Uma medida de sustentabilidade ambiental: pegada hídrica
Uma medida de sustentabilidade ambiental: pegada hídrica
Vicente de P. R. da SilvaI; Danilo de O. AleixoII; José Dantas NetoIII; Kettrin F. B. MaracajáIV; Lincoln E. de AraújoV
IUnidade Acadêmica Ciências Atmosféricas/UFCG, Av. Aprígio Veloso, 882, Bodocongó, CEP 58429-140, Campina Grande, PB, Fone: (83) 2101-1202. E-mail: vicente@dca.ufcg.edu.br
IIFAC-CG/UNESC, Praça Coronel Antônio Pessoa, 111, CEP 58429-140, Centro, Campina Grande, PB. Fone: (83) 3321-5990. E-mail: daaleixo@uol.com.br
IIIUAEA/UFCG, Av. Aprígio Veloso, 882, Bodocongó, Campina Grande, PB. E-mail: zedantas1955@gmail.com
IVCERES/UFRN, Campus Currais, Novos Sítio Totoró s/n – Zona Rural – C.P. 111, CEP 59380-000, Currais Novos, RN. Fones: (84) 3405-2836. E-mail: kettrin@ufrnet.br
VCCAE/UFPB, Campus IV, Rua das Mangueiras, s/n, CEP 58297-000, Rio Tinto, PB. Fone: (83) 3291-4213. E-mail: lincolneloi@yahoo.com.br
RESUMO
Recentemente, o conceito da pegada hídrica foi introduzido como um indicador importante de consumo de água para a humanidade. A pegada hídrica é definida como o volume total de água utilizado durante a produção de bens e serviços, bem como o consumo direto de água pelos seres humanos.
A água não é consumida só diretamente mas também indiretamente, nos processos de produção. Portanto, o cálculo da pegada hídrica permite quantificar o total de água consumida ao longo da cadeia de fornecimento global.
Esta revisão de literatura analisa o estado da arte da pegada hídrica desde a sua criação, no encontro internacional de especialista em comércio de água virtual realizado em dezembro de 2002 na Holanda, até os dias atuais. Os principais resultados encontrados na literatura consultada indicam consenso de que a pegada hídrica é capaz de monitorar o impacto humano sobre o meio ambiente. Além do mais, esta metodologia tem uma vasta gama de aplicações que pode ser empregada em escalas que vão desde um único produto, um processo, setor, indivíduo, cidades, até mesmo nações e todo o planeta.
Palavras-chave: água virtual, evaporação, recursos hídricos
ABSTRACT
The concept of the water footprint has been recently introduced as an important indicator for human induced water consumption. The water footprint is defined as the total volume of water used during production and consumption of goods and services as well as direct water consumption by human beings. Water is not only consumed directly but also indirectly in production processes. Therefore, calculating the water footprint enables to quantify total water consumed along the whole global supply chain. This review surveys the state of the art on water footprint since the International Expert Meeting on Virtual Water Trade, held in Delft, The Netherlands, in December 2002, until current days. The major findings linked to the consulted literature indicated that the water footprint is suitable for monitoring the human impact on the environment. Furthermore, this methodology has a wide range of applications that can be used at scales ranging from a single product, process, industry, individual, cities and even nations around the globe.
Key words: virtual water, evaporation, water resources
INTRODUÇÃO
A manutenção do equilíbrio entre as sustentabilidades socioeconômicas e ambientais requer não apenas uma compreensão dos fluxos econômicos mas também o conhecimento de quanto da capacidade biológica é necessário para absorver os impactos ambientais produzidos pela humanidade. O conceito dominante de desenvolvimento sustentável consiste em descobrir como o planeta pode proporcionar recursos suficientes para assegurar o bem estar das pessoas, em toda parte. Neste particular, as pegadas ecológica, hídrica e de carbono demonstram que a humanidade está vivendo, atualmente, além da capacidade da Terra (Galli et al., 2012). No início de 1990 o conceito de pegada ecológica (PE) foi introduzido como medida da apropriação humana das áreas biologicamente produtivas por William Rees e Mathis Wackernagel (Rees, 1992; 1996; Wackernagel et al., 2004). Cerca de dez anos depois Hoekstra & Huang (2002) lançaram um conceito similar denominado pegada hídrica (PH) para medir a apropriação humana da água doce no globo. Muito embora ambos os conceitos tenham raízes e métodos de medição diferentes, em alguns aspectos os dois conceitos os têm em comum pois traduzem o uso de recursos naturais pela humanidade (Hoekstra, 2009). A PE expressa o uso de espaço (hectares) enquanto a PH mede o uso total de recursos de água doce (em metros cúbicos por ano).
O conceito de PH tem sido discutido principalmente em fóruns de recursos hídricos e de ciência política. Após o lançamento na reunião de peritos na Holanda, em 2002, o conceito de PH foi discutido posteriormente em várias reuniões internacionais de recursos hídricos, tal como no Fórum da Água, no Japão, em 2003, conferência sobre água virtual, organizada pela Conselho Mundial de Água em 2003. A PH pode ser calculada para um indivíduo, comunidade e qualquer grupo definido de consumidores, incluindo uma família, vila, cidade, estado ou nação (Ma et al., 2006; Hoekstra & Chapagain, 2005).
Hoekstra (2009) realizou uma comparação dos conceitos e métodos de análise da PH e PE e analisou como um conceito pode ser interpretado em relação ao outro e que ambos podem ser usados de forma complementar. Por outro lado, Hubacek et al. (2009) analisaram as implicações ambientais da urbanização e na mudança de estilo de vida na China com base nos conceitos de pegadas hídrica e ecológica. A PH também pode ser calculada para uma atividade específica, bem ou serviço. Por exemplo, Chapagain et al. (2006) elaboraram a PH do algodão; Chapagain & Hoekstra (2007) avaliaram a pegada hídrica do café e do chá. A pegada hídrica também pode ser aplicada a um negócio ou organização (Hoekstra & Huang, 2002). Em geral, a PH é expressa em termos do volume de uso de água doce por ano.
O foco em recursos hídricos é importante visto que a água doce é escassa e representa apenas 2,5% do volume total do planeta (Gleick, 2000). Neste contexto, a presente revisão de literatura tem como objetivo explorar o conceito sobre o tema sustentabilidade contribuindo, desta forma, para o melhor conhecimento dos trabalhos existentes na literatura relativos à pegada hídrica e às suas aplicações em várias partes do mundo.
CONCEPÇÃO HISTÓRICA DA PEGADA HÍDRICA
O conceito de pegada hídrica (PH) foi introduzido em 2002 por Arjen Hoekstra na reunião de peritos internacionais sobre o comércio de água virtual realizada em Delf, Holanda. A PH das nações foi avaliada quantitativamente por Hoekstra & Huang (2002) e, posteriormente, de forma mais abrangente, por Hoekstra & Chapagain (2007). O termo PH foi escolhido por Hoekstra em analogia à pegada ecológica; no entanto, os conceitos referentes às pegadas possuem outras raízes, visto que pegada ecológica é expressa em hectares e a PH em volume de água doce consumida.
A PH foi introduzida com o propósito de ilustrar as relações pouco conhecidas entre o consumo humano e o uso da água, tal como também entre o comércio global e a gestão de recursos hídricos. Para Hoekstra (2003) o ponto de partida para esta pesquisa se deu com o descontentamento com o fato de que a gestão de recursos hídricos é vista, comumente, como uma questão local ou no máximo como o problema que ocorre no âmbito de uma bacia hidrográfica.
O conceito de pegada hídrica tem sido usado como indicador do consumo de água de pessoas e produtos em diversas partes do mundo (Zhao et al., 2009; Romaguera et al., 2010; Feng et al., 2011); entretanto, no Brasil esse tema é totalmente incipiente. A PH é definida como o volume de água total usada durante a produção e o consumo de bens e serviços, bem como o consumo direto e indireto no processo de produção. A determinação da PH é capaz de quantificar o consumo de água total ao longo da cadeia produtiva (Yu et al., 2010). A maioria dos usos de água ocorre na produção agrícola destacando também um número significativo de volume de água consumida e poluída nos setores industriais e domésticos. A pegada hídrica de um indivíduo ou comunidade pode ser estimada multiplicando-se todos os bens e serviços consumidos por seus respectivos conteúdos de água virtual. A PH de uma nação consiste de partes interna e externa, sendo a interna referente ao consumo dos recursos hídricos dentro do país enquanto a externa se refere à apropriação dos recursos hídricos de outros países (Oel et al., 2009).
A ideia da pegada hídrica se baseia no conceito de “água embutida” ou “água virtual” introduzido por Allan (1998) quando estudou a possibilidade de importação de água virtual (em oposição à água real) como solução parcial para problemas de escassez de água no Oriente Médio. O interesse em água virtual começou a crescer rapidamente uma vez que os primeiros estudos quantitativos foram publicados em várias partes do mundo (Hoekstra & Huang, 2002; Hoekstra, 2003; Oki & Kanae, 2004; Ercin et al., 2011). Hoekstra & Chapagain (2007) definiram o conteúdo de água virtual de um produto (mercadoria, bem ou serviço) como o volume de água doce usada para produzir tal produto. Esse termo se refere à soma do uso da água nas diversas fases da cadeia de produção. O termo ‘virtual’ diz respeito ao fato de que a maioria da água usada para produzir um produto não está contida no produto. Geralmente, o verdadeiro conteúdo de água dos produtos é insignificante se comparado com o conteúdo virtual de água. O comércio de água virtual ocorre quando os produtos são comercializados de um lugar para outro (Hoekstra & Hung, 2005; Chapagain & Hoekstra, 2007). Portanto, o conceito de PH tem sido usado pela comunidade científica com o propósito de demonstrar a importância da gestão da água.
SUSTENTABILIDADE DA PEGA HÍDRICA
A sustentabilidade de uma pegada hídrica depende inteiramente de fatores locais, como as características hídricas da região. Por exemplo, uma PH grande torna-se sustentável em áreas ricas em água enquanto uma PH pequena pode comprometer a sustentabilidade em áreas com escassez de água. Deste modo, o desmatamento e o reflorestamento afetam o processo hidrológico de tal forma, que podem influenciar diretamente a disponibilidade de água (Oel & Hoekstra, 2012). O uso da água doce está totalmente relacionado com os problemas de escassez e a poluição, fato que ocorre principalmente pelo uso de pesticidas na agricultura e pelos poluentes lançados no ar e na água, pelas indústrias.
Nos dias atuais a abordagem da limitação dos recursos hídricos tem sido bastante destacada (Hoekstra & Chapagain, 2007). Os consumidores finais, revendedores, comerciantes e todos os tipos de empresas que operam ao longo da cadeia produtiva de bens de consumo, continuam fora do alcance das políticas governamentais destinadas a atenuar a escassez de água e a poluição, pelo fato do uso da água no mundo estar ligado sobretudo ao consumo final, pelos consumidores; portanto, é essencial o conhecimento das reais necessidades dos bens de consumo, como alimentos, bebidas, energia e de fibras naturais. Esta é uma informação relevante não apenas para os consumidores mas também para os varejistas, comerciantes e outras empresas que desempenham papel central no fornecimento desses bens aos consumidores (Aldaya et al., 2010). Desta forma, surge a necessidade de um instrumento de medida dos fluxos de entrada e saída de recursos hídricos de determinado local.
O volume de água doce utilizada para produzir o produto é, somado ao longo das várias fases da cadeia de produção, a base para a compreensão do conceito de pegada hídrica. Assim, a PH pode ser considerada um indicador compreensivo da apropriação do recurso de água doce confrontando a tradicional e restrita mensuração de retirada de água, conforme mostra a Figura 1. A pegada hídrica de um consumidor é calculada pela soma de suas pegadas hídricas direta e indireta, em que a pegada hídrica direta (uso direto) se refere ao consumo e à poluição da água que é utilizada em casa ou no jardim enquanto a pegada hídrica indireta (uso indireto) corresponde ao consumo e à poluição de água utilizada na produção de bens e serviços utilizados pelo consumidor (exemplo: alimentação, vestuário, energia, papel e consumo de bens industriais). O uso indireto da água é calculado multiplicando-se todos os produtos consumidos por suas respectivas pegadas hídricas.
A PH foi definida com base no uso real da água por unidade de consumo; logo, ela só pode ser calculada através da análise da fonte de bens de consumo e só então considerar o uso real da água nos países de origem, ou seja, onde a produção acontece.
Os indicadores utilizados pela PH se baseiam na apropriação da água subjacente de bens e serviços, integrando o uso da água e da poluição sobre a cadeia de produção, indicando a ligação entre o local e o consumo global dos recursos hídricos aferindo-se não apenas o uso da água azul mas também o uso da água verde e a produção da água cinza poluída. A PH difere da medida clássica de “água retirada” em três aspectos (Hoekstra, 2009): (i) ela não se restringe à utilização da água azul mas também à água verde e azul; (ii) ela não é restrita ao uso da água porém inclui o uso indireto da água, ou seja, a água do consumidor ou do produtor e (iii) ela não inclui o uso da água azul na proporção em que a água é devolvida para o local de onde veio.
TIPOS DE PAGADAS HÍDRICAS
A PH total de um indivíduo ou comunidade se divide em três componentes: azul, verde e cinza. A PH azul é o indicador do consumo de “água azul”, ou seja, água doce superficial e/ou subterrânea. Para Hoekstra et al. (2011) o termo “uso de água de consumo” refere-se a um dos quatro casos seguintes: (i) evaporação da água; (ii) água incorporada ao produto; (iii) não retorno da água para a área de captação (a água é retornada para outra área ou para o mar) e (iv) não retorno da água no mesmo período (a água é retirada no período escasso e é retornada no período chuvoso). Por outro lado, o maior consumo global de água azul é, nos dias atuais, o setor agrícola (Shiklomanov, 2000).
APH verde é definida como sendo a água oriunda de precipitações, que não é retirada nem armazenada pelos mananciais e, sim, armazenada temporariamente no solo ou permanece temporariamente na superfície do solo ou vegetação (Hoekstra, 2011). Ela representa o volume de água proveniente de chuva consumida durante o processo de produção. O cálculo da pegada hídrica verde é particularmente relevante para produtos baseados em culturas agrícolas, devido à evapotranspiração.
A distinção entre a PH azul e a verde é muito importante em razão dos impactos hidrológicos, ambientais e sociais, tal como os custos e impactos do uso da água superficial e do subsolo. Esta definição difere dos custos e impactos do uso de água de chuva (Hoekstra et al., 2011). A PH cinza indica o grau de poluição de água doce associada ao processo de produção. Hoekstra (2011) define essa componente da PH como sendo o volume de água doce que é requerido para assimilar a carga de poluentes baseando-se nas concentrações naturais e nos padrões de qualidade de água existentes. Ela é calculada dividindo-se a carga de poluentes pela diferença entre a máxima concentração aceitável para aquele poluente específico e sua concentração natural naquele corpo de água que assimila o poluente.
A pegada hídrica direta diz respeito ao consumo de água e ao nível de poluição relacionado ao uso de água na residência ou no ato de regar o jardim; já a pegada hídrica indireta se refere ao consumo e ao nível de poluição que estão diretamente associados ao processo de produção de bens e serviços e são utilizados pelos consumidores (Hoekstra et al., 2011). Percebe-se, então que, no geral, a pegada hídrica indireta é superior à pegada hídrica direta; apesar disto e por ser “invisível”, ela é geralmente negligenciada.
A maior parte da pegada hídrica utilizada por um consumidor está associada aos produtos e serviços que consome e não à quantidade de água para consumo doméstico. Em se tratando de empresas, grande parte tem sua pegada hídrica na cadeia de abastecimento (pegada hídrica indireta) e não no processo de produção (pegada hídrica direta) visto que medidas aplicadas na cadeia de abastecimento levam a custos mais eficazes. A pegada hídrica interna está relacionada à utilização dos recursos hídricos do País para produzir bens e serviços para serem consumidos pela própria população enquanto a pegada hídrica externa está relacionada à quantidade de recursos hídricos utilizados em outro país com vista à produção de bens e serviços que são consumidos pela população, através do processo de importação (Hoekstra, 2011).
O conceito de água virtual foi introduzido para descrever o volume total de água embutida nos produtos agrícolas sugerindo que as regiões pobres de água importam água contida nos produtos agrícolas. Vários estudos têm reconhecido a utilidade do conceito de água virtual para analisar padrões de produção e os fluxos de água associados (Dietzenbacher & Velázquez, 2007; Zeitoun et al., 2010). Existe uma estreita relação entre água virtual e a pegada hídrica, que é o total de água virtual contida nos produtos consumidos por um indivíduo, negócio, cidade ou país (Chapagain & Orr, 2009). Com a intensificação contínua da escassez de água e o aumento do comércio inter-regional, espera-se que a importação de água virtual se torna uma fonte de água adicional importante a ser considerada no planejamento dos recursos hídricos. A média per capita anual da disponibilidade de recursos hídricos (referindo-se às águas superficiais e subterrâneas) é internacionalmente adotada como sendo o valor mínimo de 1000 m3 per capita (Ma et al., 2006). Assim, a pegada hídrica é um conceito intimamente ligado à água virtual (Hoekstra & Chapagain, 2007). A pegada hídrica de um produto pode também ser considerada seu “conteúdo de água virtual”.
PEGADA HÍDRICA DE PRODUTOS DE ORIGEM ANIMAL
A pegada hídrica de um animal é calculada com base na pegada hídrica de toda a sua alimentação, durante sua vida, e o volume de água por ele consumido, tanto para dessedentação quanto para outras atividades, como as de higiene. A pegada hídrica total do animal é dividida em vários subprodutos derivados. Na Tabela 1 estão as pegadas hídricas de alguns produtos de origem animal.
No caso do frango, por exemplo, considera-se um sistema industrial de produção que leva em média 10 semanas antes de abater o animal e produzir 1,7 kg de carne branca. Segundo Mekonnen & Hoehstra (2010) a ave consome aproximadamente 3,3 kg de ração e consome 30 L de água. Portanto, para cada quilo de frango são utilizados cerca de 2 kg de grãos e 20 L de água potável durante todo o ciclo de produção. A produção de todo produto tem, embutidos, 3.900 L de água (Hoekstra, 2011); o autor destaca que o exemplo apresentado acima é uma média global.
A PH do frango varia acentuadamente dependendo da região de produção, da composição da ração e da origem dos elementos que a compõem. Quando abatida a ave terá, passadas as 10 semanas, menos peso e, assim, a produção é reduzida. Conforme Hoekstra (2011) em termos gerais, a PH do frango obtida em sistemas industriais é menor que a obtida em sistemas de fazendas. Entretanto, é necessário atentar-se para a origem da água pois, enquanto a PH do frango proveniente de um sistema industrial se refere à água de irrigação (água azul) a PH de uma cultura de grãos pode sofrer com escassez hídrica (água verde).
Para o caso específico da carne vermelha considera-se um sistema industrial de produção que leva três anos para se abater um animal e produzir 200 kg de carne desossada. Admite-se que o animal tenha consumido 1.300 kg de ração, 7.200 kg de forragem, 24 m3 de água para dessedentação e 7 m3 de água para limpeza geral, significa que, para cada quilograma de carne desossada, são utilizados 6,5 kg de ração, 36 kg de forragem e 155 L de água de beber. A produção de todo este sustento, tem embutidos, 15.500 L de água (Hoekstra et al., 2011). Esses autores, entretanto, alertam que o exemplo apresentado acima é uma média global. A pegada hídrica da carne bovina varia acentuadamente dependendo da região de produção, da composição da ração e da origem dos elementos que a compõem. Em sistemas com pastagem o gado se alimenta mais de forragem e de menos grãos. Quando abatido o animal terá, passados 3 anos, menos peso e, assim, a produção é reduzida. Conforme Hoekstra (2011) em termos gerais a pegada hídrica da carne bovina obtida em sistemas industriais é menor do que a obtida em sistemas com pastagens. Entretanto, é necessário atentar-se para a origem da água. A pegada hídrica da carne proveniente de um sistema industrial se refere à água de irrigação (água azul) de uma cultura de grãos localizada em uma área que pode sofrer com escassez hídrica. Por outro lado, a pegada hídrica da carne provinda de sistemas com pastagem corresponde à água verde, por meio da qual as pastagens se desenvolvem.
A pegada hídrica para 1 kg de carne de porco é, em média global, de 4.800 L de água (Hoekstra et al., 2011). Em um sistema industrial da suinocultura, que leva em média 10 meses antes de um porco ser abatido, são produzidos 90 kg de carcaça suína, 5 kg de miudezas comestíveis e 2,5 kg de pele. Um porco consome cerca de 385 kg de grãos (milho, cevada, farelo de soja, farelo de trigo e outros grãos pequenos) utilizando 11 m3 de água para beber e para manutenção da fazenda. Também são necessários mais 10 m3 de água durante o processo de abate e de limpeza. Para se produzir toda a carne de porco são empregados 435 m3 de água, sendo este volume total distribuído ao longo dos três principais produtos, tendo como base seus valores de mercado e o produto obtido por kg do suíno vivo. Deste modo, para Hoekstra et al. (2011) a pegada hídrica de um produto será definida como o volume total de água doce que é usado diretamente ou indiretamente para produzir o produto. Neste caso, para os diferentes tipos de carne se obterá a PH diferenciada podendo-se considerar o uso da água em todas as etapas da cadeia produtiva. Referidos autores afirmam que este procedimento é semelhante ao da contabilidade de todos os tipos de produtos, sejam eles derivados do setor agrícola, industrial ou de serviços.
CONTABILIDADE DA PEGADA HÍDRICA
A pegada hídrica e a pegada ecológica sugerem a possibilidade de que a demanda por recursos naturais pela humanidade é maior do que o planeta pode fornecer de forma sustentável. Este excesso de consumo é definido de forma significativa devido à rápida expansão econômica, bem como a urbanização, migração, mudanças de estilo de vida e outras grandes transições sociais (Hoekstra & Chapagain, 2007). A segunda maior componente da PH é a utilização de terras aráveis (21%) seguida do uso da floresta para madeira (10%), uso de áreas de pesca (7%), uso de pastagens para o pastoreio de animais (6%) e uso de edificações (4%). Por outro lado, a PH global é de 7450 bilhões de m3 ano-1, média do período de 1997-2001. A PH verde da humanidade é 5330 bilhões de m3 ano-1, enquanto as componetes azul-cinza da PH são de 2120 bilhões de m3 ano-1 (Hoekstra & Chapagain, 2007). A PH verde total se refere à produção agrícola enquanto a combinação azul-cinza da PH diz respeito aos produtos agrícolas (50%), produtos industriais (34%) e aos serviços domésticos de água (16%).
O tamanho da PH global é, em grande parte, determinado pelo consumo de alimentos e outros produtos agrícolas. Na website está disponível uma calculadora para avaliar uma pegada hídrica de pessoas, desenvolvida pela UNESCO-IHE em cooperação com a Universidade de Twente, da Holanda (www.waterfootprint.org). Zhang et al. (2011) realizaram uma análise inter-regional de pegada hídrica em Pequim cujos resultados mostraram que a PH total desse país é 4.498,4×10 6 m3 ano-1, dos quais 51% são da PH externa através de importação de água virtual. A agricultura tem a pegada de água mais alta de 1.524,5 x10 6 m3 ano-1, com 56% provenientes de fontes externas. Os resultados deste estudo sugeriram, ainda, que a coordenação de comércio inter-regional, especialmente para os principais setores com alta intensidade de uso da água, é importante para aumentar a eficiência da utilização dos recursos hídricos regionais e nacionais. A água doce é um dos recursos mais valiosos do planeta, sendo um elemento de sustentação da vida essencial que não pode ser substituído, muito embora cada vez mais tenha se tornando um recurso escasso (Koehler, 2008). Em todo o mundo existem fortes indícios de esgotamento de águas subterrâneas, diminuição da vazão dos rios e a deterioração da qualidade da água. Esses indícios indicam que os níveis atuais de uso da água podem exceder os limites sustentáveis em muitas partes do mundo (Postel, 2000).
CONCLUSÕES
1. Como indicador de sustentabilidade, a pegada hídrica é capaz de monitorar o impacto humano sobre o meio ambiente. Os indicadores de sustentabilidade devem ser usados e interpretados em conjunto visando à avaliação dos impactos ambientais de produção e consumo.
2. A metodologia da pegada hídrica tem uma vasta gama de aplicações que podem ser empregadas em escalas que vão desde um único produto, um processo, um setor, individuo e cidades, até nações e todo o mundo. Esta técnica fornece uma resposta específica da pressão humana sobre o meio ambiente e ajuda de forma mais abrangente a monitorar o pilar ambiental da sustentabilidade.
3. Este indicador de sustentabilidade sugere a possibilidade de que a humanidade demanda por recursos maiores do que o planeta pode fornecer de forma sustentável. Tal excesso de consumo tende a aumentar de forma significativa devido à rápida expansão econômica, bem como pela urbanização, migração, mudanças de estilo de vida e outras grandes transições sociais no mundo.
LITERATURA CITADA
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Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiental
On-line version ISSN 1807-1929
Rev. bras. eng. agríc. ambient. vol.17 no.1 Campina Grande Jan. 2013
http://dx.doi.org/10.1590/S1415-43662013000100014
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