desse tipo de mobilização cresceram exponencialmente no Brasil após a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à Reforma Agrária, previstos no capítulo III, título VII, da Constituição Federal. Aprovada em 1993, a lei 8.629 define critérios de produtividade e de uso do solo em propriedades rurais para que elas sejam consideradas produtivas. A mesma lei também define formas de desapropriação e distribuição de terras consideradas improdutivas ou que não cumprem sua função social”, escreve Marcelo, no verbete ‘Ocupações de Terra’ do Dicionário da Educação do Campo, editado pela EPSJV/Fiocruz em parceria com a Expressão Popular. Nesse sentido, continua o autor, ainda que seja pejorativamente chamada de “invasão” pelas classes proprietárias, denotando sua ilegalidade, a ocupação tem servido para “promover o direito de acesso à terra para quem deseje fazer um uso social justo de sua propriedade”, e para “estabelecer limites ao direito de propriedade em casos de uso meramente especulativo do solo brasileiro, de cultivos ilegais e da exploração ilegal de trabalhadores (trabalho escravo)”.
Miguel Baldez, procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro e professor da Universidade Cândido Mendes, argumenta que as ocupações ampliam a possibilidade de aquisição da terra num contexto em que o ordenamento jurídico se coloca como obstáculo para a efetivação desse direito pelos trabalhadores. “Se você fizer uma avaliação jurídica, vai perceber que são poucos e inacessíveis aos trabalhadores os meios de aquisição da propriedade no Brasil. O registro imobiliário, ou seja, a compra e venda, que exige disponibilidade de dinheiro; a sucessão hereditária, que serve para consolidar patrimônios já formados; o usucapião, que foi democratizado, mas que serviu historicamente para engrossar o latifúndio; e a acessão. Não tem mais nenhuma maneira de entrar na propriedade no Brasil. O que o movimento sem-terra faz, com as ocupações, é promover um ato político de grandes efeitos jurídicos, ao negar os fundamentos do direito burguês, e criar um modo novo de aquisição da propriedade, baseado na posse coletiva da terra”, defende Baldez.
Outro exemplo de aplicação da desobediência civil por movimentos sociais são as ações das rádios comunitárias, no contexto da luta pela democratização da comunicação no Brasil. “Nós entendemos a comunicação como um direito humano e a partir disso lutamos para que cada país garanta esse direito com suas leis e políticas públicas. Em muitos países, como o Brasil, no entanto, esse direito é criminalizado. Por isso defendemos que a população também exerça seu direito humano à comunicação, que é garantido por acordos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que garante a liberdade de expressão e o direito à comunicação no seu artigo 19”, explica o jornalista Arthur Willian, integrante da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc).
Segundo ele, no caso do Brasil, a desobediência civil é, de uma forma ou de outra, utilizada por praticamente todas as rádios comunitárias, uma vez que a lei criada para regulamentar a radiodifusão comunitária no país – a lei 9.612/98 – coloca inúmeros obstáculos para o funcionamento das rádios comunitárias. Segundo Arthur, hoje existem 10 mil rádios comunitárias operando na ilegalidade no país. “A lei não veio no sentido de garantia e sim para restringir. Ela foi feita sob medida para os empresários de comunicação, para que as rádios comunitárias, que vinham crescendo naquele momento, ficassem limitadas, virassem sinônimo de rádio pequena, pobre, de baixa audiência”, critica, para em seguida enumerar os critérios da lei que, na prática, inviabilizam o funcionamento das emissoras. “A lei diz, por exemplo, que as rádios comunitárias devem operar fora das frequências das rádios comerciais, que vai de 88 MHz até 108 MHz no Brasil e em boa parte do mundo. Então, a maioria dos aparelhos nem pega frequências fora desse espectro. No Brasil as rádios comunitárias, pela lei, funcionariam em 87,5, 87,7, 87,9 MHz. Ou seja, elas foram feitas para que ninguém as ouça”, avalia. Além disso, a lei obriga que as rádios comunitárias operem com transmissores de, no máximo 25 W de potência – 10 mil vezes menor do que a de uma rádio comercial – e um km de alcance. “Posso ter uma comunidade como uma favela pequena em que uma rádio com 25W e um km de raio sirva, mas se eu tenho uma comunidade indígena ou quilombola, ou mesmo uma cidade que não tenha nenhuma emissora, como Arraial do Cabo [RJ], por exemplo, isso não é suficiente”, explica. A lei proíbe ainda que as emissoras comunitárias veiculem publicidade comercial o que, para Arthur, reflete o receio das emissoras comerciais de perderem anunciantes para as comunitárias. “Quase todas fazem a publicidade do comércio local, porque o pequeno comerciante não tem dinheiro para anunciar nas grandes rádios. A rádio comunitária poderia ser um veiculo de incentivo à economia local, mas mesmo o pequeno anunciante não pode pela lei anunciar. Para que a rádio e o comércio local não morram, as rádios anunciam publicidade do comércio local e são perseguidas por causa disso, têm que pagar multa de R$ 5 mil e muitas vezes têm sua licença cassada”, argumenta. Nesse contexto, diz Arthur, são frequentes os casos de rádios comunitárias que são levadas a descumprir o que diz a lei para conseguirem funcionar. Arthur explica que o uso de transmissores mais potentes, a transmissão em faixas de frequência proibidas pela lei e também a operação sem licença do poder público — uma vez que em muitos casos os processos de legalização demoram mais de dez anos para serem concluídos — são estratégias adotadas pelas rádios comunitárias para se manter em funcionamento, ainda que à revelia da lei.
Novo direito
Mas para Miguel Baldez há um limite para o que a desobediência civil é capaz de alcançar em termos de incorporação das demandas dos trabalhadores ao universo das leis. O professor argumenta que isso se dá porque, numa sociedade de classes como a que vivemos, o direito é a principal forma de controle dos trabalhadores pelas classes dominantes. Para Baldez, mais do que um instrumento para pressionar pela efetivação de direitos previstos na legislação brasileira, a desobediência civil deve ser uma forma de os movimentos tensionarem os limites do direito liberal no que se refere aos trabalhadores. “Ninguém com bom senso teria dúvida de que vivemos em um sistema de classes. Nesse sentido entendo a desobediência civil como a proposta de um novo direito, que nasce da luta dos trabalhadores contra um sistema excludente ancorado num ordenamento jurídico construído em função da dominação de uma classe”, afirma Baldez.
Por André Antunes
Texto publicado na Revista Poli – saúde, educação e trabalho N° 33 , de março/abril de 2014
EcoDebate, 21/04/2014
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Estava indo bem, mas intencionalmente ou não esqueceu de mencionar Thoreau em seu artigo, realmente não dá para falar de desobediência civil em site de caráter ambiental sem mencioná-lo; além de não fazer nenhum link com as manifestações em meados no ano passado, ou elas não foram, e serão este ano, atos de desobediência civil?
Vejo com estranheza artigos que mencionam “os trabalhadores” como sendo uma casta de infelizes pessoas, marcadas pela inexistência de bens patrimoniais. Ora, “trabalhador” é todo aquele que trabalha, que presta o seu labor, que é ativo, que produz e que gosta de produzir, que é obreiro. Falar de forma contrária, como se trabalhadores fossem os “desprivilegiados” é uma ignomínia. As formas de transmissão da propriedade imobiliária que existem não podem ser condenadas, muito menos comparadas com a desobediência civil inicialmente citada, da qual se valeu a brava mulher negra, insurgindo-se contra o preconceito racial absurdo nos Estados Unidos. Péssima comparação! Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Invasão de terras não é somente desobediência civil, é baderna, é crime, é oportunismo. Não podemos incentivar tais condutas no Brasil, da mesma forma que não podemos aceitar assaltantes nas ruas das cidades, de qualquer espécie ou por quaisquer razões. Lamentável o artigo e a intenção subliminar contida no mesmo.
A ideia mais valiosa a ser considerada é vários setores como transportes, professores, aeroportuários e demais engrossarem fila para GREVE GERAL NO PAÍS! Todo mundo fica em casa e não vai trabalhar. Só funciona estrategicamente serviços essenciais. Garanto que os direitos mais lídimos e supernos do povo serão atendidos prontamente.