Direito Ambiental e a gestão de desastres naturais. Entrevista com Délton Winter de Carvalho
“A ocorrência de desastres está comumente ligada a um déficit regulatório do Direito Ambiental, seja pela ocupação irregular de áreas de proteção permanente, pelo descumprimento de padrões preventivos previstos nos licenciamentos ambientais, pela ocupação desordenada do solo, ou pela injustiça ambiental, entre outros exemplos possíveis”, adverte o advogado.
Foto: Portal no ar |
As catástrofes ambientais não são mais uma preocupação apenas dos profissionais da área ambiental. Os riscos e prejuízos ocasionados pelos desastres naturais têm sido um tema constante no setor jurídico, especialmente entre os pesquisadores que atuam na área do Direito de Desastres. Um dos entusiastas das discussões sobre o assunto, Délton de Carvalho, professor do curso de Direito da Unisinos, assegura que “um Direito Ambiental eficaz tem relação direta com a gestão dos desastres”.
Em entrevista à IHU On-Line por e-mail, ele salienta que o Direito tradicional deve estar atento e sensível à complexidade e às demandas ambientais. Nesse sentido, pontua, “um grande desafio à capacidade estrutural do Estado para lidar com as consequências do fenômeno das mudanças climáticas, no que toca especificamente à intensificação de desastres climáticos, consiste em tornar prioritárias as ações e os investimentos em prevenção e gestão de risco. Hoje, os números de investimento governamental, em nível federal, atestam que os maiores investimentos são despendidos apenas após a ocorrência dos desastres, sendo uma ínfima parte investida em prevenção e mitigação. Assim, conforme visto anteriormente, o novo marco regulatório indica uma necessária mudança de ênfase nas políticas de gestão de desastres, devendo priorizar as medidas preventivas e mitigatórias, a fim de evitar ou minimizar as consequências lesivas de tais fenômenos”.
Segundo Carvalho, as secas e a estiagem são os desastres climáticos mais frequentes no Brasil, apesar de as inundações e os deslizamentos de terra ocasionarem mais mortes e perdas econômicas. Entretanto, aponta, “a legislação brasileira, em especial a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei n. 12.608/2012), demonstra um foco maior neste perfil (prevenção de inundações bruscas, deslizamentos de grande impacto e processos hidrológicos ou geológicos correlatos) sem, contudo, limitar a abrangência do sentido de desastre, que também compreende os humanos (acidentes tecnológicos e industriais) e os mistos (compostos por fatores naturais e humanos)”. E esclarece: “Até a promulgação da Lei de Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, em 2012, o sistema legal tinha uma ênfase meramente compensatória aos desastres. Após a introdução do novo marco regulatório, houve a atribuição prioritária às ações de prevenção e mitigação de desastres”.
O tema da entrevista a seguir será tratado no I Congresso de Direito, Biotecnologia e Sociedades Tradicionais, promovido pelo Programa de Pós-Graduação – PPG de Direito da Unisinos, nos dias 25 e 26 de março.
Délton Winter de Carvalho é mestre e doutor em Direito pela Unisinos e pós-doutor em Direito Ambiental e dos Desastres pela Univeristy of California, Berkeley. É coordenador e professor da Especialização em Direito Ambiental da Unisinos e do Programa de Pós-Graduação – PPG em Direito da Unisinos. É membro do Conselho de Meio Ambiente da FIERGS – CONDEMA. Autor dos livros Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco ambiental (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013) e Direito dos Desastres (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013).
Foto: Direito de Fronteira |
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as atribuições do Direito dos Desastres?
Délton Winter de Carvalho – O Direito dos Desastres tem como atribuições a regulação e a orientação normativa de ações e estratégias para prevenção, mitigação, respostas de emergência, compensação e reconstrução das áreas atingidas por desastres. Pode ser dito que este ramo do Direito consiste em uma radicalização do próprio Direito Ambiental, em que as mudanças climáticas, o desenvolvimento tecnológico e o crescimento populacional desordenado transformam danos em desastres ambientais. A unidade e a autonomia deste ramo decorrem de uma necessária circularidade na gestão dos riscos, ou seja, em todas as fases de um desastre (prevenção, mitigação, resposta de emergência, compensação e reconstrução) deve-se lançar mão de estratégias e instrumentos para prevenir o agravamento dos eventos catastróficos. Trata-se de um processo circular em que, mesmo em fases como a compensação de vítimas e reconstrução de áreas atingidas, as decisões políticas, jurídicas e econômicas devem ser pautadas pela prevenção e mitigação de riscos de novos desastres idênticos.
Um dos fatores de maior destaque trazido pelo Direito dos Desastres é exatamente a revelação de que não existem desastres puramente “naturais”, pois a concretização dos desastres, mesmo que desencadeados por fatores naturais, depende sempre de vulnerabilidades sociais, representadas em fatores como desigualdades, ocupação de áreas de risco, falta de informação adequada, exposição a riscos, etc.
“Em matéria de direito ambiental, a palavra de ordem é a prevenção” |
IHU On-Line – Como o Direito tem tratado os problemas derivados de catástrofes climáticas?
Délton Winter de Carvalho – Primeiramente, deve-se entender o perfil de desastres no país. Segundo estudos, tais como o Relatório de 2007 do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC e o Atlas Brasileiro de Desastres Naturais, os desastres climáticos mais frequentes no Brasil são as secas e a estiagem. Contudo, são as inundações e os deslizamentos de terras os que mais ocasionam mortes e perdas econômicas. Neste sentido, a legislação brasileira, em especial a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei n. 12.608/2012), demonstra um foco maior neste perfil (prevenção de inundações bruscas, deslizamentos de grande impacto e processos hidrológicos ou geológicos correlatos) sem, contudo, limitar a abrangência do sentido de desastre, que também compreende os humanos (acidentes tecnológicos e industriais) e os mistos (compostos por fatores naturais e humanos). Até a promulgação da Lei de Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, em 2012, o sistema legal tinha uma ênfase meramente compensatória aos desastres. Após a introdução do novo marco regulatório, houve a atribuição prioritária às ações de prevenção e mitigação de desastres.
Para tanto, os municípios que tenham ocorrências de desastres ligados a inundações bruscas, deslizamentos de grande impacto e eventos hidrológicos e geológicos correlatos devem estar inseridos em um cadastro nacional específico. Estes municípios têm o dever de realizar mapas de áreas de risco, confeccionados a partir de cartas geotécnicas, que, por seu turno, devem influenciar Planos Diretores Municipais, a fim de evitar novas ocupações de áreas de risco.
IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades jurídicas e legislativas em relação a casos de catástrofes naturais?
Délton Winter de Carvalho – Os desastres estão constantemente ligados a riscos que, apesar de sua baixa probabilidade de ocorrência, apresentam consequências potencialmente catastróficas. Por esta razão, as principais dificuldades jurídicas e legislativas são capacitar Direito e Política a deter instrumentos capazes de decidir em contextos de ausência de informação conclusiva ou de eventos altamente improváveis. O grave problema é que é provável que eventos altamente improváveis um dia ocorram.
IHU On-Line – O senhor diz que a complexidade das relações que envolvem questões ambientais encontra dificuldade de comunicação com o Direito clássico. Quais seriam, então, novas formas de atuação necessárias para o Direito Ambiental dar conta dessa questão?
Délton Winter de Carvalho – Bem, a tradição do Direito como sistema social se configura predominantemente com base em decisões e processos influenciados principalmente pelo passado (jurisprudência, doutrina e legislações), quando novas tecnologias e os novos desafios ambientais dependem de inovações. Esta necessidade se dá em grande parte pela falta de conhecimento conclusivo sobre as consequências da utilização das novas tecnologias, permeadas por incertezas científicas quanto a probabilidades e magnitudes.
Estas incertezas são potencializadas quando os conflitos submetidos ao judiciário dizem respeito a riscos de danos futuros. Em síntese, o Direito Ambiental tem que inserir o horizonte futuro em suas construções conceituais e em seus processos de decisão, a fim de evitar danos irreversíveis. Isto é feito por meio de Princípios de Direito Ambiental como os da Prevenção (antecipação a riscos conhecidos), da Precaução (prevenção a riscos desconhecidos ou incertos) e da Equidade Intergeracional (assegurar que as presentes gerações transmitam um ambiente equilibrado às futuras gerações).
Outra necessária ruptura entre as demandas ambientais e o Direito tradicional consiste na necessária sensibilização do Direito à complexidade ambiental. Um dos pontos mais importantes, neste sentido, é a necessária capacidade do Direito em compatibilizar decisões sobre matérias marcadas por incerteza científica, assegurando, de outro lado, seus elementos internos ao Estado de Direito, tais como juridicidade, validade, contraditório, ampla defesa e devido processo legal. Um exemplo neste sentido é a formação, cada vez mais constante, de varas judiciais especializadas em Direito Ambiental, as quais tendem a ser mais sensíveis às especificidades necessárias a uma interpretação jurídica da técnica.
Outro exemplo de inovação jurídica consiste na adoção de novas técnicas para análise das provas ambientais em contextos de incerteza científica, como é o caso, por exemplo, da Teoria das Probabilidades, que fundamenta a análise das provas tendo por base as probabilidades descritas pela perícia judicial acerca das atividades possivelmente responsáveis por uma dada contaminação. Ainda em relação à prova das causas de contaminações, também tem sido aplicado pelos Tribunais brasileiros a inversão do ônus da prova, imputando ao potencial responsável a obrigação de provar a sua inocência ambiental, sob pena de condenação a reparar determinados danos.
“O Direito deve garantir o fluxo de informações acerca dos riscos dos produtos e das novas tecnologias” |
IHU On-Line – E no que se refere aos desastres em biotecnologia?
Délton Winter de Carvalho – Os riscos biotecnológicos são riscos marcados por uma grande precariedade dos dados científicos quanto as suas probabilidades ou suas consequências, típicos exemplos do desenvolvimento tecnológico recente. Neste sentido, ao mesmo tempo que tais tecnologias trazem a expectativa de benefícios exponenciais, também apresentam sérios riscos, tais como fluxo gênico entre espécies geneticamente alteradas e as espécies nativas, com consequências desconhecidas ao meio ambiente e à saúde humana.
Para riscos que envolvem atividades com um forte apelo econômico, expectativa de benefícios, porém dotados de uma precariedade no conhecimento acerca de sua potencialidade lesiva, como é o caso da biotecnologia, destaca-se a necessidade do Direito de impor deveres de monitoramento ambiental ao empreendedor, por meio de controles documentados que devem ser cobrados pelas instituições responsáveis. A meu ver, o problema mais grave no que diz respeito à biotecnologia na legislação brasileira (em especial a Lei n. 11.105/2005) é que esta atribui exclusivamente a um órgão eminentemente técnico e político (CTNBio) a análise de se uma determinada pesquisa ou atividade deve se submeter a um processo de licenciamento ambiental. Assim, a legislação específica acaba bloqueando o controle ambiental de tais técnicas, uma vez que a CTNBio tem um perfil eminentemente pró-biotecnologia. Este bloqueio normativo da biotecnologia ao controle imediato dos órgãos ambientais parece-me, no mínimo, inconstitucional.
IHU On-Line – Qual é a capacidade estrutural do Direito Ambiental e das políticas públicas ambientais do Estado para lidar com as consequências do fenômeno das mudanças climáticas?
Délton Winter de Carvalho – Um grande desafio à capacidade estrutural do Estado para lidar com as consequências do fenômeno das mudanças climáticas, no que toca especificamente à intensificação de desastres climáticos, consiste em tornar prioritárias as ações e os investimentos em prevenção e gestão de risco. Hoje, os números de investimento governamental, em nível federal, atestam que os maiores investimentos são despendidos apenas após a ocorrência dos desastres, sendo uma ínfima parte investida em prevenção e mitigação. Assim, conforme visto anteriormente, o novo marco regulatório indica uma necessária mudança de ênfase nas políticas de gestão de desastres, devendo priorizar as medidas preventivas e mitigatórias, a fim de evitar ou minimizar as consequências lesivas de tais fenômenos.
Outros desafios consistem na necessária integração entre diversos órgãos e instituições em todos os níveis governamentais, tais como órgãos de segurança pública, órgãos ambientais, defesa civil, entre outros, juntamente com atores privados. Isto decorre do caráter multifacetado dos desastres, os quais podem atingir diversas esferas da sociedade.
Finalmente, a ocorrência de desastres está comumente ligada a um déficit regulatório do Direito Ambiental, seja pela ocupação irregular de áreas de proteção permanente, pelo descumprimento de padrões preventivos previstos nos licenciamentos ambientais, pela ocupação desordenada do solo, pela injustiça ambiental, entre outros exemplos possíveis. Assim, um Direito Ambiental eficaz tem relação direta com a gestão dos desastres.
“Quanto maior o fluxo de informações sobre os riscos ambientais,maior a capacidade de mobilização de uma comunidade para sua gestão” |
IHU On-Line – Em que consiste a responsabilização civil pelo risco ambiental? Existe alguma normativa nesse sentido?
Délton Winter de Carvalho – A responsabilidade civil tem, tradicionalmente, tido sua aplicação limitada apenas a casos de danos já concretizados. Em matéria ambiental, este cenário mostra-se diferente. Em matéria de direito ambiental, a palavra de ordem é a prevenção, em virtude da constante irreversibilidade dos danos ambientais. Em diversas tradições jurídicas, tem-se mostrado como uma tendência à possibilidade de utilização do instituto da responsabilidade civil para impor deveres de prevenção quando houver riscos de danos massivos, como é o caso do direito norte-americano, ou danos irreversíveis, como é o caso da tradição europeia. No caso brasileiro, este processo já teve início, sobretudo com a desvinculação do dano como condição para caracterização do ilícito civil, prevista no art. 187 do Novo Código Civil. Também, a legislação ambiental, em especial art. 225 da Constituição e art. 3º da Lei da Ação Civil Pública, estabelece que as ações judiciais ambientais não dependem de dano para o seu ajuizamento, podendo estar baseadas na existência de graves riscos ambientais. As medidas preventivas podem consistir na imposição de obrigações de fazer ou não fazer, tendo como exemplos possíveis as instalações de filtros, a adoção das melhores tecnologias disponíveis, o controle e o monitoramento documentados, podendo chegar, em última instância, na própria interdição preventiva da atividade, dependendo da gravidade do risco.
IHU On-Line – Que relações o senhor estabelece entre os desastres ambientais e o uso de novas tecnologias?
Délton Winter de Carvalho – Uma das fontes de desastres tecnológicos é a precariedade de informação. Não é possível gerenciar riscos para os quais não se tenha conhecimento. Assim, o Direito tem uma função de efetuar um processo de desmonopolização do conhecimento científico, expondo à coletividade os benefícios, as dúvidas e os riscos destas tecnologias. Os tribunais, neste sentido, têm uma função de desconstrução construtiva da autoridade dos experts, tornando transparentes os valores, preconceitos e suposições sociais envolvidas na adoção de novas tecnologias. O Judiciário também exerce a importante função de educação cívica sobre a ciência e a tecnologia, produzindo informações não apenas aos litigantes, mas a toda uma comunidade possivelmente afetada pela questão.
Assim, o Direito deve garantir o fluxo de informações acerca dos riscos dos produtos e das novas tecnologias, estabelecendo quem e o que deve ser publicizado. Há, portanto, um direito constitucionalmente assegurado no sentido do dever dos empreendedores em prestar informações relevantes ambientalmente e à saúde dos consumidores.
Quanto maior o fluxo de informações sobre os riscos ambientais de uma atividade, maior a capacidade de mobilização de uma comunidade para sua gestão, evitando a ocorrência de desastres.
IHU On-Line – Como a teoria da sociedade de risco, de Ulrich Beck, contribui para fundamentar o Direito Ambiental?
Délton Winter de Carvalho – A teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck tem sido muito utilizada no Direito Ambiental, uma vez que esta descreve a sociedade pós-industrial a partir do risco e seu protagonismo nas relações sociais contemporâneas. Para Beck, os riscos contemporâneos são marcados por uma invisibilidade sensorial e científica, bem como pela globalidade de seus efeitos. Sua maior potencialidade lesiva é acompanhada por uma maior incapacidade da ciência em descrevê-los, dificultando ao Direito e à Política a sua gestão.
Esta teoria, portanto, tem estimulado o Direito Ambiental a compreender melhor os riscos contemporâneos, em suas especificidades técnicas e percepções sociais, permitindo ao Direito formar padrões válidos de decisões jurídicas em contextos de incerteza e que tenham por função inibir a concretização dos riscos em danos ambientais graves.
(EcoDebate, 20/03/2014) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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Com todo o respeito ao ilustre entrevistado, o princípio básico do Direito Ambiental, que o torna inteiramente novo e diferente dos demais é o DA PRECAUÇÃO, que em síntese extabelece: ” na dúvida, pro ambiente”.
Sulema Mendes de Budin
Advogada e consultora em meio ambiente